Novas coordenadas
Esperança e vontade de recomeçar: gaúchos que migraram em razão da enchente refazem a vida em outras cidades
Reportagem de Zero Hora encontrou algumas dessas pessoas, chamadas de refugiadas climáticas, e mostra como está o recomeço de laços afetivos, as lembranças do que ficou para trás e o que elas esperam do futuro



Em questão de horas, milhares de gaúchos mudaram drasticamente as suas vidas. Em maio do ano passado, muitos foram obrigados, para evitar serem levados pela água que avançava pelas ruas, invadia casas, derrubava grades e portões de fábrica e subia ferozmente, a deixar suas casas. Para grande parte desses moradores, era a terceira vez que a inundação destruía negócios e residências, fazendo com que a mudança de endereço fosse inevitável.
Um ano depois, os chamados refugiados climáticos recomeçam as suas vidas em novos locais, fugindo da força da natureza e buscando novos horizontes. A reportagem de Zero Hora encontrou algumas dessas pessoas e mostra como está o recomeço em distâncias que chegam a centenas de quilômetros das antigas moradias.
Fernanda Paula Silva teve a casa, comprada meses antes da enxurrada e o comércio, inundados pela força do Jacuí em Eldorado do Sul. A decisão foi recomeçar em Porto Alegre. O casal Paulo Roberto Silva e Chaiane Nunes dos Santos saíram às pressas, com a água já no tornozelo, para viver em Quintão. Alessandra, que cresceu na região da Ilhas se viu obrigada a deixar a moradia que podia desabar, carregando apenas as lembranças para uma nova vida na zona norte da Capital. No Vale do Taquari, o empresário Walter Koller, decidiu transferir a empresa de Lajeado para Estrela, numa área mais elevada, protegida da fúria do Rio Taquari. O casal Murilo Machado e Julia Kegler ficou apenas com a saudade dos familiares, amigos e da cidade para criar novos laços afetivos e comerciais em Santa Catarina.
Esta é a segunda de uma série de reportagens de Zero Hora e da Rádio Gaúcha para marcar um ano da enchente histórica de maio de 2024.
A saudade do pôr-do-sol, agora 17 quilômetros mais distante
Dormir nunca mais foi a mesma coisa para Fernanda Paula Silva, 39 anos, e os dois filhos, de 13 e 5 anos, desde a fatídica madrugada de 2 de maio de 2024. A família viu, aflita, a água praticamente tomar por completo a residência no bairro Centro Novo em Eldorado do Sul, na Região Metropolitana. A chuva volumosa caía de forma violenta e o nível do Rio Jacuí subia com velocidade. Eles saíram às pressas. Fernanda, que é empreendedora, perdeu também o seu negócio, na ocasião, pela inundação. O comércio de venda de frango assado ficava no bairro Chácara, castigado de forma severa pela enxurrada. Diante de tudo isso, havia poucos motivos para ficar.
Com o pouco que deu para salvar, Fernanda e os filhos deixaram Eldorado do Sul em direção a Porto Alegre. E nunca mais voltaram. Fernanda conta que a decisão foi baseada no medo de reviver tudo de novo.
— Desde aquela madrugada em que eu fechei a minha casa eu não voltei mais. Acabei ficando em Porto Alegre por medo mesmo, porque a qualquer chuva que dá, a gente já fica desesperada.
A altura da água chegou a 1,5 metro na residência e atingiu o teto do estabelecimento comercial. Poucas peças e equipamentos puderam ser recuperados do local.
Vai alagar de novo, vai alagar de novo. É um trauma.
FERNANDA PAULA SILVA
A morada deixada para trás, agora alugada por outra família depois da limpeza, foi entregue à Fernanda meses antes da tragédia climática. O lugar que concretizava a realização de um sonho mal teve tempo de abrigar outras memórias. Abandonar as conquistas de uma vida está entre as maiores perdas mencionadas pelos migrantes.
— A Caixa me entregou a chave, a casa novinha, recém financiada, tudo lindo, tudo branquinho. Sabe? As minhas tomadas, as minhas janelas. Não passei um Natal e um Ano Novo na minha casa. Emocionada, Fernanda relembra um aspecto de que sente falta.
Sinto muita saudade do pôr-do-sol da minha janela, porque é lindo o pôr-do-sol lá em Eldorado do Sul.
O recomeço na Capital tem sido “a passos de formiguinha” e conta com o suporte de amigos e familiares. O endereço fica no bairro São José, na zona leste da Capital, distante de inundações, e recebe casa e comércio lado a lado.
— Eu ainda estou começando a existir aqui em Porto Alegre, né? Eu sei que, de repente, não vou acessar o centro da cidade, mas eu não preciso, porque tenho o mercado e a escola dos meus filhos perto. Então, as coisas estão, sim, caminhando para o melhor — celebra a empreendedora.
