Entrevista
“Não poderia ter cometido o erro de deixar o dinheiro ir”, diz presidente de instituto réu por suposto desvio de verba de emenda em Porto Alegre
R$ 400 mil recebidos pelo Urbis foram usados para pagar contas de outra entidade e mais da metade do dinheiro público parou na conta da esposa de um ex-assessor parlamentar
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Um dos três réus em ação de improbidade administrativa pelo suposto desvio de emenda parlamentar impositiva ao orçamento da prefeitura de Porto Alegre, o presidente do Instituto Urbis, Arnobio Mulet Pereira, admitiu, em entrevista a Zero Hora, ter cometido equívocos na gestão do dinheiro público. A entidade dirigida por ele recebeu repasse de R$ 400 mil, via Secretaria Municipal de Governança Local e Coordenação Política (SMGOV), em janeiro de 2024, para organizar um seminário sobre lideranças comunitárias, que jamais aconteceu. Embora reconheça o erro, Pereira alega ter sido enganado pelo ex-assessor parlamentar Vinícius de Araújo Pacheco, que recebeu R$ 250 mil do valor da emenda na conta da esposa. Atualmente, o casal mora nos Estados Unidos. Pereira, por sua vez, transferiu cerca de R$ 126 mil para a sua conta pessoal. Ele justifica ter usado a verba para fazer o pagamento de dívidas relacionadas a um seminário anterior promovido por outra entidade presidida por ele, a Federação Riograndense de Associações Comunitárias e Moradores de Bairros (Fracab).
Na ação de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público, os réus são Pereira, Vinícius e a esposa dele, Renata Bernardes Kehl. Apontado como suposto operador do desvio, Vinícius era assessor do gabinete do ex-vereador Airto Ferronato (PSB). O MP avaliou que Ferronato não teve nenhuma participação no descaminho do dinheiro da emenda, sendo também enganado. O MP aponta que a prefeitura de Porto Alegre demonstrou "fragilidade" no controle dos recursos públicos, com a exclusão da Controladoria-Geral do Município (CGM) do fluxo do sistema informatizado de execução de despesas orçamentárias. Em consequência disso, as análises da CGM deixaram de acontecer antes dos pagamentos. Também foi apontado pela promotora Roberta Brenner de Moraes, signatária da ação de improbidade administrativa, que a SMGOV pagou a emenda mesmo com falhas no plano de trabalho e em parcela única, enquanto o cronograma previa a quitação em duas etapas.
Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista de Pereira.
O que o Urbis faz?
Ele sempre teve um trabalho social. Pegamos o Urbis para buscar recursos para as atividades da (outra) entidade, a Fracab. A Fracab não tem culpa de nada. É uma entidade que tem história na defesa da cidadania. Fizemos (via Fracab) um seminário, que foi o último de grandes proporções, com discussão sobre regularização fundiária e habitação popular. A Caixa participou de forma online. Participou a Famurs, a prefeitura e a Câmara de Porto Alegre, o governo do Estado. Está no YouTube gravado. Foi em 2023.
O senhor assumiu o Urbis com a intenção de buscar financiamento para a Fracab?
Sim. Isso não tem como eu dizer o contrário.
Conforme a ação do MP, da emenda impositiva de R$ 400 mil, de 2024, que o Urbis recebeu do gabinete do ex-vereador Ferronato, a quantia de R$ 250 mil parou na conta da esposa do ex-assessor Vinícius de Araújo Pacheco. Como foi isso? O Vinícius pediu o dinheiro? Foi o senhor que transferiu?
Eu já conhecia o Vinícius. Sabia que trabalhava com o Ferronato. Ele (Vinícius) me procurou perguntando se eu queria fazer (referência à emenda) para financiar as atividades da entidade. Eu disse que não gostaria de entrar porque é uma coisa muito complicada e eu não tinha tempo nem condições de fazer. Demandava um conhecimento que não tenho. Ele disse que ajudaria e faria tudo. Nesse primeiro momento, eu não quis fazer. Depois, ele voltou a conversar comigo, garantindo que ele faria. Eu disse: "Tá bom."
Fazer o quê, exatamente?
Tudo. O plano de trabalho, a prestação de contas, todo o processo. Eu não tinha motivo para deixar de confiar. Ele disse que faria tudo. E, realmente, fez. E eu assinei, na confiança. Marcamos o seminário (fomentado pela emenda) para maio de 2024. Veio a enchente e tivemos de suspender. Quando vieram os valores (da emenda), o Vinícius disse que assumiria a responsabilidade de fazer algumas coisas da organização, que era alimentação e hospedagem. Ingenuamente, eu fiz a transferência para ele. E eu tinha ficado, nesse seminário anterior (de 2023, sobre regularização fundiária e habitação, realizado pela Fracab), devendo algumas coisas. Aí eu peguei (o dinheiro da emenda impositiva) para pagar isso (dívida da outra entidade) porque havia uma promessa de uma verba que viria de doação dos Estados Unidos. Em nenhum momento desconfiei de nada.
