Pesquisa inédita
Mulheres brancas, heterossexuais, com mais de 50 anos: o perfil de quem convive com HIV no RS
Em análise recente, dados do estudo Atitude apontam as características dos indivíduos infectados pelo vírus causador da aids no RS. Pesquisa já revelou epidemia generalizada na região metropolitana de Porto Alegre
Entre as milhares de pessoas diagnosticadas com o vírus da imunodeficiência humana (HIV, na sigla em inglês) no Rio Grande do Sul, um perfil se destaca: são mulheres, brancas, heterossexuais e com mais de 50 anos. Essas características foram apontadas por uma análise recente dos dados do estudo Atitude, que em 2023 revelou que a região metropolitana de Porto Alegre enfrenta uma “epidemia generalizada” do vírus causador da aids.
Desenvolvido pelo Hospital Moinhos de Vento, por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS), em parceria com a Secretaria Estadual da Saúde (SES), o estudo mapeou o comportamento, as práticas e as atitudes da população em relação às infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). Eliana Wendland, epidemiologista do Moinhos e investigadora principal da pesquisa, ressalta que o levantamento foi feito devido aos dados alarmantes de HIV no Estado.
— Temos no Rio Grande do Sul a maior taxa de mortalidade por HIV do Brasil. Se formos ver por capital, por exemplo, Porto Alegre tem a maior taxa de detecção de HIV em gestantes. Então, esses estudos são feitos para vermos se os boletins oficiais estão captando o que realmente existe. E o que temos de novidade agora é que olhamos para os dados do ano passado, que apontam uma epidemia generalizada na Região Metropolitana, para saber quem são essas pessoas — esclarece.
Essa nova etapa da pesquisa observou características de 7.978 participantes, identificando 81 pessoas que vivem com HIV no Estado. Nesse grupo em específico, examinou itens como idade, sexo, raça, classe econômica, nível de escolaridade, gênero, estado civil, orientação sexual e se já utilizaram drogas ilícitas ao longo da vida.
A análise dos dados apontou que 61,9% das pessoas infectadas são mulheres e 38,1% homens. A maior parte delas (45,2%) tem 50 anos ou mais, é branca (59,8%) e heterossexual (86%) — contrariando o estigma de que o vírus estaria mais presente entre homossexuais.
Na visão de Eliana, o detalhamento trouxe informações interessantes, principalmente pelo fato de que as características dos pacientes da Região Metropolitana e do Interior são bastante distintas. Um exemplo é a divisão entre brancos, pardos e negros:
— No interior do Estado, a maioria das pessoas vivendo com HIV é branca. Na região metropolitana de Porto Alegre já temos uma distribuição de raça diferente. A maioria continua sendo branca, mas temos uma proporção maior de negros e pardos. Na classe social também vemos uma diferença, embora a C seja a com maior número em ambos, na Região Metropolitana temos mais pessoas pobres (D e E) vivendo com HIV.
A faixa etária é outro ponto que chama a atenção. Na Região Metropolitana, apenas 14,4% das pessoas infectadas têm entre 18 e 29 anos, enquanto no Interior essa porcentagem mais do que dobra: 31,6%.
— Podemos pensar várias coisas sobre isso. Primeiro, que essas pessoas com HIV na Região Metropolitana estão vivendo há mais tempo com o vírus, enquanto no interior do Rio Grande do Sul podemos ter pessoas se infectando em idades mais precoces — comenta a epidemiologista, que também é professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
Vírus em toda a população
Para a pesquisadora, os dados em relação à orientação sexual e ao uso de drogas ilícitas ao longo da vida — 83% afirmam nunca ter usado — são muito importantes para a quebra de estigmas sobre o HIV, já que destacam que o vírus não está presente apenas em um grupo específico de pessoas:
— Acho que essa mudança de característica da população que vive com HIV aqui no Estado mostra, realmente, que a epidemia infelizmente alcançou a população como um todo e que estamos com uma transmissão sustentada. É isso que quer dizer uma epidemia generalizada: quando a transmissão é sustentada na população e não mais em grupos específicos.
Eliana considera os resultados do estudo fundamentais para que sejam elaboradas políticas públicas e medidas de prevenção e de diagnóstico precoce direcionadas a essas pessoas, a fim de tentar frear o avanço das infecções. Pondera, contudo, que quando a epidemia está sustentada na população inteira fica mais difícil encontrar, conscientizar e tratar esses pacientes.
A especialista aponta, ainda, que o fato de Porto Alegre ter a maior taxa de detecção de HIV em crianças menores de cinco anos, sendo a maioria decorrente de transmissão vertical (da mãe para o filho), deixa claro que as medidas de identificação e controle não estão funcionando — já que as mulheres deveriam ser diagnosticadas e tratadas ainda durante a gravidez, evitando que o vírus fosse transmitido para o bebê.
— Não vejo um cenário de melhora a curto prazo. Teríamos que ter toda uma política aqui no Estado, trazer o HIV/aids à tona de novo e ir em todos os lugares para testar essas pessoas. Hoje vemos a testagem sendo feita em grupos mais específicos. Ou mudamos a maneira como estamos olhando para o assunto ou não vamos conseguir fazer com que essa situação melhore — reforça a epidemiologista.
Medidas do Estado
A falta de ações imediatas para frear o avanço do vírus pode fazer com que os números aumentem ainda mais nos próximos anos, alerta Eliana. Em nota, a Seção de Doenças de Condições Crônicas Transmissíveis da SES informou que os altos índices de infecção no Estado são multifatoriais, incluindo aspectos culturais, sociais, educacionais e comportamentais, e que há a necessidade de ampliar e fortalecer as estratégias de prevenção combinadas, bem como de retomar o debate da prevenção nos espaços escolares com os adolescentes e jovens.
Entre as ações estaduais voltadas ao tema, a SES destaca o Programa PrevineRS, norteado pelos eixos de eliminação da transmissão vertical, prevenção de novas infecções, redução da mortalidade e fortalecimento da sociedade civil. Já o Programa Geração Consciente: o Cuidado Transforma tem como objetivo “efetivar ações de prevenção e promoção em saúde por meio de jogos culturais e educativos, abrangendo temas pertinentes à faixa etária e que estão atrelados à prevenção combinada ao HIV e direitos sexuais e reprodutivos”.
A pasta também aponta que vem ampliando e qualificando as testagens rápidas, ressaltando que os testes estão disponíveis em todas as unidades básicas de saúde do Estado. Entretanto, ponderou que ainda é preciso “incentivar a oferta deste diagnóstico, facilitar o acesso da população e utilizar estratégia de livre demanda (sem agendamento)”, bem como “buscar a capacitação constante dos profissionais que realizam os testes”.
Além disso, destaca que o Estado está trabalhando para fomentar a implementação dos Comitês Municipais de Investigação da Transmissão Vertical do HIV e Sífilis e que, atualmente, estão instituídos 10 comitês regionais e outros 19 municipais. Já em relação às ações para reduzir a mortalidade, a pasta cita a criação de um incentivo financeiro estadual para custeio de 26 centros regionalizados a fim de qualificar e ampliar a oferta de atendimentos especializados e de ações de prevenção.
Zero Hora questionou o Ministério da Saúde sobre ações voltadas ao Rio Grande do Sul, a fim de reverter os números alarmantes, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.