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Canto que vem das Missões

Retratando a Guerra dos Sete Povos, troncos missioneiros trouxeram em versos as histórias dos excluídos

Noel Guarany, Jayme Caetano, Pedro Ortaçá e Cenair Maicá criaram um legado que ainda ecoa em todos os recantos do Estado

20/09/2024 - 05h00min


Diário Gaúcho
Diário Gaúcho

É necessário um preâmbulo um tanto longo quanto interessante para explicar quem são os troncos missioneiros, expoentes da música nativista gaúcha. Aqui vai: no fim do século 17, padres da Companhia de Jesus desembarcaram no Rio Grande do Sul para criar vilarejos onde adequariam os indígenas guaranis locais à cultura europeia. 

Nasciam as reduções jesuíticas no Brasil. Isso durou até 1750, quando o Tratado de Madri foi assinado, determinando que a região passasse ao domínio português, em troca da Colônia do Sacramento, no Uruguai, que passaria a ser espanhola.

Com a resistência tanto de padres quanto dos indígenas – que ali desenvolviam a agricultura, a religião e a música, entre outras coisas –, uma verdadeira chacina se viu por aqueles pagos, conforme explica o historiador e pesquisador Valter Portalete. E foram necessários mais dois séculos para que os artistas do que veio a se tornar o gaúcho, em essência, retratassem o personagem guarani e denunciassem a situação de abandono a que foram submetidos depois da investida dos exércitos português e espanhol. 

Noel Fabricio Borges do Canto da Silva foi o primeiro a fazer isto – e o fez com tanta entrega que personificou Noel Guarany (1941-1998). O interesse pelos povos originários da região das Missões ganhou outros três nomes de peso: Jayme Caetano Braun (1924-1999), Pedro Ortaça (o único ainda vivo) e Cenair Maicá (1947-1989)

Juntos, são considerados os troncos missioneiros. A classificação teve origem na produção de um disco em conjunto, idealizado pela gravadora USA Discos, no fim da década de 1980.

Quase 40 anos depois, o Rio Grande do Sul ainda reconhece nesses quatro artistas o cerne da cultura missioneira. Olhando para as Missões, eles explicam o mundo.

— Os quatro troncos fazem um canto missioneiro com letras recheadas de poesia. Aqui, na poesia, a gente faz uma diferenciação em relação aos demais – aponta o presidente da Estância da Poesia Crioula, Cândido Brasil.

Os troncos criaram um legado que ainda ecoa em todos os recantos do Estado e também mundo afora. O cantor e compositor Ângelo Franco é um dos representantes atuais da música missioneira que foram influenciados pelo quarteto. 

—  A principal influência está na parte da opinião, além dos ritmos. Na minha obra, é muito presente a musicalidade indígena, os ritmos ternários, por causa do bombo, tambor tocado pelos indígenas – comenta. 

Andréa Graiz / Especial
Angelo Franco: cantor e compositor é um dos representantes atuais da música missioneira.

Canto de Noel

Cria de São Luiz Gonzaga, foi nas andanças pela Argentina e pela América Latina que Noel descobriu a música sobre os indígenas. De tão afeiçoado, incorporou-os ao próprio nome. Teve contato com a obra de artistas como Mercedes Sosa e Atahualpa Yupanqui, que já falavam sobre os povos originários, mas na margem ocidental do Rio Uruguai.

Ao perceber que do lado de cá também havia misiones, e que não eram cantadas, passou a falar do indígena gaúcho, do peão de estância, do negro jogado à margem da sociedade. Surgia a música missioneira que ficaria marcada como a voz dos excluídos. Encontrou na obra do poeta Aureliano de Figueiredo Pinto muito do que gostaria de dizer em suas canções e musicou diversos de seus versos.

— O Noel dotou a música gaúcha de uma face índia que ela não tinha. O povo guarani tinha pendores para a música, para a arte, reproduziam com perfeição qualquer obra, mas não criavam. Não tinham maioridade artística, como não tiveram maioridade jurídica para se manter, mais tarde – observa o cantor e compositor João Sampaio, parceiro de estrada e de arte de Noel Guarany, autor do livro A Música Missioneira Gaúcha: a Gênese, o Criador e a Criatura.

