Um ano depois
E se houver uma nova enchente? O que mudou no sistema de proteção de Porto Alegre desde maio de 2024
Embora parte das casas de bombas agora contem com geradores, comportas destruídas não foram repostas e processo de recuperação dos diques está paralisado



Um ano depois de ter submergido em meio à pior catástrofe climática já registrada no Estado, Porto Alegre voltaria a inundar caso uma enchente de proporção semelhante acontecesse hoje. Especialistas e prefeitura avaliam que a Capital sofreria impacto menor, mas ainda teria bairros tomados pela água, principalmente na Zona Norte.
Falta de comportas, diques interrompidos e deficiências em casas de bombas mantêm o município sob risco diante de intempéries (confira no mapa ao final da reportagem o andamento dos trabalhos). Um estudo mais amplo para fortalecer o sistema de proteção está sendo elaborado, mas deve levar ao menos três anos para ser totalmente executado.
Esta é a primeira de uma série de reportagens de Zero Hora e da Rádio Gaúcha para marcar um ano da enchente histórica de maio de 2024.
Se a chuva persistente se repetisse um ano depois, a água que desce com força pelo Rio Jacuí rumo ao Guaíba ainda encontraria vãos para invadir a cidade pelo 4º Distrito. Ali, o sistema de proteção tem dois buracos sob o leito da Avenida Castelo Branco: as comportas 12 e 14, arrancadas pela enxurrada em 2024, ainda não foram substituídas.
Em um novo cenário de emergência, esses pontos vulneráveis teriam de ser fechados com sacos de areia, concreto ou argila, segundo o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae).
— Essa é hoje a nossa maior fragilidade, as comportas que estão abertas. Mas a gente já assinou contrato e deve dar ordem de início nos próximos dias. (Levará) de seis a oito meses (a instalação) de comportas novas com motores hidráulicos — afirma o diretor-executivo do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), Vicente Perrone.
Perrone diz entender a indignação de quem passa diante das aberturas danificadas pelo aguaceiro há um ano e vê que não foram providenciadas novas estruturas de proteção:
— Isso tira o meu sono. Tenho nas minhas anotações todos os processos de licitação e, todos os dias, pergunto para os diretores onde e com quem estão. Não tiro a razão (de quem cobra mais rapidez). A urgência é nossa de dar resposta ao que aconteceu. Isso é responsabilidade do Dmae.
Além das comportas 12 e 14, o Dmae promete substituir o equipamento de número 11, localizado junto à Avenida São Pedro, por apresentar defeitos. No local, a reportagem de Zero Hora encontrou a comporta sem trilhos aparentes e parcialmente bloqueada por lixo, mato e sacos de areia.

A prefeitura também decidiu reduzir o número de comportas, concretando parte das antigas passagens. Isso já foi feito nos equipamentos 3, 5 e 7 (no Muro da Mauá), mas ainda precisa ser replicado nas aberturas 8, 9, 10 e 13 (desde a parte norte do muro até o começo da Avenida Castelo Branco). Quando concluído, o fechamento definitivo das sete das passagens vai reduzir de 150 metros para 45 metros os vãos no muro da Mauá.

Brechas históricas
Há outros três pontos da cidade por onde a enchente de maio se infiltrou que seguem desprotegidos e que não têm previsão de serem bloqueados (veja no mapa abaixo). O primeiro deles fica em um cartão postal da cidade, a Usina do Gasômetro. A região do prédio histórico não é protegida pelo muro da Mauá nem pelo dique da Avenida Edvaldo Pereira Paiva.
As outras duas brechas do sistema estão no dique da freeway — a base dessa rodovia é uma das estruturas de defesa da cidade. Há dois vãos sob a via expressa — nos pontos de travessia das avenidas Assis Brasil e Ernesto Neugebauer — que fazem desse dique um sistema incompleto.
— Nestes locais, as águas entraram (no ano passado) e entrariam livremente outra vez, caso essas passagens não sejam vedadas. Não sabemos ainda como isso será sanado — alerta o hidrólogo do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Fernando Fan.
O Dmae sustenta que possíveis soluções para as três brechas dependem de projetos complexos, ainda sem perspectiva de definição, para bloquear o avanço da água sem impedir a circulação de pessoas e veículos.
Diques
Estruturas fundamentais para impedir que rios e córregos transbordem para as ruas, os diques localizados na Zona Norte ainda não estão nas condições ideais para conter outra enchente. As obras destinadas a reforçá-los e elevá-los a uma cota mínima de 5m80cm têm como principal obstáculo a dificuldade para remover os imóveis erguidos sobre as barreiras ou junto a elas.
Neste momento, seguem em fase final os trabalhos de correção no chamado dique da Fiergs, onde não há moradias. A conclusão está prevista para maio.
No dique do Sarandi, até janeiro foi recuperado um trecho de 1,1 quilômetro entre a freeway e o começo da Vila Nova Brasília, onde também não existem casas. A partir dali, o serviço foi interrompido por questões legais envolvendo a remoção de 57 famílias que vivem sobre o dique ou no entorno. Segundo o Dmae, 32 delas aceitaram se mudar, mas a demolição dos imóveis foi suspensa por decisão judicial para evitar o risco de impactos sobre as moradias de quem ainda não aceitou o acordo.
Os pontos em que a estrutura rompeu em maio de 2024 foram fechados, mas o topo do dique apresenta ondulações, sustenta casas e é ladeado por montanhas de entulho.
Além desse trecho, há outros 10 quilômetros de diques da Zona Norte que também demandam melhorias. Para a recomposição de todo o traçado, o Dmae estima que seja preciso remover entre 1,5 mil e 1,7 mil famílias, ao custo de até R$ 340 milhões.
— O problema no Sarandi é de moradia. A execução do serviço é bem mais simples, porque é basicamente fazer sondagem e colocar argila compactada. Mas, como há uma questão social envolvida, de habitação, transforma-se em uma incógnita, além de envolver um volume significativo de dinheiro — alega Perrone.
A posterior elevação da cota dos diques para 7m, que é o nível recomendado de segurança, exigiria um número ainda maior de remoções e um desembolso igualmente mais elevado. Não há, até o momento, datas exatas para a retomada ou para a conclusão do trabalho de recomposição dos diques do Sarandi.
Casas de bombas
Pouco conhecidas pela população até a enchente de 2024, as casas de bombas tornaram-se símbolo de um sistema de drenagem que exige manutenção permanente e funcionamento ininterrupto — sob pena de bairros inteiros alagarem em poucas horas.
Durante a grande enchente, esses equipamentos apresentaram dois problemas principais. O primeiro é que, sem isolamento, parte das casas de bombas foi tomada pelas águas da cheia e parou de funcionar.
Segundo o Dmae, as unidades 17 e 18, localizadas no Centro Histórico, são as primeiras que estão recebendo melhorias, com a construção de um sistema que evita que a água do Guaíba entre na cidade por meio da própria canalização das casas de bombas. Conforme o Dmae, esse trabalho termina “nas próximas semanas”.
Já a reforma dos prédios das estações de bombeamento, a elevação dos painéis elétricos e a substituição de motores ainda não começou. A primeira licitação foi cancelada por exigências técnicas consideradas excessivas pelo Dmae. Uma segunda tentativa de contratação será aberta “nas próximas semanas”.

