Há 58 anos
Conheça a história do navio que participou da Segunda Guerra e encalhou na costa gaúcha em 1967
Resquícios do casco da embarcação ainda podem ser vistos em área de praia desolada entre o Farol da Solidão, em Mostardas, e Quintão
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Os resquícios dos destroços de uma embarcação mercante resistem ao tempo em um trecho de praia desolado na costa gaúcha. Tratam-se dos fragmentos do navio de bandeira liberiana Mount Athos, que encalhou em 11 de março de 1967, a cerca de 18 quilômetros do Farol da Solidão, em Mostardas.
O barco navegava na região quando ficou preso em um banco de areia (confira o local mais abaixo no mapa). A tentativa de operação de resgate mobilizou as autoridades, mas não obteve êxito. Foi um fim melancólico para o vapor que participou da invasão à Normandia na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando pertencia aos holandeses e era nominado como Fort Orange (leia mais abaixo).
Aos 86 anos, Jayme Costa Pereira é uma das testemunhas do fato. O morador de Viamão, na Região Metropolitana, veraneia há oito décadas na Praia da Solidão, em Mostardas, no Litoral Médio. A casa dele fica a poucos metros do farol de cor vermelha.
— Eu já era grandinho (tinha 28 anos na época). A principal carga era adubo, mas nós vimos muita madeira e erva-mate em barricas — conta seu Jayme, de chapéu de palha na cabeça e óculos de sol, quase 58 anos após o episódio.
Apesar da idade, seu Jayme continua na ativa e possui uma fábrica de construção de postes de luz, tubos, tanques e muros de concreto. Tem como passatempo escrever versos em cordel. Ele diz que os pescadores adoram pescar na região de onde o navio jamais conseguiu ser resgatado.
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— Um dia fui lá no navio em carreta de boi para pegar madeira. Quando eu vi estava inteiro, tinha mastro ainda — recorda, dizendo que lembra de ter presenciado muitas pessoas na praia observando a embarcação naqueles dias distantes.
O encalhe
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A história dos momentos derradeiros do Mount Athos carrega tons de mistério. Partiu em viagem de Tampa, na Flórida, nos Estados Unidos, em direção ao Brasil. Transportava adubos comprados por importadores do país e já havia passado por Vitória, no Espírito Santo, Rio de Janeiro, e rumava para Rio Grande. Na sequência, o destino previsto era Porto Alegre. Seria a sua segunda passagem pela Capital.
Na beirada da praia, o navio era muito lindo. Eu tenho basicamente a lembrança do apito, ele apitava de hora em hora.
SIRLEY DA COSTA CARVALHO
Aposentado e morador da região
Conforme os registros da época, o navio teria se perdido no meio da madrugada em virtude da cerração. Foi quando encalhou em um banco de areia a menos de 100 metros da faixa da praia. O capitão Loudaros, acreditando que estava em alto-mar, enviou pedido de socorro para helicópteros. Começou uma intensa operação de resgate.
O aposentado Sirley da Costa Carvalho, 71, é natural de São Leopoldo, no Vale do Sinos, e veraneia há 33 anos na Praia da Solidão. Atualmente vive em Bacupari e costuma participar de competições de trova pelo Estado. Ele guarda na memória detalhes do que ocorreu com o navio.
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— Quando o Mount Athos acostou ali em Bacupari foi comentado no outro dia e nós escutávamos o apito, porque dava mais ou menos 12 quilômetros em linha reta do sítio dos meus pais. Nós éramos crianças — narra Sirley com uma boina preta na cabeça.
Um dia fui lá no navio em carreta de boi para pegar madeira. Quando eu vi estava inteiro, tinha mastro ainda.
JAYME COSTA PEREIRA
Veraneia na Praia da Solidão há 80 anos
Foram dias de aventura e excitação para ele. A primeira visita foi na companhia do pai. E a maior recordação do aposentado em relação ao gigante do mar preso em um banco de areia é auditiva.
— Na beirada da praia, o navio era muito lindo. Eu tenho basicamente a lembrança do apito, ele apitava de hora em hora — menciona.
Adolescente, já na segunda visita ao ponto onde estava o navio, levou café dentro de uma garrafa, bolo frito e feijão mexido para passar o dia no local na companhia dos amigos. Todo o vaivém de pessoas e a movimentação para tentar o salvamento da embarcação ainda são lembranças presentes.