Foi o Vinícius que falou sobre a verba que viria dos Estados Unidos? Esse suposto dinheiro cobriria o valor usado para pagar dívidas de outra entidade, sem nenhuma relação com o objetivo da emenda impositiva?
Exatamente. Só que nunca veio nada. Depois da enchente, teve problemas em estradas e eu não estava mais conseguindo falar com o Vinícius. Eu não sabia que, numa contratação, precisaria fazer um pagamento e ter uma nota fiscal específica daquele valor. Eu já tinha pago o local do evento, onde iria acontecer, e não me liguei de pegar uma nota. Eu fui tomar conhecimento disso no Ministério Público.
O Vinícius enganou o senhor, então?
O Vinícius me ferrou, na verdade.
Ele disse por qual motivo os R$ 250 mil deveriam ser depositados na conta da esposa dele?
Não. E eu não contestei.
Os R$ 126 mil que teriam ido para a conta do senhor foram usados para pagar contas da Fracab?
Eu usei para pagar contas do seminário anterior (realizado pela Fracab), onde eu fiquei devendo.
Que tipo de gastos foram esses que o senhor ficou devendo? O senhor tem nota fiscal?
Hoje eu não saberia especificar. Eu cometi erros infantis. Não tinha a menor noção disso.
O seminário que recebeu a emenda não aconteceu mesmo?
Acabou não acontecendo. Eu fiquei no terror, sem dinheiro para fazer. E perdi o contato, não consegui mais falar com o Vinícius.
O senhor disse que foi abordado duas vezes pelo Vinícius para discutir emendas. Onde foi isso?
Ele foi na entidade conversar comigo. Foi na sede da Fracab nas duas vezes. Ele já conhecia a Fracab. Chegou a prestar serviço na Fracab em uma gestão anterior.
Além da emenda de R$ 400 mil, o Vinícius, via gabinete do Ferronato, teria enviado outras três emendas para o Urbis entre 2022 e 2023, somando mais R$ 540 mil. Essas emendas ainda são investigadas. O senhor recorda o que aconteceu? Os eventos aconteceram?
Aconteceram. Foi prestado contas. Eu estava em um período de recuperação, tinha passado por uma cirurgia de câncer. Posso afirmar que os eventos foram feitos. E o Vinícius fez as prestações de contas.
Recorda sobre o que eram esses eventos?
Não. A gente faz um monte de eventos. São vários e regionalizados. Não tem como buscar na memória.
São três emendas de R$ 540 mil. É bastante dinheiro. Não recorda a finalidade desse dinheiro?
Uma delas foi para esse seminário que faltou dinheiro (da Fracab, sobre regularização fundiária e habitação). As outras eu não tenho como lembrar. Tenho de ser sincero.
Nas três emendas de R$ 540 mil, o senhor fez algum repasse para o Vinícius?
Eu teria de olhar. Não recordo. Tive ajuda dele para fazer as prestações de conta. Única coisa que recordo foi ter feito um repasse para pagar o contador, se não me engano. Isso eu não esqueci porque fiquei bravo por causa do valor. Eram R$ 6 mil para pagar o contador. Tive de tirar até dinheiro do bolso.
Dessas três emendas de R$ 540 mil, algum valor foi para a sua conta pessoal?
Para ser sincero, eu não lembro. Eu fui um banana, sempre confiando nas pessoas. Foi um erro grave que cometi e vou pagar por isso.
Outros vereadores de Porto Alegre já lhe procuraram propondo repasse de emenda impositiva?
Não que eu lembre.
Em 2024, o então vereador Cláudio Conceição (UB) indicou uma emenda impositiva de R$ 300 mil para o Urbis organizar um campeonato esportivo. Foi publicado no Diário Oficial e chegou a acontecer o pré-empenho pela Secretaria Municipal de Esporte Lazer e Juventude. Cerca de 15 dias antes do pagamento, no final de julho de 2024, o vereador pediu à secretaria o cancelamento imediato da emenda. O que aconteceu?
Exatamente, mas eu não sabia que tinha sido pedido o cancelamento. Nessa emenda, a secretaria pediu uma série de ajustes no plano de trabalho e eu já estava estressado com o caso anterior (dos R$ 400 mil). Deixei de responder à Secretaria do Esporte. Eles pediram vários ajustes porque estava tudo errado. Com o Cláudio Conceição, nunca falei. Não lembro nem da fisionomia dele.
Mas quem lhe procurou para oferecer essa emenda de R$ 300 mil do gabinete do Conceição?
