"É uma guerreira"
Conheça a história de Cleo, cadelinha cadeirante que ganhou novo lar ao ser resgatada na enchente
Animal conseguiu escapar da água, mas teve a coluna quebrada em um atropelamento. Em um abrigo da Capital, recebeu o cuidado de voluntários e encontrou uma nova família
Para quem gosta de animais, o 4 de outubro não deve passar despercebido. Nesse dia, cães, gatos e até mesmo passarinhos são levados por seus tutores para dentro de igrejas católicas, singela homenagem ao seu padroeiro, pessoa bondosa e extremamente desapegada de bens materiais, que há quase mil anos mostrou que somos todos obras do mesmo Criador. E, assim sendo, nada mais justo do que respeitar aqueles com os quais compartilhamos o mesmo oxigênio.
No aniversário da morte de São Francisco de Assis, celebramos o Dia Nacional da Adoção Animal, outra forma de lembrar nossas responsabilidades com aqueles que vivem sob nossa tutela, criaturas vulneráveis que não teriam condições de sobreviver sem uma mãozinha solidária.
Nesse quesito, a gauchada mostrou, sem a menor ostentação e movida apenas pela emoção, que o santo deixou muitos discípulos por aqui, dois deles nas figuras de Franciele Menezes e Luiza Hoffmann Fronckwiak, voluntárias que viram o centro de reabilitação veterinária que gerenciam se transformar em um pronto socorro de animais nos dias subsequentes à enchente de maio.
Cleo fugiu da água, mas não escapou de atropelamento
O que era uma sala de aula para treinamento de fisiatras veterinários rapidamente se encheu de cães e gatos, alguns se recuperando de cirurgias e outros realmente destroçados, pacientes indefesos que construíram um cenário caótico com novos e exaustivos desafios surgindo diariamente.
Ainda que uivos e miados tenham incomodado bastante os vizinhos, Luiza e sua equipe estavam determinadas a dar uma chance a todos os mascotes que chegaram ao abrigo — o que conseguiam por meio de doações —, e isso incluía uma cadela mestiça que, por conta própria, conseguiu fugir da água que invadiu sua casa, mas não dos perigos de uma estrada escura onde um carro desconhecido quebrou sua coluna.
No início, houve quem tenha sugerido eutanásia. Tantos animais necessitados e responsabilidades cada vez maiores mereciam uma trégua, mas não passou pela cabeça de Luiza interromper a vida de nenhum dos resgatados. A pequena Cleo, como foi chamada, já tinha perdido muita coisa, e não era justo perder também a vida. De acordo com a voluntária, o que os resgatados precisavam era de amor e compreensão de uma pessoa muito especial.
Já dizia Francisco de Assis: basta um raio de sol para afugentar todas as sombras. E essa pessoa especial, vejam só, não estava longe dali.
A veterinária Vivian Britz Dias, que também integrava o time das voluntárias na Reabilitação Veterinária Ametista, estava ciente do que enfrentaria levando Cléo para morar com ela e o namorado. Vivian estava no meio de uma mudança de endereço quando se sentiu fisgada por um par de olhinhos miúdos, pretos e brilhantes que pareciam agradecer o tempo todo a atenção recebida. Quando os olhos se encontram, o resto é questão de tempo.
Pouco depois de um mês, Cléo estava em sua nova casa se adaptando a uma cadeira de rodas.
No início, tudo foi bem difícil, mas, cinco meses depois, a resgatada mostrou ser uma testemunha incontestável de que é possível ser feliz pelo simples fato de estar vivo. O professor Gabriel Reali Santos, também tutor de Cléo, reorganizou a agenda para ter parte ativa na recuperação dela.
— Ela é uma guerreira, um doce de criatura, sempre de bem com a vida. Foi uma bênção a Cléo morar com a gente, a melhor decisão que pude ter —conclui uma orgulhosa tutora que vibra a cada conquista de sua mascote.
A vida segue seu curso, mas São Francisco não tira cochilo. Quando Vivian se ausenta do Estado por muitos dias, uma ajudinha extra entra em cena. Nessas horas, é a vez da acadêmica Juliana Martins dar prosseguimento às técnicas de reabilitação e aos tratamentos da pequena sobrevivente. A "transferência de mãe" se justifica, uma vez que os cuidados com Cléo continuam intensos.
— Ela é uma mascote criada a três —esclarece Vivian, profundamente agradecida pela ajuda.
Gratidão, aliás, foi característica marcante na vida de Francisco de Assis. Para quem não se lembra, o santo pedia para ser instrumento da paz divina, levando esperança onde houvesse desespero, alegria onde reinava a tristeza e luz para quem estivesse perdido na escuridão. E os animais, nossos irmãos, também seriam dignos dessa compaixão, que tomou conta dos gaúchos e que levou tanto conforto a quem precisava.
A verdadeira riqueza é encontrada no amor e na caridade
Os números de adoções no Rio Grande do Sul são provas irrefutáveis de que a pregação do santo encontrou terreno fértil por aqui.
De acordo com Fabiane Tomazi Borba, secretária municipal do bem-estar animal, dos mais de 6 mil abrigados no município de Canoas, restam albergados 858 cães e 74 gatos. Em Porto Alegre, os 253 animais conduzidos para o Centro Universitário Metodista (IPA) tiveram um lar como destino. E, dos mais de 700 animais nos abrigos dos shoppings Pontal e Iguatemi, 41 seguem sob a tutela municipal e do Santuário Voz Animal.
Se é dando que se recebe, muita gente, mesmo sem perceber, deu férias para a solidão assim que acabou com o sofrimento de um pedacinho do céu que é um animal de estimação.
Cléo, outrora assustada e mergulhada no desamparo, transborda para todos nós não apenas uma contagiante alegria, mas algo muito maior, intenso e quase divino que aparece quando a gratidão está presente. É bom quando entendemos, por meio de experiência própria, o que os grandes sábios tentaram nos explicar. Francisco dizia que no amor e na caridade se encontrava a verdadeira riqueza. E um dia, abraçados em uma criatura desprovida de qualquer interesse ou maldade, nos damos conta de que não precisamos mais procurar.
Onde adotar?
Adoção dos remanescentes do Iguatemi
- Feira de Adoção Barra Shopping Sul
- Travessa do Carmo, 120, Cidade Baixa, Porto Alegre
- 5 e 6 de outubro, das 14h às 19h, no estacionamento coberto
Adoção em Canoas
- Avenida Boqueirão, 1986, bairro Igara, Canoas
- 12 e 19 de outubro, das 10h às 16h
Adoção Clínica Ametista - Reabilitação Veterinária
- Rua Portugal, 544, Bela Vista, Porto Alegre
- @ametista.resgatados
Daisy Vivian é diplomada pela UFRGS em Medicina Veterinária e Jornalismo. É autora dos livros "Cães e Gatos Sabem Ajudar Seus Donos" e "Olhe-me nos Olhos e Saiba Quem Você É", histórias reais sobre pessoas e seus animais de estimação.