Notícias



Imóvel tombado

Patrimônio cultural de Torres, casa número 1 permanece fechada e com futuro indefinido 

Residência é considerada uma das primeiras edificações do núcleo urbano do município. Local carrega em seu histórico recente invasões e imbróglios judiciais  

28/01/2025 - 12h09min


Jhully Costa
Jhully Costa
De Torres
Enviar E-mail

Quase todo cercado por vegetação, um importante patrimônio cultural de Torres pode passar despercebido por aqueles que transitam pela Rua Padre Lamônaco sem saber de sua existência. Quem observa do outro lado da faixa enxerga apenas que há uma placa, um portão e uma estrutura amarela desbotada dentro do pátio. Trata-se da casa número 1, que é considerada uma das primeiras edificações do núcleo urbano do município do Litoral Norte.

Localizada ao lado da Igreja Matriz São Domingos, a casa foi construída progressivamente a partir da primeira década de 1800. Em seu histórico mais recente, o local soma invasões de pessoas em situação de rua e imbróglios judiciais. Uma das ações, em 2023, obrigou que a prefeitura de Torres definisse o tombamento provisório do imóvel como patrimônio cultural. O futuro uso da estrutura, contudo, segue indefinido.

Logo na frente da casa, uma placa informa que o imóvel trata-se de um patrimônio cultural, tombado e com acesso proibido. O endereço “Rua Padre Lamônoco, 01” está descrito em uma folha branca plastificada, colada ao lado do portão. Ao observar pela cerca que envolve o terreno, é possível constatar que o pátio foi limpo e, a grama, cortada. Também foram instalados tapumes nas portas e janelas.

Mesmo que seja mantido como propriedade privada, nós temos que dar uma destinação cultural a ele

MARCELO KOCH

Arquiteto e urbanista da Secretaria de Cultura e Esporte de Torres.

Na lateral, encontra-se outra placa, que detalha que o “imóvel possui valor arquitetônico, relevância histórica e valor de antiguidade enquanto patrimônio cultural do município de Torres-RS". Mais informações estão disponíveis, como o responsável pela obra (alferes Manoel Ferreira Porto) e o uso original (residência familiar). O aviso também aponta que, atualmente, o local está em litígio.

História

Conforme a prefeitura de Torres, Manoel Ferreira Porto foi um sargento que, no início do século 19, iniciou a construção gradativa da estrutura para servir de residência para sua família, em um sítio do lado sul do quartel onde atuava. Em 1812, ele foi promovido a alferes e, quatro anos depois, recebeu a chamada "Carta de Título de Chão", legalizando o sítio, que media cerca de 22 metros por 44 metros.

No local, o alferes hospedou figuras importantes, como o bispo da Corte do Rio de Janeiro Dom José Caetano da Silva Coutinho em 1815 e 1816 e o naturalista francês Saint Hilaire em 1820. Localizada na encosta da Torre do Norte, a casa deu origem ao núcleo urbano local –  a capela foi construída ao seu lado anos depois, sendo inaugurada em 1824.

Ao longo do tempo, a residência passou por reformas e ampliações, sendo que, em 1928, foi vendida pelos herdeiros originais.

O escritor Diderô Carlos Lopes é descendente direto dos primeiros proprietários, tendo Manoel Ferreira Porto e sua esposa, Jerônima, como tetravós paternos. Ele reforça que a história do imóvel está relacionada com a formação do núcleo urbano da Vila de São Domingos das Torres e comenta que o alferes faleceu em 1828, deixando a residência com seus dois filhos.

Ações judiciais

De acordo com Lopes, as pessoas que compraram a casa em 1928 residiam fora do município e cederam o uso do imóvel para conhecidos. Assim, os últimos ocupantes do imóvel foram um casal de irmãos, que permaneceu no local até 2018, quando foram acionados pelos sucessores dos proprietários originais para desocupar a residência.

— Eles não aceitaram e protocolaram uma ação de usucapião urbano para permanecer no local. Os sucessores dos proprietários originais igualmente entraram como uma ação de retomada do imóvel. Cada um com suas justificativas, que são conflitantes — afirma o escritor, que publicou um livro sobre a casa em 2019, a fim de "reavivar" sua história.

No mesmo período, reuniu informações sobre o valor histórico e arquitetônico do imóvel e apresentou ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae) para verificar a possibilidade de tombamento. Segundo Lopes, o retorno foi negativo pois a representatividade do bem era municipal, mas houve sugestão para que o processo fosse protocolado junto à prefeitura de Torres. Desde então, o escritor adotou medidas com esse objetivo, notificando inclusive o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS)

— Neste contexto, os últimos ocupantes abandonaram o imóvel no final de 2023 e a ação que haviam patrocinado, ensejando que o local fosse invadido por moradores de rua — aponta Lopes.