Uma nova vida chegando – 143 quilômetros depois
Berço montado, enxoval encaminhado, ansiedade e planos pela frente. Completando sete meses de gravidez, a autônoma Chaiane Nunes dos Santos, 34 anos, prepara a chegada de Lorenzo, ao lado do marido, Paulo Roberto Silva, 64 anos. O casal deixou Eldorado do Sul no dia 2 de maio de 2024 e decidiu ficar na casa de praia da família, em Quintão, acompanhados da cadelinha e da gatinha de estimação.
Aposentado, Paulo conta que viveu no município da Região Metropolitana desde 2000 e já havia enfrentado outras inundações, mas nada comparado ao que aconteceu no ano passado, quando os dois saíram já com a água batendo no tornozelo dentro de casa.
Na de 2024, eu perdi tudo. Tem roupas aqui que eu estou usando até hoje que ganhamos de doação. A gente foi levantando tudo, achando que não ia ser tão alto. A água chegou em cima do telhado, quebrou telha, quebrou tudo.
PAULO ROBERTO SILVA
Um ano depois, Paulo conta que é difícil lidar com o psicológico e com a saudade dos filhos do primeiro casamento, que ficaram na cidade da Região Metropolitana. O contato é mantido pelo celular.
— Não consigo dormir direito desde a enchente. Começo a pensar na minha casa lá. A minha filha morando lá. A minha cabeça está sempre voando, não consigo descansar.
Chaiane diz que a chegada do bebê despertou mais insegurança e pavor de ter que lidar com os alagamentos outra vez.
Eu não quero voltar para lá, porque tenho medo de pegar mais uma enchente.
CHAIANE NUNES DOS SANTOS
Sentado no gramado da frente da nova casa, Paulo comenta o adesivo que fez questão de manter na traseira do carro com a frase "Eu amo Eldorado do Sul".
— Eu vou uma vez por mês lá rever os amigos e depois eu retorno. A saudade é muito grande. Vou continuar amando Eldorado. É a minha segunda cidade. Nasci em Porto Alegre, me criei em Viamão, mas hoje eu sou eldoradense de coração — confessa ele, ainda alimentando a esperança de um dia poder retornar ao município pelo qual nutre tanto carinho.
Lembranças ficaram 20 quilômetros para trás

Alessandra Lacerda, 25 anos, cresceu na Ilha Grande dos Marinheiros, em Porto Alegre. Percorrendo as ruas vazias, a líder comunitária recorda os jogos de taco e as correrias de quando era criança. A casa, repleta de memórias, se tornou inabitável e com risco de desabamento. A água, além de levar embora os materiais que ela utilizava para vender açaí, arrastou a vontade de voltar a viver na região das Ilhas, apesar do amor que ela demonstra pelo local.
Por um lado, me parte de ter que estar saindo daqui, mas, por outro, não dá para ficar. A ilha não é mais segura por conta da enchente.
ALESSANDRA LACERDA

A resiliência diante dos alagamentos faz parte do cotidiano dos chamados “ilheiros”, mas a inundação de 2024 deixou o cenário insustentável. Alessandra diz que ainda paga contas de móveis que nem tem mais. O sentimento de abandono carregado pela comunidade fez com que a líder comunitária decidisse ir embora. Vivendo provisoriamente em estadia solidária no bairro Vila Farrapos, em Porto Alegre, Alessandra aguarda o processo do Compra Assistida, da Caixa Econômica Federal, para morar em um imóvel escolhido em Alvorada, com o filho de cinco anos.
Eu fui para a casa do meu irmão em Eldorado do Sul. A gente não sabia que a enchente ia ser tão grande. De lá, fomos para a Mathias (bairro Mathias Velho, em Canoas), com água no peito. Depois, a gente foi para Guajuviras (em Canoas), na minha irmã. Nisso, fui para a Alvorada e depois aluguei na Vila Farrapos.
Mesmo trocando de município, Alessandra diz que não deixará de atuar como líder comunitária para ajudar seus vizinhos e a mãe, que ainda mora no mesmo terreno e também aguarda o processo para adquirir uma nova casa.
— Ela não está aceitando muito bem sair da ilha, mas eu falei para ela que não tem como ficar, não tem mais posto de saúde. Hoje tem uma carreta com atendimento maravilhoso, mas a gente não sabe até quando — desabafa Alessandra, relatando que, a cada nova chuva, o coração ainda fica aflito pensando na mãe e nos moradores que seguem na ilha.
Empresa centenária renasce distante 10 quilômetros
Muitos planos ambiciosos motivavam as celebrações pelo aniversário de cem anos da Vinagres Prinz, empresa tradicional no Vale do Taquari. No entanto, nenhum deles previa que o ano do centenário fosse também o de uma troca de endereço. Cravada desde a sua origem em Lajeado, uma das cidades mais atingidas pelas cheias de 2024 na região, a indústria se viu obrigada a buscar novo terreno depois que o avanço da água fez sucessivos estragos.
Walter Koller, 74 anos, que administra o empreendimento com as duas filhas, conta que a decisão de migrar foi tomada ainda em 2023, depois da segunda inundação. A dificuldade de encontrar um local adequado para abrigar uma fábrica inteira, contudo, fez com que a terceira onda, em maio passado, fosse ainda mais nefasta ao negócio.
