Ajuda humanitária
"O maior aprendizado que se pode ter é a empatia": as lições da enchente para muitos estudantes do RS
Calamidade ambiental vivida em maio pelos gaúchos deixou milhares de desabrigados e desalojados. Para muitas crianças e adolescentes, o momento foi de exercício de solidariedade e união
Tudo mudou, no Rio Grande do Sul, desde maio. Nas escolas, não foi diferente: se centenas de instituições foram atingidas pela enchente, dezenas de outras serviram de abrigo para famílias que não tinham mais casa. Na memória dos estudantes, seguem vivas as imagens de tristeza, mas, também, de mobilização e união, que deixaram uma lição de empatia e solidariedade.
No Colégio Anchieta, o espaço Morro do Sabiá acolheu cerca de 200 moradores do bairro Humaitá, 109 colaboradores e 55 estudantes. A comunidade escolar se mobilizou com marmitas, doações e atividades culturais. Os alunos da 2ª série do Ensino Médio fazem trabalho voluntário no Centro Fé e Alegria, na Vila Farrapos, que foi atingido pela enchente e agora recebe ajuda emergencial.
— Pude ficar com as crianças e ajudar na entrega de doações, triagem de cestas básicas, de roupas, no descarte de material que foi perdido. O maior aprendizado que se pode ter é a empatia ao ver aquele monte de lixo nas ruas, aquele monte de gente fazendo fila para conseguir o mínimo. Foi uma experiência que eu não tenho palavras para descrever — lembra Thiago Chagas da Silva, 17 anos.
O adolescente relata que essa vivência só foi possível porque ele e os colegas saíram da “bolha” de quem vive em regiões não afetadas pela água, e que é impossível imaginar o que as vítimas da enchente estão passando: o que dá é para tentar ajudar o máximo possível.
Maria Clara Carvalho, 16 anos, é voluntária desde 2022 no Fé e Alegria, que permaneceu por 21 dias debaixo d’água. Nesse período, apoiou no atendimento no Morro do Sabiá, brincando com as crianças e cuidando dos cães resgatados.
— Foi muito diferente dos outros voluntariados, porque estávamos ali, com pessoas que tinham perdido a casa, a vida inteira. Uma hora, uma menina falou para um menino: “Tu nem sabe, acharam o teu cachorro e ele está vivo”. O menino ficou muito feliz, se ajoelhou, agradeceu. Poder ver que, por pior que a situação fosse, as pessoas conseguem se reerguer, foi muito legal — conta a estudante.
Quando a água baixou, o retorno ao Fé e Alegria foi marcante: pelas ruas que levavam à Vila Farrapos, um rastro de destruição guiou os voluntários ao centro social, que exibia destroços e marcas a quase 2 metros de altura.
Para Henrique Hinrichs, 17 anos, a enchente foi assustadora: como ele já frequentava o Fé e Alegria como voluntário, conforme chegavam notícias da subida da água, pensava no local:
Destruiu completamente a infraestrutura. É muito assustador ver uma instituição que construiu um patrimônio durante anos e, de um dia para o outro, chegar lá e estar tudo destruído, com as salas completamente vazias. E é um lugar que atende crianças em situação de vulnerabilidade, que precisam de ajuda.
PARA HENRIQUE HINRICHS
17 anos
O projeto no Fé e Alegria é coordenado pelo professor Clandio Cerezer, orientador de Convivência Escolar do Anchieta. No Morro do Sabiá, diz que a vivência junto aos abrigados foi algo “sem palavras”.
— O que se vivenciou lá foi muito além da empatia humana. Foi uma experiência de comprometimento efetivo com o ser humano, colocando-se no lugar do outro e trabalhando em prol desse outro, que precisava muito — recorda.
Grêmio Estudantil engajado
O Colégio Monteiro Lobato ajudou a recuperar a infraestrutura da Escola Municipal de Educação Infantil Ilha da Pintada. Entre os alunos da instituição também houve mobilização espontânea: os membros do Grêmio Estudantil buscaram doações por pix, que foram destinadas aos funcionários que tiveram casas atingidas. A proporção que essa vaquinha ganhou surpreendeu.
— Achávamos que iríamos juntar, no máximo, uns R$ 2 mil, mas o colégio divulgou a mobilização e conseguimos juntar R$ 10 mil em 20 dias. Foi uma loucura, ficamos em choque. Mas o Monteiro é diferente mesmo dos outros colégios: tem um senso de casa para nós, por ser pequeno, e, por isso, sentimos que tínhamos que fazer algo pelos funcionários. Uma moça da limpeza até quis nos agradecer pessoalmente — comenta Lucas Venturini, 17 anos.
O Grêmio Estudantil criou, ainda, uma ação que envolvia a confecção de ecobags personalizadas com o nome de famílias que estavam em abrigos. Dentro das sacolas, havia um kit banho. O engajamento dos alunos foi fruto de uma sensação que cresceu ao longo de maio, de que aquilo tudo era mesmo real e demandaria um esforço conjunto.