Situação atual

Marcelo Koch, arquiteto e urbanista que atua na Secretaria de Cultura e Esporte de Torres, enfatiza que, apesar do tombamento, a propriedade continua sendo privada e está em litígio na justiça entre os que "se dizem proprietários e os que lá habitavam". No entanto, em meio à disputa judicial, foi determinado que o município passasse a ser o "guardião" do local.

O local poderia abrigar um espaço de memória, com coleções e acervos que contassem a história da residência e da região

LEONARDO GEDEON

Historiador e professor

Além de providenciar a retirada dos invasores, Koch relata que a prefeitura realizou a limpeza de toda a casa por dentro e também do terreno. Providenciou, ainda, a colocação de tampões em todas as aberturas (portas e janelas), de alarme e de um refletor, bem como a instalação de água e energia.

— Com essas ações, nós conseguimos estancar a deterioração da casa. Assim, temos a garantia de que a casa, hoje, está em condições de receber um restauro nas suas feições originais, que seria o próximo passo — diz o arquiteto.

O problema, segundo o representante do município, é que ainda se trata de uma propriedade privada e, por isso, a prefeitura precisaria de uma autorização judicial para realizar o restauro. Além disso, Koch ressalta que esse processo depende de uma série de coisas, como um projeto feito por um profissional especializado na área, que envolve o empenho de verba pública:

— Então, o município quer requerer judicialmente a possibilidade de haver uma desapropriação. Só que essa questão tem custos, porque é uma propriedade que tem um valor muito alto. Então, precisa haver um encaminhamento nas leis orçamentárias do município.

Antes de encaminhar o processo para a desapropriação, a prefeitura pretende realizar a proteção do telhado da casa para evitar infiltração de água. Isso deve ser feito no primeiro trimestre deste ano.

Planos para o futuro

Conforme Koch, se a justiça determinar a desapropriação da residência, a intenção é levar o tema ao Conselho do Patrimônio Histórico do município para que os integrantes opinem sobre qual consideram o uso adequado para o bem histórico. Assim, em um processo democrático, poderão escolher o plano mais viável "dentro do panorama cultural da cidade". Entre as possibilidades, cita exemplos como uma biblioteca ou um museu.

— Se não tiver possibilidade de desapropriar, (precisamos de) algum outro formato jurídico que permita que haja um uso cultural daquele imóvel, compatível com a história dele, sem que ele sofra interferências indevidas. Mesmo que seja mantido como propriedade privada, nós temos que dar uma destinação cultural a ele — salienta o arquiteto.

O escritor Diderô Carlos Lopes, que é descendente direto dos primeiros proprietários, comenta que gostaria que a edificação e o terreno fossem assumidos pelos donos e pelo município. Sua ideia para o futuro do local envolve planejar e executar um projeto de preservação da casa, "que contemplasse a ocupação do imóvel para fins culturais, permitindo a divulgação de sua história, como a testemunha mais antiga de tudo que aconteceu nesta localidade, com condições de acesso para a comunidade local e visitantes".

Leonardo Gedeon, historiador membro do Centro de Estudos Históricos de Torres e Região (CEHTR) e professor da rede pública estadual, destaca que a casa representa "o povoamento colonial da região de Torres e do Litoral Norte como um grande portão Rio-grandense, na divisa da província de São Pedro do Rio Grande do Sul e Santa Catarina".

Além disso, aponta que o imóvel localizado na encosta oeste da Torre Norte, atual Morro do Farol, é um dos grandes exemplares das casas coloniais do século 19 que ainda estão preservados. Por isso, defende que deveria ser valorizado nos seus aspectos históricos e culturais:

— O local poderia abrigar um espaço de memória, com coleções e acervos que contassem a história da residência e da região. Uma restauração valorizando seus aspectos arquitetônicos e suas características seria de suma importância, pois a casa está localizada em um ambiente muito privilegiado.

Koch acrescenta que a residência foi construída pelos alferes utilizando materiais da região, como pedras brutas dos morros da beira do mar. Também foi usada uma cal feita de conchas marinhas moídas, no lugar de cimento. Portanto, o imóvel é considerado de suma importância também por demonstrar as técnicas construtivas da época, o que classifica como um "legado" para os estudantes de Engenharia, Arquitetura e História.


MAIS SOBRE

Últimas Notícias