Trauma
"Parece que foi um pesadelo": como está a vida dos migrantes climáticos após a enchente de maio
Conheça a história de duas famílias que decidiram trocar de cidade após a cheia histórica ocorrida no ano passado no Estado
O Rio Grande do Sul chegou a registrar meio milhão de migrantes climáticos em maio do ano passado. São pessoas que precisaram deixar uma cidade e viver em outra em função da enchente. Na época, quando dezenas de municípios estavam inundados, a Defesa Civil do Estado apontou que mais de 615 mil pessoas tiveram de abandonar suas residências no RS.
O governo estadual e a Defesa Civil não possuem dados sobre os deslocamentos desses grupos. Mas Nova Santa Rita, na Região Metropolitana, por exemplo, recebeu 5 mil migrantes do clima, enquanto Guaíba, na mesma região, chegou a abrigar de 10 mil a 12 mil pessoas, conforme os municípios.
O painel Monitoramento de Abrigos Eventos Adversos 2024, da Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes-RS), não contabiliza a situação dos migrantes climáticos, mas aponta o número de desabrigados. Na segunda-feira (27), ainda havia 981 pessoas nessa situação em razão dos impactos da cheia. O município de Canoas liderava a lista, com 394 desabrigados.
Conforme dados do relatório anual de 2024 do Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno (Idmc), o Brasil foi responsável por mais de um terço dos deslocamentos ocasionados por desastres na região das Américas com 745 mil. Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná foram afetados por chuvas recordes, desencadeando mais de 183 mil deslocamentos.
A Agência da ONU para Refugiados (Acnur) estima que cerca de 40 mil pessoas que necessitam de proteção internacional foram atingidas pela enchente, em especial venezuelanos e haitianos. Mas não tem números sobre os migrantes climáticos no RS.
"Para mim parece que foi um pesadelo"
Cleonice Goetz Pereira, 67 anos, foi uma das pessoas que trocaram de cidade após a tragédia climática. A técnica em enfermagem aposentada vivia no bairro Mathias Velho, em Canoas. A cheia obrigou a família a sair da casa e ficar um período abrigada.
— Quando deu a enchente, nós nos hospedamos em Estância Velha na casa do sogro da minha filha. Ficamos lá uns 15 dias mais ou menos — estima.
Cleonice esperou a água baixar em Nova Santa Rita, onde a filha tem casa. Ficou na companhia dela por cerca de 20 dias. Foi durante essa experiência que conheceu a cidade melhor e decidiu, junto ao marido, comprar uma residência no bairro Pedreira.
— Essa decisão de se mudar partiu mais do meu esposo. Aqui parece que tu tá na praia, é um lugar tranquilo e calmo. Para mim foi mais doído, porque eu fui para Mathias Velho com sete anos. Estou sofrendo um pouquinho e sinto saudades de lá — revela.
Na casa deixada para trás houve perda total, mas deu tempo de salvar o carro. Quando a água baixou, a família voltou para limpar e resgatar da lama o que era possível. Um dos filhos de Cleonice, que morava no terreno ao lado, permanece na moradia da mãe que ficou quase toda submersa.
A mudança de Canoas para Nova Santa Rita ocorreu em 22 de setembro de 2024. No sobrado onde vive agora estão alguns objetos que resistiram à inundação e à lama. Foi o caso das cadeiras e do fogão. A cozinha e outras coisas foram doações recebidas. Uma imagem de Nossa Senhora Aparecida ocupa lugar de destaque na sala.
Na quarta-feira (22), Cleonice estava feliz da vida. O motivo foi a chegada do roupeiro novo. Enfim, as roupas seriam retiradas das sacolas e colocadas no local apropriado depois de longos oito meses de espera.
— Para mim parece que foi um pesadelo. Às vezes, eu fico pensando "será que aconteceu isso comigo?". Estou morando em outra cidade, em outro lugar. É um pesadelo o que a gente passou. Foi coletivo, todos passaram — desabafa.
O secretário de Desenvolvimento Urbano de Nova Santa Rita, Juliano Furquim, afirma que os voluntários que atuaram nos resgates traziam as pessoas de barco especialmente para o bairro Morretes, que também sofreu com a cheia:
— As pessoas vinham do bairro Morretes, que era o mais perto do rio e se espalhavam pela cidade através de casas de parentes — observa.
