Fila da angústia
Cinco especialidades respondem por mais da metade do total de pedidos de consultas cadastrados na Secretaria da Saúde do RS
Levantamento do MP aponta que, desde 2003, nove ações já foram ajuizadas em diversas gestões do Estado, inclusive na atual, cobrando a aplicação na saúde do percentual mínimo de 12% das receitas do Estado, previsto pela Constituição

Cinco especialidades médicas respondem por mais da metade do total de pedidos de consultas cadastrados na fila da Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul. O dado foi fornecido ao Grupo de Investigação da RBS (GDI) via Lei de Acesso à Informação. Levantamento do Ministério Público aponta que desde 2003, nove ações já foram ajuizadas em diversas gestões do Estado, inclusive na atual, cobrando a aplicação na saúde do percentual mínimo de 12% das receitas do Estado, previsto pela Constituição.
No ranking da fila do Sistema Único de Saúde (SUS), a especialidade mais demandada é oftalmologia, com 128.928 pedidos de consulta represados. A dona de casa Selma Vaz Bittencourt, moradora de Porto Alegre, aguarda atendimento desde 2023, quando surgiram problemas nos olhos após realizar cirurgia de catarata.
— Eu acordo, eu venho de madrugada com os cílios totalmente colados. E já está agora começando a se encher no outro também. A gente se sente arrasada, né? A gente é de idade também, né? E eu moro sozinha, preciso, né? — desabafa.
As outras quatro especialidades com mais consultas pendentes são, pela ordem, ortopedia (68.699), otorrinolaringologia (29.797), reabilitação (25.533) e cirurgia geral (21.126). No total, são 473.785 pedidos de atendimento com especialista, segundo dados de dezembro.
Em uma série de reportagens, o GDI vem mostrando o drama dos pacientes que, na fila, acabam contraindo outras doenças, consequência, muitas vezes, da demora no atendimento. E descobriu casos em que a espera passa de oito anos. Para reduzir as filas, o governo do Estado aderiu ao programa “Mais acesso a especialistas” (PMAE) do governo federal. Desde janeiro, já foram assinados 59 contratos com hospitais para oferecer consultas e exames. Só nessa segunda-feira (10), foram assinados 29 convênios para garantir 48 mil novos atendimentos.
Das cinco especialidades com mais pedidos de atendimento, duas não são contempladas pelo programa: reabilitação e cirurgia geral, o que inclui tratamento bariátrico. Em Arroio dos Ratos, o aposentado Claudino Moraes Munhoz, que mora sozinho, sofre de obesidade mórbida e aguarda na fila há seis anos.
Desde então, sua saúde piorou: ele desenvolveu uma úlcera no pé e problemas no joelho esquerdo. E já não consegue realizar tarefas básicas, como fazer compras. Para cozinhar, escora uma perna na pia e precisa se revezar entre o fogão e o sofá para descansar, pois não consegue permanecer em pé por muito tempo.
— Caminhar, andar, parar de pé, fazer as coisas básicas da casa, tomar um banho, ficar de pé ali 10 minutos, não consigo mais — lamenta.
A minha qualidade de vida caiu muito por causa dessas dores
CLAUDINO MORAES MUNHOZ
Há um consenso entre as autoridades da Saúde de que a aplicação de mais recursos resultaria em redução do tempo de espera nas filas. E isso passaria pelo emprego no setor de 12% das receitas em saúde, o que, segundo o Ministério Público e Tribunal de Contas, não está acontecendo.
O promotor de Justiça dos Direitos Humanos, Mauro Luis Silva de Souza, diz que nove ações civis públicas já foram ajuizadas em diferentes governos desde 2003, cobrando a aplicação do percentual. O que o MP questiona é que as sucessivas gestões incluem no percentual gastos que não seriam de saúde, como pagamento de contribuições ao IPE e salários de inativos.
Assim, em 2006 e 2013, nas gestões Germano Rigotto (MDB) e Tarso Genro (PT), o governo foi condenado a depositar no Fundo Estadual de Saúde cerca de R$ 1,5 bilhão em valores não atualizados, referentes a valores não aplicados. A dívida está em fase de execução.
Já no governo de Eduardo Leite (PSDB), que está no seu segundo mandato, existe uma ação ajuizada em 2021 e um inquérito civil em tramitação, referente a 2024.
— Nós instauramos o expediente e o parecer técnico da nossa assessoria contábil aqui do Ministério Público, dá uma diferença de R$ 1,2 bilhão de verbas que o Estado colocou no orçamento da saúde, mas que segundo a legislação não poderia ter colocado, afirma o promotor, em relação a 2024.
