Zona leste da Capital
Com revitalização atrasada há quase um ano, cenário na gruta da Maria Degolada é de abandono e apelo da comunidade
Localizado no Morro da Vila Maria da Conceição, espaço de devoção à santa popular, vítima de feminicídio em 1899, apresenta problemas como falta de portão, pintura, danos em paredes e telhas. Comunidade aguarda por início dos trabalhos
Previstas para terem início em setembro de 2023, as obras na gruta da Vila Maria da Conceição, na zona leste de Porto Alegre, ainda não começaram. O recurso a ser empregado será no valor de R$ 26 mil e virá por meio de emenda impositiva da Câmara de Vereadores.
Nesta quarta-feira (14), Zero Hora visitou o espaço de devoção, situado em um beco junto à Rua Irmã Nely, na lateral da Pequena Casa da Criança.
O portão foi furtado e o telhado apresenta falhas e rachaduras. Havia lixo no chão e roupas estavam penduradas nas paredes, que necessitam de reparos e pintura. Também podia se ver uma placa anunciando aulas de francês abandonada lá dentro.
A empregada doméstica Luciana Santana, 44 anos, mora ao lado de onde fica a gruta. A moradora da comunidade pede um portão novo. Sem ele, o espaço fica livre para o acesso de cães e gatos, que sujam o ambiente e derrubam as imagens e velas.
— Moro há 40 anos aqui. Seguido vem gente acender vela, rezar e pagar promessa — diz.
A vendedora Vanessa Viana Soares, 41, que tem casa nas proximidades da grutinha, conta que as eventuais melhorias feitas no ponto de veneração e fé são feitas por moradores da própria comunidade. E reclama de abandono por parte do poder público.
— Falaram que iam revitalizar a gruta e colocar uma placa de identificação na frente do beco. A única coisa que fizeram foi podar a árvore que tinha aqui — comenta.
Prefeitura explica atraso
José Miguel Sisto Júnior, coordenador do Fundo Municipal de Apoio à Produção Artística e Cultural (Fumproarte) de Porto Alegre, vinculado à Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa (SMCEC), explica o que atrasou o projeto.
Segundo ele, o diretor da empresa que realizaria o serviço exercia a direção no Conselho do Patrimônio Histórico Cultural (Compahc). Dessa maneira, teria de aprovar o restauro e a própria firma seria a titular para receber o recurso.
— Perdemos um bom tempo nisso e optamos por um artista que não faz parte do Conselho, que é o Mario Cladera. Ele estudou com o Vasco Prado e trabalhou com o Xico Stockinger. É o nosso escultor mais antigo e experiente — afirma o coordenador.
A gruta reúne devotos e presta homenagem a uma vítima de feminicídio — Maria Francelina Trenes, assassinada pelo namorado, um policial militar, em 12 de novembro de 1899 (leia mais abaixo). Popularmente, a personagem ficou conhecida como Maria Degolada.
Apesar de a enchente de maio não ter atingido o topo da Vila Maria da Conceição, a prefeitura menciona que a cheia afetou os planos de revitalização do lugar.
— Perdemos muito tempo com essas contratações que não deram certo e depois entrou a enchente. Como a grutinha é uma despesa de emenda impositiva da Câmara de Vereadores, ela vai acontecer. Tenho esperança de que aconteça ainda este ano. Não é uma prioridade, mas ela não tem por que não acontecer — observa Miguel Sisto Júnior.
Em novembro de 2022, a Câmara Municipal aprovou projeto de lei que propôs o tombamento da gruta de Maria Degolada como patrimônio histórico-cultural de Porto Alegre.
— A grutinha não é bem uma obra de arte. Mas tratamos como se fosse. Porque ela tem um valor cultural muito grande para a comunidade e não pode alterar as características originais. Tem muitas placas e detalhes, que precisam de cuidados — conclui o coordenador.
A reforma na grutinha engloba conserto da estrutura das paredes e do telhado, pintura, recuperação das plaquinhas com mensagens de graças alcançadas, colocação de placa de identificação e a elaboração de uma imagem que represente Maria Francelina Trenes.
Artista terá liberdade de criação
O escultor Mario Cladera antecipa o que pretende executar. O artista foi responsável por fundir e instalar o livro nas mãos do monumento aos poetas Carlos Drummond de Andrade e Mario Quintana, na Praça da Alfândega, em outubro de 2022. A peça havia sido serrada e furtada da obra de arte.
— Vou produzir dois medalhões de 40 centímetros de diâmetro que vão representar a Maria Francelina. Um ficará dentro da capela, acompanhado por alguma placa. E o outro será colocado na entrada do beco. Serão em cerâmica para não serem roubados — detalha.
Não existem fotos de Maria Francelina ou alguma reprodução fiel de suas características físicas. Apenas há menções em textos sobre o crime nos jornais da época e no processo judicial. O artista terá liberdade para criar a imagem para os dois medalhões, que a prefeitura gostaria que fossem feitos em aço, e não em cerâmica.
— Não tem nenhum registro fotográfico dela. Usarei como referência algo que a descreva fisicamente. Farei um rosto de uma mulher jovem, bonita, de origem alemã e cabelo ondulado. Espero que agrade e que, de alguma forma, represente o imaginário popular — compartilha Cladera.
Piquenique com churrasco termina em feminicídio
No livro Maria Degolada — Mito ou Realidade?, do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, o processo judicial é reproduzido em detalhes, assim como páginas dos jornais da época do crime.
Segundo a obra, a vítima tinha 21 anos quando foi morta e era de nacionalidade alemã. O autor do crime se chamava Bruno Soares Bicudo, 29 anos. Era natural de Uruguaiana, analfabeto e servia na Brigada Militar. Os dois eram solteiros.
De acordo com os relatos, quatro soldados do 1º Regimento de Cavalaria da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, entre os quais o autor da degola, estariam fazendo um piquenique na parte leste do Morro do Hospício, no arraial do Partenon. Todos estavam acompanhados por mulheres nas proximidades da Chácara das Bananeiras.
Em torno das 15h daquele domingo, após um churrasco, Bicudo e Francelina teriam discutido. Motivado por ciúmes, o policial a teria degolado.
Os companheiros tentaram detê-lo, mas não conseguiram por o terem encontrado com a faca e um ferro em mãos. Decidiram comunicar o crime no quartel ao qual serviam. Foi enviada uma escolta para prender o autor.
O soldado utilizou uma faca para cortar o lado direito do pescoço da jovem. O PM alegou que a matou após ser agredido, mas foi preso e julgado quase três meses depois, em 8 de fevereiro de 1900.
Condenado a 30 anos de prisão com trabalho na Casa de Correção de Porto Alegre e expulso da Brigada Militar, o criminoso morreu preso, em 16 de setembro de 1906, em consequência de nefrite intersticial, uma doença nos rins.
O corpo de Francelina foi sepultado em 14 de novembro de 1899 na sepultura nº 741 do Campo Santo do Cemitério da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Segundo a crença, por ter sido assassinada por um policial militar, a santa popular não atende a pedido de brigadiano.