Juan Carlos Gomez / Agencia RBS
Jayme Caetano Braun e Noel Guarany em apresentação.

Ortaça, o tronco derradeiro

Fresteando a Bailanta do Tibúrcio, que mais tarde tornaria célebre em canção homônima, aos cinco anos Pedro Ortaça via o salão abarrotado de moças e rapazes, entre os quais estavam seus pais e “dona China”. O fandango ocorria no Pontão Santa Maria, primeiro distrito de São Luiz Gonzaga.

— Já na adolescência, escutava meus pais, que tocavam gaita de oito baixos. Herança musical de meu avô Quintino Martins dos Santos. Depois, comecei a ir aos bailes de campanha, cantando a terra missioneira, sua história e sua gente — recorda.

Assim foi, até gravar o primeiro disco, Mensagem dos Sete Povos, em 1977. O álbum trazia canções como Licença Pra Um Missioneiro, escrita por ele em 1970, além de Beleza Missioneira, de Cenair Maicá, e Milonga do Payador, de Ortaça e Jayme. Dali em diante, cantou as Missões mundo afora. 

Pelo conjunto da obra, o único tronco missioneiro ainda vivo foi convidado para ser Patrono dos Festejos Farroupilhas em 2024 e representar os colegas, cujas histórias veremos a seguir.

Jayme, o mestre

No ano em que o nascimento do pajador Jayme completa um século, o tema dos Festejos Farroupilhas não poderia ser outro. Os versos que trazem a realidade do homem do campo, o indígena escorraçado da própria terra e até reflexões existenciais fazem dele o mais icônico representante da poesia gaúcha.

Jayme Caetano Braun cresceu brincando de combinar palavras. Mas foi por volta de 1958 que sua obra deu uma guinada. Apresentado ao pajador uruguaio Sandálio Santos, conheceu a 10ª espinela – formato em que as estrofes são compostas por 10 versos, com sete sílabas poéticas cada um, em um esquema de rima predefinido. 

Juan Carlos Gomez / Agencia RBS
Jayme Caetano Braun, Noel Guarany e Cenair Maicá.

Mestre em improvisação, logo alcançou a capacidade de criar versos sobre qualquer tema sem fugir da métrica.

O escultor Vinícius Ribeiro, estudioso da vida do pajador, divide a obra de Jayme em três fases.  A primeira versa sobre as coisas do cotidiano; a segunda, quando insere a voz dos excluídos, como o indígena e o negro explorado; por fim, suas palavras ganham um contorno mais abrangente e trazem reflexões acerca do sentido da vida e do transcurso do tempo. Sempre à luz do homem do campo.

— Considero marcante na obra do Jayme o poder de fazer a gente enxergar e se ver através do que ele escreveu, pois o que falou há 80 anos é tão atual. Seu legado é que a simplicidade da aldeia transcende o universo, basta seu povo ser livre e cultuar o que é seu — afirma a viúva do pajador, Aurora Braun.

Cenair fez um duo

Cria da barranca do Uruguai, em uma localidade onde hoje é Novo Machado, Cenair Maicá mudou-se ainda criança para a Argentina, onde aprendeu a tocar violão com um paraguaio. A língua espanhola e a música, portanto, faziam parte de sua rotina. 

Enquanto os irmãos e a mãe também tocavam gaita, despretensiosamente, o pai organizava bailes que, de tão badalados, tiravam o foco até mesmo da guarda costeira, facilitando o chibo (uma espécie de contrabando fronteiriço). O fato seria registrado em versos na canção Baile do Sapucay, anos mais tarde.

Tentou carreira em dupla com o irmão Adelque, mas a música não dava retorno. Enquanto trabalhava em uma empresa, alegava estar cansado de cantar sem objetivos. 

E foi justamente o que encontrou com o Noel Guarany, em um casamento lítero-musical entre os dois, conta o historiador e pesquisador Valter Portalete. Os dois passam a se apresentar em rádios na Argentina e fazem sucesso. Cenair firma parceria com um produtor musical, indicando artistas em troca de comissão, e junta dinheiro para gravar quatro músicas

A quantia bastou, ainda, para financiar um compacto com duas músicas para o parceiro Noel. Segundo Portalete, é quando o duo estoura de vez.