— A gente acompanhava o pessoal descarregando o barco e trabalhando, porque tinha muito adubo. E hoje só tem as ruínas — observa.
A Capitania dos Portos de Rio Grande, a Polícia do Exército e as equipes da Civil montaram barracas em terra nas imediações de onde o navio agonizava. Segundo reportagem da época do Diário de Notícias, jornal de Porto Alegre adquirido pelo então magnata das comunicações Assis Chateaubriand, tratava-se de uma corrida contra o tempo.
O navio poderia partir-se ao meio pela pressão das ondas, pois as extremidades estavam livres do banco de areia. O porão dianteiro era invadido pela água em virtude de uma ruptura de uma válvula de segurança. Outro risco seria uma explosão, por ser com máquina a vapor e sujeito à invasão da água nas caldeiras.
As autoridades envolvidas com o resgate também suspeitavam dos motivos para uma balsa salva-vidas ter aparecido em Quintão sem qualquer sinal de tripulante. Posteriormente, o capitão do navio teria dito que foi jogada ao mar para pedir socorro. Para tentar o resgate, a corveta Angostura seria enviada. Porém, em outra cena inusitada, ao aproximar-se do Mount Athos, recebeu ordem para voltar a Rio Grande. O motivo havia sido um comunicado do capitão à Capitania dos Portos que não aceitaria aquele tipo de resgate, que implicaria em despesas.
A tensão aumentava, o navio não dava indícios de que se soltaria sozinho do banco de areia. Com o proprietário autorizando o resgate, a Angostura partiu novamente em direção ao Mount Athos. O capitão pedira socorro ainda, no dia 14 de março, a dois rebocadores da Marinha de Guerra. Técnicos da Empresa Engenharia de Obras Submersas, especializada nesse tipo de resgate, auxiliavam nos trabalhos.
Com o mar revolto e tempo ruim, eram feitas tentativas de ligar a corveta ao navio por meio de cabos de aço. Enquanto isso, 20 dos 29 tripulantes foram retirados e levados para o Hotel Farol, em Cidreira. Havia apenas uma mulher no grupo. Permaneceram na embarcação o capitão e mais oito tripulantes. Ao chegarem em terra, houve comoção dos marujos que acreditavam até o fim em um desenlace feliz.
Houve saques e sete pessoas chegaram a ser detidas com os objetos furtados. O fato ocorreu em um momento em que os policiais já não estavam mais nas barracas na beira da praia. A firma norte-americana com sede na Libéria e proprietária da embarcação optou por desistir da tentativa de resgate. Foi aberta uma sindicância pela Marinha e um inquérito para apurar se o barco levava contrabando de mercadorias e armas. O Mount Athos foi desmontado e suas partes encaminhadas para a Siderúrgica Riograndense.
Trajetória do Mount Athos
Até naufragar na costa gaúcha em março de 1967, o Mount Athos teve uma extensa trajetória pelo oceano. O navio de carga a vapor foi construído em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, e possuía três mastros, dois convés e tinha o casco em aço.
O comprimento total era de 134,5 metros. E o peso bruto chegava a 7,1 mil toneladas. Primeiramente, a embarcação foi batizada de Tobias Lear. A empresa responsável por sua fabricação foi a New England Shipbuilding Corporation Inc., situada em Portland, nos Estados Unidos.
Ainda em 1943, a Administração de Navegação de Guerra dos EUA repassou o navio para o governo da Holanda. O nome foi trocado para Fort Orange.
Em junho de 1944, o Fort Orange foi utilizado para o transporte de material militar dos aliados na invasão à Normandia, na França. Três anos mais tarde, passou para outro proprietário em mar holandês, e recebeu outra denominação — Blijdendyk.
Em 1957, o navio foi novamente negociado. A Empresa Luigi Pittaluga Vapori, situada em Gênova, na Itália, o adquiriu e o rebatizou de Transilvânia. Apenas em 1965, quando foi adquirido pela Companhia de Navegação Mount Athos, com sede em Monróvia, na Libéria, receberia o nome pelo qual afundaria no RS — Mount Athos. Dois anos depois dessa transferência encontraria seu destino derradeiro. O revolto e traiçoeiro mar da costa gaúcha o aprisionou para sempre.