Zona Norte
Cem dias após enchente, moradores do Sarandi ainda dependem de doações e benefícios sociais para se reerguer
População de um dos bairros mais atingidos pela cheia de maio em Porto Alegre tenta recomeçar com a ajuda de programas federais, como Bolsa Família, e municipal, como Estadia Solidária. Um dos mais relevantes, o Auxílio Reconstrução ainda é esperança para milhares de pessoas que aguardam análise
Desempregada e cuidando sozinha de dois filhos — um bebê de oito meses e um adolescente de 16 anos —, Michelle dos Santos, 38, morava na Avenida 21 de Abril, no bairro Sarandi, em Porto Alegre, quando teve de sair de casa apenas com a roupa do corpo, na enchente de maio. A água chegou ao teto da residência, da qual não conseguiu levar quase nada. Alugou um imóvel no bairro Costa e Silva, também na Zona Norte, e hoje tenta se manter com recursos de programas sociais como Estadia Solidária, da prefeitura, que ajuda no pagamento da moradia, e o Bolsa Família, do governo federal.
O Auxílio Reconstrução, também subsidiado pela União, foi negado a Michele por cinco vezes, segundo relata, o que a coloca entre as 1,2 mil famílias que tiveram pedido recusado no Estado (leia mais abaixo).
— Perdi tudo na minha casa, tentei recuperar geladeira e não funcionou. Estava esperando o Auxílio Reconstrução para poder recomeçar e comprar alguma coisa, mas foi negado. Desde 29 de maio, foi a quinta análise negada. Isso é uma decepção, tu entrar na tua casa, ter perdido tudo e não ter resposta do governo — desabafa, ressaltando conhecer vizinhos que conseguiram o benefício.
Em resposta à solicitação, o sistema do governo federal aponta que o auxílio foi negado porque "mais de uma família foi informada no mesmo endereço". Michelle explica que o local onde morava é uma ocupação com mais de uma casa no mesmo logradouro, o que poderia ter gerado a recusa. A Zero Hora, o governo federal explicou que se já foi solicitado o auxílio, mesmo que em outro CPF, no mesmo endereço, o valor não é liberado.
Traumatizada, ela diz que não consegue mais voltar para a casa onde morava. Com tantos estragos, o local precisa de um investimento grande para recuperação, algo de que ela não dispõe. Antes de alugar um imóvel pelo programa Estadia Solidária, ficou na casa de uma parente. Recebeu doações, mas uma delas, um colchão que foi usado pelo caçula, acabou transmitindo sarna ao bebê.
— Ele ainda está com algumas marcas, por causa disso — lamenta.
Diante de tantas dificuldades, Michelle tenta voltar a trabalhar como cuidadora e aguarda retorno de uma nova tentativa para conseguir o benefício federal.
— Estou seguindo as orientações que estão me dando. Eles me colocaram em mais uma análise, que nem aparece. Se me negarem, é para eu entrar no gov.br, fazer uma reclamação ou ir na defensoria pública — explica.
"Não estou começando do zero, mas abaixo do zero"
Diferentemente de Michelle, o barbeiro Jean Paulo Borges Rodrigues, 46 anos, teve o Auxílio Reconstrução aprovado e conseguiu comprar uma máquina de lavar roupa e pagar algumas contas com os R$ 5,1 mil do benefício.
Morador do bairro Sarandi desde que nasceu, Rodrigues mostra que a água quase chegou ao teto no primeiro andar de sua casa, na Rua Jacob Philippsen, na Vila Elizabeth.
— Voltamos para casa há 15 dias. Investi em uma máquina de lavar, e estamos tentando voltar ao normal, obviamente com muita dificuldade — relata.
A sala — com televisão, um móvel que ocupava quase toda a parede e a iluminação embutida no teto — ficou apenas na lembrança de uma fotografia. A entrada da casa hoje parece a de um imóvel em construção, com marcas de água nas paredes e sem mobiliário, apenas caixas com o que a família já ganhou ou adquiriu.
— Fica o endividamento bem maior, não estou conseguindo honrar com meus compromissos. Não estou começando do zero, mas abaixo do zero — comenta.
Rodrigues está instalado no segundo andar da casa, onde já moravam uma de suas filhas, o genro e as duas netas. A esposa e a outra filha se juntaram a eles no mesmo espaço, que conta com um dormitório.
Rodrigues é barbeiro e seu negócio também foi atingido pela enchente. Ele conseguiu comprar o maquinário novamente e está aguardando auxílio de um programa do Sebrae para cobrir os gastos.
— Estamos recomeçando. Tem muita gente que conheço que não conseguiu nem os R$ 5,1 mil — constata.
Mais de 312 mil famílias ainda aguardam análise no RS
Os dados mais recentes do governo federal, divulgados em 1º de agosto, apontam que 677.325 famílias estão cadastradas no Rio Grande do Sul para receber o Auxílio Reconstrução. Destas, 357.484 foram habilitadas para receber o benefício, o que corresponde a 52,7%. São mais de 312 mil em análise e 1.247 recusadas.
Além disso, 329.530 (92% dos aprovados) já receberam o pagamento de R$ 5,1 mil, e 3.080 aguardavam pelo depósito.
O governo teve aprovação de mais de R$ 1,8 bilhão para a medida, sendo que mais de R$ 1,6 bilhão já foi pago.
Auxílio Reconstrução (atualização de 1º de agosto)
- Famílias cadastradas — 677.325
- Famílias analisadas — 669.765
- Famílias habilitadas — 357.484
- Famílias em análise — 312.281
- Famílias recusadas — 1.247
- Famílias aguardando confirmação — 22.296
- Famílias pagas — 329.530
- Famílias aguardando pagamento — 3.080
- Total de recursos aprovados — R$ 1.823.168.400
- Total de recursos pagos — R$ 1.680.603.000,00