Foi o Vinícius também. Fizemos um pedido no plenário para todos os vereadores. Nos destinaram um espaço (na tribuna da Câmara) para o Urbis fazer um pedido aos vereadores. E, depois, veio essa proposta. Inclusive, foi o Vinícius que fez o plano de trabalho (da emenda que sairia do gabinete de Conceição, mas acabou cancelada). Só que a Secretaria do Esporte pediu uma série de ajustes ao plano de trabalho. Fizemos um primeiro ajuste, mas voltaram apontamentos. Não é meu chão. Eu não sei fazer isso. E parei de responder. Não consegui falar mais com o Vinícius (já teria, à época, saído do Brasil em viagem aos Estados Unidos). Logicamente, morreu na casca.
Como avalia a situação? O senhor se complicou ou é do Vinícius a responsabilidade?
Eu fui um babaca. Não poderia ter cometido o erro de deixar o dinheiro ir. Foi confiança, jamais imaginei que o cara iria embora para os Estados Unidos. Vou tentar limpar o meu nome e não deixar afetar a federação, que é uma entidade histórica. Não tenho cento e poucos mil, mas se tiver uma forma para devolver esses valores, quem sabe de forma parcelada. Vou tentar fazer isso com a minha defesa.
Com o ex-vereador Ferronato o senhor nunca tratou desses assuntos?
Eu pedi ajuda para ele, mas nunca tratamos nada. O Vinícius sempre fez tudo. Eu não sabia nem os valores das emendas.
Contrapontos
O que diz a defesa de Vinícius de Araújo Pacheco
A defesa de Vinicius De Araújo Pacheco, através de seu procurador constituído, Marçal Carvalho, ciente das manifestações do Sr. Arnobio, afirma que vai se manifestar nos autos da Ação Civil de Improbidade Administrativa.
Reafirma que, desde já seus clientes estão à disposição da justiça na certeza de que, ao seu tempo, todos os fatos serão esclarecidos.
O que diz Cláudio Conceição:
Recorda ter assumido o mandato de vereador em agosto de 2023. Ele afirma que, após tomar posse, havia pouco tempo disponível para a indicação das emendas impositivas ao orçamento de 2024. Conceição relata ter recebido a indicação de inúmeras entidades que buscam recursos junto aos vereadores para fazer projetos sociais. O Urbis era uma delas. Nesse contexto, confirmou a emenda impositiva de R$ 300 mil. Contudo, Conceição afirma ter refletido sobre o valor, sendo elevado para a realização do projeto que se destinava. Ele tomou a decisão de cancelar a emenda quando avaliou que poderia haver alguma irregularidade no funcionamento do instituto. Conceição enviou um e-mail à Secretaria do Esporte, Lazer e Juventude requerendo o cancelamento. A quantia de R$ 300 mil acabou ficando com a prefeitura. Ele sugeriu ao município que o dinheiro fosse usado na reconstrução da cidade após a enchente.
O que diz a Secretaria Municipal de Governança Local e Coordenação Política (SMGOV):
"A execução orçamentária e financeira das emendas impositivas é obrigatória à Administração Pública, não sendo facultado ao gestor a decisão de executá-las ou não, tampouco juízo de admissibilidade sobre o objeto da emenda parlamentar, podendo gerar, inclusive, repercussões ao Chefe do Poder Executivo no âmbito administrativo por sua falta de cumprimento. As emendas são executadas conforme o seu objeto e a finalidade de determinada Secretaria, de acordo com o seu tema. No caso desta emenda, foi executada pela SMGOV, por se tratar de um evento destinado à participação cidadã. O repasse desta emenda foi realizado para a conta da entidade, conforme o termo de parceria, e foi pago em sua integridade, respeitando suas imposições legais, garantindo que não restassem pendências orçamentárias para o ano seguinte (restos a pagar), conforme determinado na Lei das Emendas Impositivas.
Após o conhecimento da Ação, encaminhamos notificações para a entidade e solicitamos ingressar junto com o MP como autor da Ação conta o Instituto. Apesar de informada da necessidade da apresentação de novo plano de trabalho, a entidade não efetuou os ajustes solicitados. Ato continuo, foi encaminhada uma nova notificação reiterando a necessidade de adequação dos documentos para fins de seguimento da parceria, sendo que novamente não foi recebido retorno da entidade. Após, foram enviadas duas novas notificações, mas que também não lograram êxito na solução do caso.
A Secretaria sempre teve como objetivo fiscalizar a parceria firmada, mas encontrou dificuldades para exercer a adequada fiscalização diante das reiteradas condutas praticadas pela entidade, que se furtou da responsabilidade de apresentar o extrato bancário da conta corrente.
Entretanto, a partir dos fatos narrados, fica claro que os recursos repassados foram utilizados de forma diversa do que previsto no plano de trabalho, havendo, inclusive, fundados indícios de fraude e desvios de recurso público praticados pela instituição, levando à conclusão de que a única medida possível ao Poder Executivo é de se colocar como principal interessado na devolução dos valores atinentes à parceria celebrada e na apuração dos fatos, razão pela qual a SMGOV solicitou, por meio da Procuradoria-Geral do Município (PGM), a inclusão do Município de Porto Alegre como agente ativo da demanda."