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Saúde em risco

Proibida no Brasil, “pílula do câncer” é vendida em grupos na internet; médicos alertam para riscos no uso

Grupo de Investigação da RBS encomendou e recebeu o produto, comercializado como suplemento alimentar para tentar driblar fiscalização

07/01/2025 - 11h55min


Lucas Abati
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Yasmin Luz
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Jefferson Botega / Agência RBS
Mesmo sem eficácia e proibida no Brasil, fosfoetanolamina é vendida no Brasil, especialmente, via internet.

Proibida no Brasil e sem eficácia comprovada por pesquisas, a “pílula do câncer” é vendida na internet com a promessa fantasiosa de cura da doença. O falso medicamento é comercializado como um suposto suplemento alimentar que incluiria a substância fosfoetanolamina, em uma tentativa de driblar a fiscalização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Médicos oncologistas alertam para o risco do uso desse tipo de falso remédio, que pode levar a efeitos colaterais desconhecidos e, principalmente, desviar os pacientes de tratamentos que realmente funcionam.

Durante um ano, o Grupo de Investigação da RBS esteve infiltrado em grupos de Facebook e WhatsApp usados para divulgar e comercializar a “pílula do câncer”. Em 10 de abril, 60 cápsulas da Fosfoetanolamina PhosphoPower foram adquiridas ao custo de R$ 230, somados a um custo de envio de R$ 57. A entrega chegou a Porto Alegre em 21 de junho.

O produto foi encaminhado para análise da professora Ruth Hinrichs, docente do Programa de Pós-Graduação em Segurança Cidadã da UFRGS. Em comparação com a fórmula verdadeira da fosfoetanolamina, os métodos de análise não conseguiram detectar a presença da substância no produto comprado.

Esse produto (comprado) é composto de zinco e cálcio, principalmente carbonato de cálcio e óxido de zinco. Não é detectada a presença (da fosfoetanolamina) — afirmou a professora. 

O método usado não identifica quando a concentração é abaixo de 1%.

Ou seja: além de comercializar uma substância não autorizada pela Anvisa, os vendedores entregam uma pílula que nem mesmo tem a fosfoetanolamina prometida. 

Reprodução / Arquivo Pessoal
Página da Nutrihealth Suplementos Alimentares no Facebook recruta revendedores.

A compra foi realizada a partir de um grupo no Facebook com 27 mil membros. Mensagens frequentes e comentários nesse grupo relacionam a fosfoetanolamina com o tratamento de câncer. Por meio desta página, o GDI obteve acesso a um grupo no WhatsApp que reúne quase 180 pessoas. As duas administradoras do grupo são Márcia Silva e Giseli Santos. Elas se apresentam como ativistas e consultoras de tratamento — também são responsáveis pelo grupo do Facebook.

Ao comprar as cápsulas, o GDI realizou o pagamento via pix para um CNPJ registrado no sistema da Receita Federal como pertencente à empresa "Nutrihealth Suplementos Alimentares", com endereço em um coworking de um shopping no Recreio dos Bandeirantes, zona oeste do Rio de Janeiro.

Também foram realizadas simulações de transferência via pix para os números de telefone utilizados por Márcia e Giseli. O número de Márcia está vinculado ao CNPJ da Nutrihealth, enquanto o de Giseli está registrado no nome da filha. A jovem foi funcionária da Nutrihealth entre 2021 e 2022. Márcia Silva é a dona da empresa, fato que é admitido por ela mesma.

Márcia afirma que é uma importadora de produtos, que não mantém estoques no Brasil e que nunca prometeu tratamentos para o câncer, o que contraria posts dela nas redes sociais.

— Esse foi um relato de uma pessoa que utilizou o produto. As pessoas falam o que pensam. Se mentiu, aí é com ele (a pessoa que teria feito o relato repostado por ela) — disse.

Conversas mostram como grupo age

Em grupo, empresárias admitem saber de ilegalidade

Giseli e Márcia admitem, no grupo de Whatsapp, estarem cientes da ilegalidade da operação e mencionam estratégias para evitar a fiscalização da Anvisa, como o envio dos produtos sob outros nomes a partir de endereços diferentes. Em novembro de 2023, Giseli também falou sobre a presença de um "olheiro”, que teria denunciado o esquema e levado à apreensão de frascos.

"Eu ainda não identifiquei o olheiro da Anvisa ou a pessoa maldosa que me denunciou e denunciou o pesquisador aqui do grupo, mas eu preciso dar um recado geral sobre a Fosfo (...) quem pediu mais de dois frascos iria receber apenas dois, por hora, porque, graças a essa denúncia, a ANVISA apreendeu metade dos frascos (que eu estou tentando reaver)", disse Giseli. Ela também mencionou Márcia no grupo, sugerindo que aqueles que não pudessem esperar, comprassem a pílula de outra marca da colega.

Giseli termina a mensagem fazendo um alerta aos que chama de “olheiros do grupo”. Ela afirma que não seria responsável pelo envio do material.

“Podem perder seu tempo tentando me pegar, será um prazer. Não vou dar mais detalhes do que e como farei por motivos óbvios. Apenas aguarde a fosfo chegar no seu endereço na semana que vem”.

