Análise forense
O que especialistas dizem sobre a morte de Deise dos Anjos, suspeita de matar família com bolo envenenado
Presa desde 5 de janeiro, mulher foi encontrada morta dentro da cela na Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba na quinta-feira (13)
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Caso de alta complexidade para a medicina e a ciência, o suicídio de um detento, como o cometido por Deise Moura dos Anjos, 42 anos, é analisado, em busca de respostas, por diferentes correntes de pensamento da psiquiatria forense e da sociologia.
A mulher estava presa preventivamente desde 5 de janeiro por suspeita de ter envenenado um bolo com arsênico. Três familiares dela morreram, em dezembro de 2024, ao consumir a iguaria preparada com a farinha que continha o veneno. Ela também era suspeita pela morte do sogro em setembro do ano passado, igualmente por envenenamento.
O chefe da Polícia Civil, delegado Fernando Sodré, confirma que, até o momento, não havia um laudo médico diagnosticando Deise como vítima de algum transtorno. Contudo, dada a circunstância dos crimes pelos quais era investigada, acredita-se que ela pudesse ter alguma doença mental.
No âmbito da psiquiatria forense, a prisão de Deise, a interrupção de um ideal e a repercussão pública podem ter sido gatilhos.
— O antissocial (conceito que engloba o psicopata na escala de maior gravidade) e o narcisista têm aflição de ser preso. É o que mais temem por ser a frustração de um plano, de uma ideação de vida. "Eu não admito perder, eu me mato". Na iminência de uma condenação, quando encurralado e sem conseguir fugir, opta pelo suicídio como uma saída honrosa ou triunfante — afirma Andrei Garziera Valerio, membro do Departamento de Psiquiatria Forense da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul.
Pessoas saudáveis que evoluem ao suicídio, destaca o especialista, costumam se deprimir e emitir sinais, manifestar sofrimento e pedir ajuda.
— O perfil mais abrupto, em geral, está relacionado aos transtornos de personalidade, de perfil antissocial ou narcisista. É uma tentativa de revanche à iminente condenação, uma manifestação de que "o sistema não vai me dominar". Do tipo: "Eu sou superior a vocês" — comenta Valerio.
Médico psiquiatra e perito do Instituto Psiquiátrico Forense (IPF), Ruben de Souza Menezes avalia que casos como o de Deise estão sendo prejudicados pela resolução 487/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em seu artigo 18, o documento determina a interdição parcial e, depois, total de instituições de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil. Em decorrência disso, o IPF, hospital de custódia para pessoas com transtornos mentais, localizado em Porto Alegre, está sem receber novos pacientes nem emitir laudos. A instituição apenas atende internos anteriores à resolução. Atualmente, são 108 pessoas. Suspeitos como Deise são encaminhados ao sistema prisional comum.
— Em um caso desses, de homicídio múltiplo, a pessoa deveria ser encaminhada para avaliação de peritos e psiquiatras. Para o IPF. Era o que fazíamos há 99 anos em casos de suspeita de transtorno mental (o IPF foi fundado em 1925). Só que o CNJ resolveu fechar. É o grande debate hoje. Ela (Deise) não deveria estar presa se fosse encontrada doença mental. Mas, sim, internada. O suicídio poderia não ter acontecido se ela viesse para cá (para o IPF)—diz Menezes.
Ele afirma que, se o interno é diagnosticado com alguma doença mental, recebe o tratamento e cuidados específicos, além de ficar sob restrição de liberdade.
Menezes relata, em tese, que custodiados com transtornos mentais e violentos eventualmente precisam ser "contidos" ou receber medicações injetáveis, além do acompanhamento psiquiátrico e de terapia ocupacional.
— São ferramentas terapêuticas que não existem nos presídios. Presídio não é lugar para gente doente, mas os novos casos estão lá — comenta Menezes.
O ponto de vista
da sociologia e a responsabilidade
do Estado
Autor de pesquisa científica sobre suicídios em prisões do Rio Grande do Sul, o doutor em Sociologia e professor da Universidade Católica de Pelotas (UCPel) Luiz Antônio Bogo Chies comenta que os estudos disponíveis apresentam uma série de fatores que, somados, ampliam a probabilidade de suicídio. E isso não está, afirma ele, exclusivamente associado a pessoas com distúrbios mentais.