Às vezes, a gente pensa que não vai dar em nada, mas, conforme foi passando o tempo, eu fui vendo que aquilo realmente era uma coisa muito séria, e que não tinha como ignorar: não era uma chuva qualquer. Por isso, resolvemos fazer essa vaquinha. Começou com um susto e evoluiu para um trabalho em grupo. Uma comunidade se juntando para ajudar quem nos ajuda todos os dias.
GEORGIA PAIXÃO
17 anos
Lidando com as emoções
Mas nem só de escolas particulares vive a solidariedade pós-enchente. Mais próximas da realidade de muitos dos atingidos, dezenas de instituições públicas serviram de abrigo em maio e, agora, têm a missão de ajudar alunos a fazer com que a feridas e perdas cicatrizem da melhor forma possível. Somente entre as escolas estaduais, 74 serviram de alojamento.
A Escola Municipal de Ensino Fundamental Rondônia, de Canoas, fica em um bairro não atingido pela água. Mesmo assim, a maioria dos estudantes tem amigos e parentes que passaram pelo trauma de perder a casa. Por isso, a volta às aulas foi triste. Para auxiliar no processo de cura, a professora Sara Monteiro, que dá aula para o 4º ano, criou projetos para trabalhar emoções e o autocuidado.
— Eu queria saber o que eles tinham para dizer, porque é fundamental a gente ouvir o que eles têm para falar. E queria passar para eles que não podemos ignorar o que estamos sentindo, mesmo quando não estamos naquela situação de ter sido diretamente afetado — observa Sara.
A docente salienta que essas crianças já vinham de um período de pandemia, no qual também foram muito afetadas, e de intempéries registradas nos anos anteriores. Isso faz com que esta seja uma geração com mais dificuldades para lidar com sentimentos, apresentando sintomas como ansiedade, agressividade e dificuldades de aprendizagem, segundo Sara.
Entre os trabalhos trazidos pela professora, está a teia dos sentimentos, feita com um novelo de lã, jogado de um colega para o outro, que dizia alguma palavra de afeto para o amigo. O resultado se assemelha a uma teia que une todos os integrantes da roda. Depois, os alunos precisavam trazer, para um emocionário – um dicionário ilustrado –, uma explicação sobre a emoção que receberam do colega e em que contexto ela costuma ser sentida.
— Foi um momento em que eles aprenderam sobre cuidado com o meio ambiente e sobre ajudar outras pessoas, mas, principalmente, sobre respeitar os seus próprios sentimentos. A consciência das emoções é importante para a formação deles — defende Sara.
Preparação para emergências
No Colégio Farroupilha, a estrutura da escola, em Porto Alegre, serviu para pouso e decolagem de helicópteros que levavam doações, e, em Viamão, a sede campestre abrigou 68 famílias, que tiveram acesso a acolhimento psicológico e atendimento veterinário para os seus pets. A mobilização partiu de todos os lados: colaboradores, famílias, alunos e ex-alunos. Uma campanha de arrecadação de dinheiro para apoiar profissionais da área da educação atingidos também foi promovida, com cerca de 300 pessoas inscritas.
— Houve um envolvimento muito grande dos alunos. Mesmo sem aulas, eles não saíram daqui, ficavam ajudando em qualquer coisa. Descarregavam, organizavam, separavam roupas. Foi uma lição de união, solidariedade e muito respeito e cuidado com quem estava precisando — sintetizou Marícia Ferri, diretora pedagógica da instituição.
Para os alunos, por sugestão de Alexandre Cury, que é médico, pai de um aluno e tem experiência de 30 anos em ajuda humanitária, foi criada uma disciplina eletiva sobre questões emergenciais e climáticas.
— A ideia é levar para eles sempre o pensamento crítico e construtivo de o que eu posso fazer para responder a essas emergências, que vão ser cada vez mais comuns, cada vez mais frequentes. Como eu posso mitigar, como eu posso aliviar esse sofrimento? E isso só se consegue com treinamento e conscientização da população. E começa na infância — alerta Cury.
Um dos matriculados é Hayden Frank, 16 anos. Os momentos de turbilhão de sentimentos que surgiram na época da enchente ainda estão vivos na memória dele.
— Foi tudo muito novo. Então, como ajudar, com o que ajudar, ninguém sabia. Acho que nem mesmo os órgãos do governo sabiam como ajudar, sabiam da dimensão da situação. Foi tudo muito confuso, muito complicado e afetou todo mundo: mesmo quem não sofreu diretamente com a situação também foi afetado com as consequências dela — relembra o adolescente.
Isabela Gonçalves, 16 anos, também frequenta a disciplina, que resolveu fazer devido a um entendimento novo de que todos precisam estar preparados para a ajuda humanitária.
— Talvez, um ano atrás, eu não achasse importante, mas, agora eu percebo que é muito relevante, porque vai ser um cenário que a gente vai enfrentar cada vez mais. É uma certeza que a gente tem: pode ser mais ou menos intenso, mas a gente tem que saber lidar com isso, e eu acho que a eletiva nos ensina muito sobre isso, como lidar e como se preparar — pontua a estudante.
O estabelecimento de ensino ainda vai doar mobiliário para a Escola Municipal Tio Barnabé, de Porto Alegre, que recebeu a limpeza feita pela prefeitura. Voluntários deverão ser acionados para auxiliar nessa montagem.