Questionada pelo GDI, Márcia nega ter sofrido com apreensões da Anvisa:

— Meu produto apreendido pela Anvisa? Não. Até porque a fabricação dela é de janeiro, chegou no Brasil em fevereiro alguns frascos pra mim que o fabricante me mostrou, queria que eu visse. Tenho até aqui a documentação e paguei imposto, inclusive. E tô batalhando, fazendo a divulgação sim, da phosphopower, como suplemento para imunidade. Quem quiser faz a importação, mas pelo que eu saiba nunca ficou nada parado na Anvisa — afirmou.

Em entrevista à reportagem do GDI, Márcia negou vender o produto. Ela afirma que é ativista da causa há mais de 10 anos e que apenas trabalha para ensinar as pessoas a fazerem a importação (leia mais abaixo).

A Anvisa negou o pedido, via Lei de Acesso à Informação, de dados sobre apreensões dos produtos com fosfoetanolamina. A justificativa dada pela agência foi de que não havia “a compilação desses dados” e que “devido ao trabalho desarrazoado, que é prejudicial ao andamento das atividades de competência das áreas” o pedido seria negado. 

A agência reafirma a ilegalidade desse tipo de comercialização. “Nenhuma empresa possui autorização para venda/fornecimento de fosfoetanolamina em território nacional, seja como medicamento ou suplemento alimentar. Caso seja identificada a comercialização de produtos irregulares por meio da internet, com preços em reais, o responsável será investigado e medidas administrativas podem ser adotadas.”

Reprodução / Arquivo Pessoal
Preocupação com "infiltrados" da Anvisa no grupo é deixada clara no grupo.

Ao buscar termos relacionados à fosfoetanolamina no Diário Oficial da União, é possível encontrar registros de apreensão dessas mercadorias importadas. Porém, não há especificação de quantidades, nem o destino dos materiais.

Como a “pílula do câncer” ficou conhecida

Apresentada nacionalmente nos anos 2000, a substância sintética produzida pelo professor Gilberto Chierice no laboratório de química da Universidade de São Paulo (USP) prometia uma revolução no tratamento de diversos tipos de câncer. Sem testes clínicos, a fosfoetanolamina foi distribuída desde a década de1990 de forma gratuita para pacientes desesperados por uma possibilidade de tratamento, que na propaganda boca a boca divulgaram o produto popularmente conhecido como “pílula do câncer”.

Volta e meia alguma pessoa ressurge com essa expectativa, essa esperança, e acaba tentando comprar pela internet, sem ter o mínimo de segurança de que isso seja benéfico.

STEPHEN STEFANI

Oncologista clínico do grupo Oncoclinicas

A fosfoetanolamina é uma molécula encontrada no corpo humano que participa da formação das membranas celulares. A tese de seus defensores é de que ela agiria como marcadora nas células cancerosas, sinalizando-as para que o sistema imunológico possa combatê-las.

O cenário causou furor entre pacientes, familiares, comunidade científica e até políticos. Ainda sem autorização, a própria USP proibiu a produção da substância em seus laboratórios em 2014. O assunto chegou como projeto de lei na Câmara dos Deputados, no Senado, até a sanção pela então presidente Dilma Rousseff (PT), em abril de 2016, que autorizou o uso por paciente que apresentasse laudo de neoplasia maligna e assinasse um termo de consentimento. 

Um mês depois, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a lei inconstitucional e proibiu o uso antes de qualquer aprovação pela Anvisa. Sete testes clínicos foram realizados e nenhum demonstrou resultados positivos.

O resultado foi rigorosamente igual ao placebo. Em outras palavras, usar a fosfoetanolamina ou usar uma pílula só com farinha tem resultado rigorosamente igual. Tumores que já cresceriam, continuaram crescendo. E aqueles que iriam diminuir, continuaram diminuindo. (A pílula) Recheou uma espécie de imaginário popular de que pudesse mudar a história da doença e muitos mercadores de esperança se aproveitaram dessa vulnerabilidade das pessoas — explica o oncologista clínico Stephen Stefani, médico do grupo Oncoclinicas.

Apesar de as pesquisas não apontarem riscos evidentes pelo uso, uma das preocupações médicas é de que, na esperança da cura, pacientes com boas chances de recuperação optem por abandonar os tratamentos convencionais.

— Volta e meia alguma pessoa ressurge com essa expectativa, essa esperança, e acaba tentando comprar pela internet, sem ter o mínimo de segurança de que isso seja benéfico. Esse comportamento desvia o paciente do caminho adequado, comprometendo o tratamento que poderia realmente ajudá-lo. Nesses tratamentos mágicos e místicos, evidentemente o maior problema é a incerteza — relata Stephen.

O médico ainda destaca que, sem a bula da substância, não é possível saber se há interação com outros medicamentos, nem possíveis efeitos colaterais.

Leia aqui o alerta de especialistas em oncologia sobre os riscos de uso desse tipo de substância: Especialistas em oncologia ressaltam que a ineficácia do produto foi comprovada por estudos


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