No caso de Deise, ele aponta o fato de ela ter sido presa, um impacto para a vida de um indivíduo, independentemente de a detenção ter sido justa. Destaca as ameaças recebidas pela mulher no Presídio Estadual Feminino de Torres, onde foi recolhida preventivamente em 5 de janeiro de 2024. O risco à integridade dela determinou a transferência, em 6 de fevereiro de 2025, à Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, onde se matou uma semana depois utilizando o uniforme prisional para se enforcar. Ainda de acordo com o especialista, o isolamento na cela, embora aplicado de forma “justificável” para garantir a segurança, também é um fator de risco.
— Os primeiros tempos de ingresso no sistema prisional são os de maior risco. E isso vale para transferências. É o que causa impacto e ruptura. O caso dela soma vários fatores. Se isso pode ser diagnosticado, por que não se fez nada? As equipes da Polícia Penal, via de regra, não estão qualificadas para atuar frente a esses riscos — diz Chies.
Para ele, o caso poderia ter sido evitado se o sistema tivesse maior vigilância em saúde mental e estivesse preparado para lidar com esse perfil de detento.
— Isso não é pensado no Brasil. Se faz aquilo que satisfaz a ideia de custódia e repressão — avalia o sociólogo.
Chies ainda questiona se o fato de ela ser suspeita de assassinar familiares, mediante emprego de veneno, com um decorrente abandono no cárcere, pode ter influenciado o desfecho.
— Ela matou a família. E qual o nível de apoio familiar recebeu? Ou ficou sozinha? Quais foram os contatos externos? Talvez tenha ficado totalmente isolada porque a família não quis ver — conjectura Chies.
Recentemente, no cárcere, Deise havia tomado conhecimento da intenção do marido de se divorciar.
A psiquiatria forense avalia que os primeiros dias na prisão são os de maior risco para uma ideação suicida, mas traz um ponto de vista distinto no quesito da afetividade familiar e do abandono.
— Pessoas que sofrem com o afastamento familiar não matam a família. Em geral, o psicopata e o narcisista não sentem falta de ninguém. O antissocial (psicopata) não tem empatia. O narcisista tem pouca empatia. O outro é um instrumento para a satisfação do seu prazer e do seu projeto de vida — afirma o psiquiatra Andrei Garziera Valerio.
Ele avalia que o perfil tem potencial suicida se "frustrado, exposto e com o plano comprometido".
Em sua pesquisa, Chies analisou 16 processos que tramitaram no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul para discutir o suicídio em cadeias. Em 14 dos casos esmiuçados, o Estado, detentor legal da custódia, foi livrado de pagar indenização aos familiares do suicida. As sentenças do Judiciário, discorre Chies, endossaram a teoria de que a pessoa cometeu um ato para o qual estava tão determinada que não era possível evitar.
— Se o Estado diz que ele tem o direito de botar uma pessoa sob sua custódia para puni-la de maneira adequada, e essa pessoa se mata, o Estado está falhando. Ele não se qualificou para fazer bem aquilo que prometeu. Numa sociedade que pretende ser civilizada, as formas de responsabilizar e sancionar têm de ser diferentes das que estamos vendo — teoriza Chies.
O que diz a Polícia Penal
A instituição respondeu, por escrito, a perguntas da reportagem e comentou a rotina de Deise. As autoridades afirmam que a suspeita tinha os mesmos direitos das demais detentas, mas com cela individual e observação de horários e ambientes distintos para a realização de atividades como o banho de sol. Medidas tomadas para assegurar a integridade física da investigada, diz a Polícia Penal.
A instituição rechaça a hipótese de ter acontecido falha no sistema de segurança. A manifestação oficial destacou: “Desde 2019 até o final deste governo, será investido R$ 1,41 bilhão na reestruturação do sistema prisional gaúcho, viabilizando assim a construção de novas unidades prisionais, aquisição de equipamentos e modernas tecnologias. Além disso, foram nomeados, desde 2019, mais de 3,9 mil servidores para a Polícia Penal".
Procure ajuda
Caso você esteja enfrentando alguma situação de sofrimento intenso ou pensando em cometer suicídio, pode buscar ajuda para superar este momento de dor. Lembre-se de que o desamparo e a desesperança são condições que podem ser modificadas e que outras pessoas já enfrentaram circunstâncias semelhantes.
Se não estiver confortável em falar sobre o que sente com alguém de seu círculo próximo, o Centro de Valorização da Vida (CVV) presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato.
O CVV (cvv.org.br) conta com mais de 4 mil voluntários e atende mais de 3 milhões de pessoas anualmente. O serviço funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados), pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil (confira os endereços neste link).
Você também pode buscar atendimento na Unidade Básica de Saúde mais próxima de sua casa, pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), no telefone 192, ou em um dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) do Estado. A lista com os endereços dos Caps do Rio Grande do Sul está neste link.