Desafios da reconstrução
Mais de cem dias após enchente, nenhuma moradia prometida pelos governos federal e estadual foi entregue
Após promessas para junho e julho, União projeta disponibilizar pelo menos 80 residências para os atingidos pela inundação ainda em agosto; já o Executivo gaúcho deve entregar as 30 primeiras casas, que serão provisórias, na próxima segunda-feira (19), em Encantado
Assim como a maioria dos casais, Adriano Rodrigues Goulart, 43 anos, e a esposa, Fernanda Goulart, 40, sonhavam em ter uma casa própria após o casamento. O objetivo foi conquistado com um imóvel na esquina das ruas Olga Benário e Flávio de Oliveira Ramos, no bairro Farrapos, na zona norte de Porto Alegre.
Contudo, depois de mais de duas décadas morando no local, o casal agora será obrigado a se mudar: a residência foi mais uma das inundadas e condenadas pela enchente que devastou o Rio Grande do Sul em maio.
Mas Adriano e Fernanda vivem um impasse. Mesmo com laudos da Defesa Civil e da Secretaria Municipal de Habitação atestando a impossibilidade de continuarem morando na casa — que teve a estrutura comprometida, após ficar mais de um mês inundada —, entendem que é melhor ficar ali do que ir para um abrigo provisório.
Junto com eles, estão no local a filha, de 25 anos, e um neto, de seis, além de três cachorros. Em dias de chuva, o nervosismo com as possíveis consequências e as lembranças do passado recente tomam conta do casal.
— A cada dia ou noite que chove a casa balança e as rachaduras aumentam. Com mais de 40 anos, pela primeira vez na vida tive que começar a tomar remédio pra conseguir dormir — diz Adriano.
A família da Zona Norte se encaixa na faixa 1 do Minha Casa Minha Vida (MCMV), com renda mensal de até R$ 2.640. Para as famílias das faixas 1 e 2 do programa e que tiveram suas moradias comprometidas pela enchente, o governo federal prometeu dar residências novas. Até o momento, no entanto, nenhuma foi entregue aos atingidos.
Esta reportagem faz parte de uma série que mostra como está a reconstrução do Rio Grande do Sul em oito áreas essenciais para a recuperação do Estado (veja abaixo o cronograma). Os dados são do Painel da Reconstrução, do Grupo RBS.
As casas que o governo federal prometeu serão entregues em duas modalidades. A primeira é por compra assistida.
Nesse modelo, mais de 5 mil imóveis já prontos para morar foram cadastrados na Caixa Econômica Federal. As famílias poderão escolher uma dessas residências, e a União fará a compra no valor de até R$ 200 mil por unidade.
Por ser uma operação mais rápida, as primeiras residências que o governo federal entregará a famílias que perderam suas casas na enchente serão nessa modalidade.
Segundo a Secretaria Nacional de Habitação (SNH), nesta semana, 80 famílias estão sendo chamadas para iniciar o processo de escolha dos imóveis já cadastrados — serão 20 famílias de Canoas, 34 de Montenegro, 19 de Novo Hamburgo e sete de Porto Alegre.
Conforme o governo, a organização das famílias elegíveis, por município, prioriza as que apresentem o maior número de membros enquadrados nos seguintes critérios: crianças ou adolescentes, idosos e pessoas com deficiência. Após essa etapa, deve ser utilizado como critério de desempate a família que se enquadrar em menor faixa de renda familiar — a de Adriano, por exemplo, não esteve entre as sete inicialmente contempladas na Capital.
"Queremos entregar as casas para este grupo ainda em agosto. Entre a escolha, a compra e a entrega, pode levar até 15 dias."
HAILTON MADUREIRA
secretário nacional de Habitação
Inicialmente, o governo federal projetou adquirir as primeiras moradias via compra assistida para a população ainda em junho, depois em julho, e agora planeja entregar as primeiras casas em agosto.
A demora no processo, alega o Executivo, se deve à demora das prefeituras em cadastrar e enviar a lista das famílias que tiveram as casas perdidas pela enchente. Em muitos casos, por sua vez, as administrações municipais argumentaram ter dificuldades técnicas e de força de trabalho para realizar os cadastros com maior celeridade.
— Na medida em que a casa for comprada, ela já será transferida para o nome da família beneficiada. São imóveis novos e usados, que já estão selecionados. Para que a gente possa operacionalizar a compra, nós precisamos que as prefeituras nos encaminhem os cadastros — afirma o ministro da Reconstrução, Paulo Pimenta.
Processo de cadastro e análise
A prefeitura de Porto Alegre, em nota, informou que já enviou o cadastro de 278 famílias para o governo federal. Afirma ainda que os envios estão acontecendo em dois formatos, via Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2ID), da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, e também por meio de ofícios direcionados à SNH.
"O município é responsável pela indicação das famílias. Para auxiliar na demanda de vistorias nos locais atingidos, foi publicado um edital para contratação de empresas e cooperativas de engenharia e arquitetura para produção de laudos técnicos de avaliação das casas atingidas pelas inundações de maio", diz a prefeitura, em nota.
Para efetuar a aquisição das moradias, o governo federal anunciou, via Medida Provisória 1.233/24, de 17 de junho, a integralização de R$ 2 bilhões ao Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) para a compra de até 10 mil unidades em áreas urbanas, além de mais R$ 180 milhões para 2 mil unidades custando R$ 90 mil cada em áreas rurais.