O segundo problema percebido foi a interrupção do fornecimento de energia elétrica. Para evitar que isto se repita, o Dmae atualmente mantém geradores de energia — com acionamento automático — em 17 das 23 casas de bombas.
A solução estrutural projetada é a instalação de linhas elétricas exclusivas. Funcionando como uma dupla alimentação, a fiação sairá diretamente de uma subestação da CEEE Equatorial e, sem passar pelos postes convencionais, chegará a casas de bombas, estações de captação de água e estações de tratamento. O custo estimado é de R$ 15 milhões a R$ 20 milhões, com previsão de entrega em um ano após a contratação.
— Estamos em vias de abrir uma licitação ou outro formato para contratar as linhas dedicadas. É uma linha exclusiva que sai da subestação e vai direto para 30 estruturas do Dmae. Sai um fio direto, alto, sem intervenção. Só ficará sem energia caso se perca a subestação — diz Perrone.
"Patologias" no muro da Mauá
Único dos equipamentos de defesa da cidade a não sucumbir durante a enchente de 2024, o muro da Mauá apresenta “patologias no concreto armado”, segundo avaliação preliminar feita pelo Laboratório de Ensaios e Modelos Estruturais da UFRGS. Em razão disso, desde agosto de 2024 a prefeitura realiza a recuperação estrutural, intervenção que, segundo o Dmae, deve ser concluída “nas próximas semanas”.
Protegida em até cinco anos
O hidrólogo do IPH Fernando Dornelles avalia que a falta de ações mais definitivas fragiliza a proteção de Porto Alegre diante de novas enchentes.
— Acredito que inundaria novamente (se a cheia de 2024 se repetisse), porque a gente ainda teria de enfrentar isso com alternativas emergenciais, como sacos de areia, que são alternativas mais vulneráveis do que uma comporta de aço bem projetada e afixada. Ainda teríamos entrada de água pela Assis Brasil e pela Ernesto Neugebauer (sob a BR-290, no limite com Canoas). Iríamos colocar sacos de areia lá, interromper o trânsito? E o dique do Sarandi nunca atingiu a cota do projeto — analisa o especialista.
O diretor-executivo do Dmae admite que a Capital sofreria impactos diante de uma nova enchente, mas estima que seria atenuado pelos investimentos feitos.
— Seria muito menos grave (a inundação). Isso eu posso garantir. Porque a gente conhece o sistema. Hoje a gente tem geradores nas casas de bomba, temos quadros de transmissão automática (que acionam os geradores automaticamente), e as bombas estão funcionando muito melhor — enumera Perrone.
Um estudo completo sobre o sistema de proteção da cidade, com o diagnóstico detalhado e indicações de novas medidas, só deverá ficar pronto em julho de 2026. A previsão do Dmae para que a cidade fique de fato protegida é de três a cinco anos, dependendo das dificuldades burocráticas e de engenharia encontradas para a concretização dos planos.
— Dentro do cronograma, se tudo corresse bem, muito provavelmente em três anos nós teríamos (tudo pronto). É possível, mas é mais provável que ocorra em cinco anos. A gente sabe que não é tão simples — complementa o diretor-geral do Dmae, Bruno Vanuzzi.
As previsões não incluem a construção de um sistema de defesa na Zona Sul, em bairros como Guarujá, Belém Novo e Lami, atualmente sem proteção contra os avanços do Guaíba.