Conforme Furquim, o desafio atual da cidade diz respeito a 60 famílias do próprio município contempladas pelo programa Compra Assistida. Há poucas casas à disposição para venda e aluguel em razão da alta procura.
— Em 2024, Nova Santa Rita licenciou mais de 550 construções, 60% a mais do que em 2023. A pessoa que tinha um terreno na cidade comprado como investimento decidiu se mudar.
O auxílio de cidades catarinenses foi determinante para Nova Santa Rita superar o período da enchente. O quartel-general foi montado no Parque de Eventos Olmiro Brandão, onde quase 6 mil refeições eram oferecidas diariamente. O Centro Humanitário de Acolhimento Nova Santa Rita foi construído no bairro Caju.
— Somos muito gratos ao povo de Santa Catarina. Tivemos as cidades de Indaial e Caçador que nos adotaram. Nos mandaram muito material e conseguimos atender todo mundo.
Lágrimas e desabafo: "É um trauma muito grande"
A líder de produção Simone Souza, 50, não contém as lágrimas ao recordar sua vida antes da água subir e deixar sua casa submersa no bairro Chácara, em Eldorado do Sul, onde vivia com a família havia 28 anos. Em razão do trauma, decidiu se mudar para Guaíba.
— Ficamos 25 dias na casa de um parente aqui em Guaíba sem saber quando a água ia baixar ou quando seria o retorno — narra Simone, que trocou de cidade junto do marido, de dois filhos e cinco cachorros.
A família tinha moradia própria nas proximidades do rio Jacuí. A região foi uma das mais impactadas pela inundação. A água subiu rápido e obrigou todos a sair praticamente só com as roupas do corpo.
— Não tinha probabilidade de voltar para Eldorado, acabei alugando e ficando em Guaíba — conta Simone, dizendo que perdeu tudo da casa.
Relembrar os momentos de fuga ainda é uma tarefa difícil. As lágrimas escorrem pelo rosto quando mostra fotos dos filhos retiradas da lama.
— É um trauma muito grande. Até hoje a gente lembra olhando fotos, porque é uma vida que a gente conquistou e se perder assim... Ver que não temos força para fazer nada contra aquilo ali. Tu pega só o que é necessário e deixa tudo para trás. Isso é bem traumatizante.
Os primeiros dias na casa alugada foram com colchões no chão e recebendo doações de pessoas sensibilizadas pela situação. A mudança de casa e cidade foi realizada em 20 de maio de 2024, quando a água ainda estava elevada. Agora, a família mora no bairro Parque 35 e não pretende mais voltar para Eldorado.
— Não pretendo voltar. Quero futuramente tentar vender. Quero me restabelecer em Guaíba e comprar casa aqui — planeja.
A vice-prefeita de Guaíba, Claudinha Jardim, menciona que no auge da inundação as pessoas chegavam de Eldorado do Sul, Porto Alegre e Canoas. O bairro Moradas da Colina concentrou o maior número de migrantes:
— Muitos começaram a retornar para suas cidades de origem ou até para outros lugares, mas pelo número de serviços de atendimento público municipal que temos, percebemos que estamos com mais pessoas do que era o habitual antes da calamidade.
Em junho de 2024, quando houve o retorno das aulas na rede pública municipal, foram registradas cem novas matrículas de transferências de outras cidades para Guaíba.
As pessoas que chegavam na cidade ficavam em casas de parentes e amigos. A vice-prefeita diz que os eldoradenses já começaram a procurar casas para locação logo nos primeiros dias.
— Pessoas que moravam em Eldorado e tinham residência em Guaíba, mas estava alugada, pediram para as imobiliárias para rever suas moradias. Teve um disparo no mercado imobiliário, tanto que valorizou o valor dos aluguéis em regiões como Colina e no Jardim dos Lagos, que não foi afetado pela enchente.
O número de pessoas em situação de rua também cresceu em Guaíba. Eram 169 pessoas em 2023; no ano posterior chegou a 207. Segundo a prefeitura, nem todos são originários do município. A vice-prefeita conta que em 2023 eram 480 atendimentos para fazer carteira de identidade. Após a enchente, o número ultrapassou mais de mil atendimentos por mês.
— Fizemos aquele movimento no período de calamidade para receber os eldoradenses. Talvez até por esse acolhimento alguns se sentiram bem e com vontade de permanecer no município — conclui a vice-prefeita.