Construção de novas moradias
A segunda modalidade de entrega de moradias por parte do governo federal às famílias das faixas 1 e 2 do MCMV será no formato tradicional do programa, com parceria de construtoras e a construção de novas unidades habitacionais. Em 17 de julho, o ministro das Cidades, Jader Filho, anunciou 11,5 mil novas moradias no Estado.
Para incentivar que essas unidades habitacionais sejam construídas no menor espaço de tempo, vai ser pago um bônus de 5% para aqueles projetos que sejam construídos em 10 meses — a média regular é que as construções fiquem prontas em um prazo entre 17 e 24 meses.
Do total de 11,5 mil novas casas, Porto Alegre e Canoas deverão receber 3 mil unidades cada. A lista de cidades contempladas segue com Novo Hamburgo (1,3 mil), Eldorado do Sul (900), São Leopoldo (800), Estrela (800), Charqueadas (600), Cruzeiro do Sul (500), Lajeado (300) e Santa Maria (300).
Em um primeiro momento, somando as aquisições via compra assistida e a construção de novas casas, o governo federal projeta entregar cerca de 20 mil unidades habitacionais às famílias das faixas 1 e 2 do Minha Casa Minha Vida. Levantamento que está sendo realizado pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Urbano e Metropolitano, em parceria com a Univates, já mapeou 6,4 mil casas de famílias das faixas 1 e 2 que foram destruídas ou condenadas pela enchente, mas este número ainda deverá crescer até o fim do estudo, que deve ser concluído em até um mês.
Além dessas iniciativas, o governo federal também já anunciou que irá pagar parte da entrada de novas casas para famílias que são da faixa 3 do programa (renda mensal bruta entre R$ 4,4 mil e R$ 8 mil).
Ações do governo do Estado
Além das ações anunciadas pelo governo federal, a gestão estadual também anunciou iniciativas para atenuar o déficit habitacional causado pela enchente. Com recursos próprios, o Piratini construirá casas permanentes e moradias provisórias para os atingidos pela tragédia.
Ainda no final de maio, foi anunciada a modalidade "Calamidade" do programa A Casa É Sua. O investimento previsto é de R$ 56,4 milhões, e deverão ser entregues 300 casas definitivas na primeira etapa e outras 105 na sequência.
O programa prevê a construção de casas com 44 metros quadrados de área, divididos em dois dormitórios, sala e cozinha conjugadas, um banheiro e área de serviço externa.
De acordo com a Secretaria Estadual de Habitação, o recurso do programa está disponível, a autorização para a ordem de início de construção das casas definitivas já foi dada e os convênios com os oito municípios da primeira etapa estão assinados desde 23 de maio. Ainda segundo a pasta, as prefeituras definem os beneficiários entre os que tiveram as casas totalmente destruídas, com prioridade para famílias em situação de vulnerabilidade social, e indicam os terrenos para as moradias.
O trabalho de preparação dos terrenos nos municípios começou em junho, e as casas poderão ser entregues em 120 dias após os terrenos estarem aptos. Os oito municípios que receberão moradias nessa primeira etapa do programa serão Cruzeiro do Sul (40), Encantado (30), Estrela (40), Lajeado (35), Muçum (56), Roca Sales (35), Santa Tereza (24) e Venâncio Aires (40).
— Até o final de setembro nós queremos entregar as primeiras casas. E por que não todas elas? Porque nem todos os terrenos foram disponibilizados ao mesmo tempo. Ao passo que o terreno ficar pronto, há um prazo para a empresa entregar a casa em 120 dias — destaca o secretário estadual de Habitação, Carlos Gomes.
Primeiras entregas serão de moradias provisórias
A primeira entrega de novas moradias para famílias que perderam suas casas na enchente deverá ocorrer na próxima segunda-feira (19), em Encantado. Com a presença do governador Eduardo Leite, o governo estadual fará a entrega de 30 casas, que serão residências provisórias.
Ao todo, o governo do Estado prevê investimento de R$ 66,7 milhões para instalação de 500 unidades habitacionais de construção modular em chassi metálico. As unidades medem 27 metros quadrados e são compostas por um dormitório, sala e cozinha conjugadas e banheiro. Os módulos serão entregues com mobiliário feito sob medida e eletrodomésticos (fogão e geladeira).
Em uma primeira etapa, serão beneficiados, além de Encantado, os municípios de Cruzeiro do Sul, Eldorado do Sul, Estrela, Lajeado e Triunfo. As famílias não terão imposto prazo máximo de permanência no local, e, na medida em que as casas definitivas ficarem prontas, deverão se mudar.
Uma das famílias que receberá as residências provisórias em Encantado é a de Maiara da Rosa Schuman, 28 anos. Junto ao marido, Fernando Weyrich, o filho Bernardo, sete anos, e a caçula Ana Maria, de dois, Maiara morava no bairro Navegantes e teve a casa destruída durante a tragédia climática. Depois de ficar meses em um abrigo municipal, agora vai receber um novo lugar para viver.
— Como eu tenho o Bernardo, que é autista, nos abrigos às vezes tem muito tumultuo, muito barulho. A prefeitura perguntou se a gente aceitava ir pra lá, a gente foi dar uma olhada e gostou. É aconchegante, confortável, e quando eu entrei lá, eu pensei, "bom, pelo menos vou estar bem e com o meu filho fora do barulho" — diz.
A série de reportagens
- 7 de agosto - Crédito ao setor produtivo
- 8 de agosto - Aeroporto Salgado Filho
- 9 de agosto - Escolas públicas
- 12 de agosto - Hospitais
- 13 de agosto - Rodovias
- 14 de agosto - Moradias
- 15 de agosto - Prevenção contra enchentes
- 16 de agosto - Ajuda social