O montante supostamente não aplicado se assemelha ao cálculo do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul, que mantém em análise as contas do governador referentes aos anos de 2022 e 2023. Sobre 2023, o valor não aplicado, segundo o TCE, gira em torno de R$ 1,3 bilhão, o que pode resultar na aplicação de ressalvas e até na rejeição das contas de Leite.
Procurada, a Secretaria de Comunicação do governo do Estado disse que o governador não gravaria entrevista porque “o governo tem sido bastante transparente e prestado todos os esclarecimentos sobre as filas no SUS" . Conforme a nota, a própria Secretária da Saúde, Erita Bergmann, se pronunciou.
— A nossa representação nesta pauta, junto ao Ministério Público, é a PGE (Procuradoria-Geral do Estado). A PGE vem tratando desse assunto, e nós não estamos aqui com essa questão fechada de não haver esse diálogo e a construção de uma solução, talvez gradativa, de possibilidades futuras. Então, nós, neste momento e nesses anos que estamos no governo, todos os anos nós informamos ao SIOPES (Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde) todo o nosso orçamento da área da saúde e tem sido aprovado junto aos órgãos competentes — assegura a secretária.
Contrapontos
NOTA SECOM
Prezado Giovani Grizotti,
Em relação à sua solicitação, entendemos que o governo tem sido bastante transparente e prestado todos os esclarecimentos sobre as filas no SUS e os investimentos em ações e serviços públicos de saúde, incluindo duas entrevistas da secretária da Saúde, Arita Bergmann (sendo uma delas ao vivo no estúdio do Jornal do Almoço), e uma entrevista da secretária-adjunta Ana Costa. Além disso, foi respondida uma série de perguntas via Lei de Acesso à Informação.
Ainda assim, como já informado para a sua chefia, destacamos que a Secretaria Estadual da Saúde (SES) está ampliando os investimentos na área e trabalhando na redução das filas em conjunto com o governo federal. Um exemplo disso foi a formalização, na quinta-feira (30/1), de contratos com 19 hospitais que vão possibilitar a oferta de 20 mil consultas e exames à população.
Permanecemos à disposição para atender outras demandas sobre estes temas por meio da Secretaria Estadual da Saúde e demais órgãos técnicos do governo. A possibilidade de uma entrevista com o governador poderá ser reavaliada quando houver fatos que justifiquem o atendimento. Na nossa avaliação, as respostas dadas pela SES têm sido suficientes para detalhar o posicionamento do governo.
Ex-governador Germano Rigotto
Na Gestão Rigotto (2003/2006), o Estado do Rio Grande do Sul cumpriu a aplicação mínima de 12% da receita líquida em ações e serviços públicos de saúde, conforme estabelecido pela Constituição Federal à época.
A Emenda Constitucional 29/2000 (EC 29) e a Lei Complementar 141/2012 (LC 141) trouxeram mudanças significativas no financiamento da saúde pública no Brasil, especialmente no que diz respeito aos percentuais mínimos de investimento em saúde pelos estados e municípios.
EC 29/2000: Esta emenda foi um marco histórico, pois estabeleceu a obrigatoriedade de aplicação de percentuais mínimos da Receita Corrente Líquida (RCL) em saúde: 12% para os estados e 15% para os municípios. No entanto, a EC 29 não especificava claramente o que deveria ser considerado como gasto em saúde.
LC 141/2012: Após o fim de minha gestão, a Lei Complementar 141, sancionada em 2012, veio para regulamentar a EC 29 e esclarecer algumas ambiguidades. A LC 141 definiu de forma mais precisa o que pode ser considerado como gasto em saúde, estabelecendo critérios para a aplicação dos recursos. Além disso, a lei fixou os percentuais mínimos de investimento em saúde pela União, estados e municípios, garantindo uma maior transparência e controle sobre os gastos públicos na área da saúde.
Ressalte-se que todas as Contas do Governo Rigotto foram devidamente avaliadas e aprovadas pelo Tribunal de Contas.
Ex-governador Tarso Genro
O ex-governador Tarso Genro, através de sua assessoria de comunicação, afirma que iniciou sua gestão com uma grave crise na saúde e que ao longo do seu governo triplicou o valor dos repasses, saindo de R$ 750 milhões para R$ 2,4 bilhões (valores da época) por ano. O aumento dos repasses fez com que o Estado atingisse o índice constitucional de 12%, pelos critérios da Secretaria da Fazenda.
O esforço do governo em ampliar os recursos para a saúde foi reconhecido pelo Tribunal de Contas do Estado que em julho de 2015 aprovou as contas do governador Tarso Genro e ressaltou o aumento substancial dos investimentos na saúde da população. Foi dessa forma que, por exemplo, o governo Tarso dobrou o número de consultas de especialistas em comparação ao governo anterior.