— O Jayme entra nessa linha e, logo depois, o Pedro Ortaça também. Dedicam-se à temática de cantar a raiz missioneira e falar de valores como o cooperativismo, característico dos indígenas missioneiros — completa.

Legado de vozes perenes

O ato de cantar os excluídos, a liberdade e os valores que regem o gaúcho continua a fazer morada na obra de muitos artistas missioneiros. 

Na música ou na pajada, nomes como Baitaca, Xirú Missioneiro, Mano Lima, Telmo de Lima Freitas, Luiz Carlos Borges, Jorge Guedes, Érlon Péricles, Ângelo Franco, Gilberto Monteiro e José Estivalet são alguns dos que vêm à memória dos estudiosos, quando se fala em perpetuação dessa vertente.

O cantor e compositor Ângelo Franco observa que o primeiro traço definidor da estética da música missioneira é a opinião. A forte presença da guitarra (o violão, chamado assim pela influência hispânica), a relação com a geografia (os rios e o campo) e o conteúdo histórico completam essa roupagem.

— O missioneiro canta muito em primeira pessoa para falar do mundo. Utiliza-se de si mesmo como exemplo para pensar, refletir e opinar — sintetiza.

— Eu vivi muito pelo Paraguai e Argentina. Fiz um disco chamado Das Missões às Cordilheiras e fui para Machu Picchu conviver com os indígenas — relata Jorge Guedes.

Quanto à musicalidade, Franco vê grande influência da sonoridade indígena. Os ritmos ternários, embalados pelo bombo leguero, e o uso do silêncio denotam essa herança – presente em descendentes diretos que mostram que o DNA tem a mesma força do indígena cantado por seus antecessores. 

Gabriel Ortaça e seus irmãos, Marianita e Alberto, apresentamse junto ao patriarca, Pedro, por todos os rincões.

— A importância dos quatro troncos missioneiros transcende gerações e ficará para as futuras, que virão beber desta vertente de cantiga e verso —  defende Gabriel.

Já Laura Guarany comenta que sempre foi motivo de orgulho carregar o sangue do pai.

— Ele serviu de inspiração e de guia para meu trabalho. Tudo que faço e fiz é pensando no legado que ele deixou —  garante.

Quem também leva adiante o cantar missioneiro é Patrício Maicá, assim como os cerca de 15 músicos que partilham o sobrenome. 

— O reconhecimento a esses troncos orgulha muito nossa família —  resume o filho de Cenair.

Quatro troncos e seus versos marcantes

Pedro Ortaça

Em Bailanta do Tibúrcio, relata os bailes a que assistia pelas frestas do galpão, ainda criança, e compõe o disco Troncos Missioneiros:

"Vou contar de uma bailanta que existiu no meu pontão
Indiada do queixo roxo que nunca afrouxou o garrão
Vinho curtido em barril e cachaça de borrachão”

Jayme Caetano Braun 

Em Payada do Safenado, conta sobre seu problema de saúde e aproveita para traçar um paralelo com a política nacional:

(...) Não é falta de dinheiro
Mas muito pelo contrário
É problema coronário
A crise dos três poderes
Que esquecendo dos deveres
Se fartaram de salário (...)”cá 

Cenair Maicá

Em Baile do Sapucay, em que retrata os eventos promovido pelo próprio pai na fronteira entre os dois países, marcada pelo Rio Uruguai:

"(...)
São duas pátrias festejando nesta dança Repartindo a mesma herança, comungando a mesma rima
Disse o Cindinho que o Uruguai beija os nubentes
Une o casal continente, pai Brasil mãe Argentina
E disse o poeta que o lendário rio corrente
Une o casal continente, pai Brasil mãe Argentina”

Noel Guarany 

Em Precedência, registrada no disco Troncos Missioneiros, em que fala sobre a ancestralidade que marca a relação de sua obra com a tribo guarani que viveu na região.

"(...)
E, quando chegaste,
gringo
Já levantando alambrado
Te assenhorando do gado
Tesouros da redução
Nem Tiaraju sonharia
Que a tua soberania
Magoasse o pampa, pagão
O índio vive cativo
Reserva é como prisão
O verde campo nativo
Cedeu lugar à erosão
(...)"

*Produção: Padrinho Conteúdo 


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