Diante das perdas, não restou outra alternativa. A empresa está construindo uma nova fábrica em Estrela, também no Vale do Taquari, mas em área mais alta e afastada do rio. A obra está em fase final de terraplanagem e deve ficar pronta até o fim do ano, prevê Koller.
A mudança da Prinz recebeu a primeira Licença Única concedida pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) no Estado após a enchente. O processo simplificou regras ambientais de forma emergencial por um ano para as empresas que optassem por levar suas operações para áreas sem risco de inundação.
Nas palavras do empresário, dois sentimentos distintos resumem a migração: mágoa e orgulho. Apesar da perda simbólica e material que a mudança física representa, ela vem acompanhada de uma força de vontade para a indústria permanecer ativa.
A mágoa é muito grande sobre o que a gente tem e desvalorizou. Tudo aqui em Lajeado, na beira do rio, desvalorizou. O nosso capital que valia Y, hoje vale X a menos. Mas o outro sentimento é o orgulho de poder fazer isso em vida. Peço a Deus que me dê dez anos para poder trabalhar e deixar essa fábrica montada, nova, para meus filhos e netos darem continuidade depois
Koller diz que manter o quadro de funcionários está entre as preocupações no novo endereço. Negociações com a prefeitura já estão na mesa para que opções de moradia sejam construídas próximas ao novo local a fim de atrair trabalhadores, diz o empresário. Dos 70 funcionários mantidos hoje, a previsão é ampliar para 90. Enquanto isso, o deslocamento será suprido por transporte da empresa.
A produção segue em Lajeado, com Koller riscando os meses no calendário e torcendo para que outra chuva não venha antes da mudança.
Estamos dimensionando toda ela (a fábrica) num projeto maior, de todas as formas.
Casal recomeça a vida 448 quilômetros de Eldorado do Sul

O trauma de três alagamentos, de setembro de 2023 a maio de 2024, foi o bastante para que Murilo Machado, 21 anos, e a esposa Julia Kegler, de 20, decidissem deixar o Estado. O casal fixou residência em São José, na Região Metropolitana de Florianópolis, em Santa Catarina. O restante da família permaneceu em Eldorado do Sul, no bairro Chácara, um dos mais afetados pela enchente do ano passado.
(Partir) Foi um processo bem difícil por causa da família. A gente sente muita falta.
MURILO MACHADO
Junto com eles, foi o negócio. Depois de um tempo trabalhando em outra empresa até se adaptar, Murilo reabriu no novo Estado a oficina de estética automotiva que mantinha em Eldorado há cinco anos. Os negócios têm acontecido aos poucos, até se firmar em meio à concorrência, mas já indicam que a decisão foi acertada.
Estamos indo aos poucos. É complicado começar do zero. Mas em relação ao que tinha em Eldorado, nem se compara.
MURILO MACHADO
Apesar da aposta alta em razão da distância, Machado conta que a recepção dos catarinenses faz valer a pena. Ele diz que os vizinhos têm sido muito acolhedores com os gaúchos que sofreram e ainda sofrem.
Não fosse a crise climática, no entanto, ele diz que não teria deixado o RS.
— Pretendo permanecer aqui porque o mercado parece ser melhor em razão de ter mais pessoas e um maior poder aquisitivo. Mas, não fosse a enchente, eu teria ficado porque amo Eldorado e amo o Rio Grande do Sul. Machado futuramente espera levar o resto da família para SC.
O que são refugiados climáticos?
Junto à escalada dos desastres ambientais, popularizou-se uma expressão para designar aqueles que deixam as suas casas, de forma permanente ou temporária, para escapar da força da natureza. São os refugiados climáticos, representados por indivíduos ou famílias inteiras que mudam as suas geografias em busca de lugares mais seguros para viver.
Apesar da popularidade e ao contrário de outros conceitos como migrante, refugiado ou asilado político, não há uma definição legal no Brasil ou de organismos internacionais sobre refugiados climáticos. O que existe é uma interpretação muito ampla sobre o que se enquadraria neste grupo de pessoas, explica o professor de Relações Internacionais da ESPM-SP, Roberto Uebel.
Segundo Uebel, a falta de uma definição legal sobre o conceito resulta em uma série de entraves, seja para a elaboração de políticas públicas, seja para a obtenção de auxílios por parte dos atingidos.
— As pessoas não são entendidas como indivíduos que se deslocaram forçadamente por situações climáticas, ainda que de modo temporário. Isso dificulta a obtenção de auxílio financeiro, por exemplo, ou leva ao caso que vimos de cidadãos sem nenhum documento tendo que lidar com a burocracia — diz o pesquisador.
Refugiados no RS
Estudo conduzido pelo pesquisador mostrou que mais de 2 milhões de pessoas foram diretamente afetadas pela cheia no Rio Grande do Sul. Metade delas precisou se deslocar de suas casas, de forma permanente ou temporária.
Duas características marcaram as migrações no Estado, aponta Uebel. A primeira delas é que não houve distinção aos grupos afetados, nem de renda ou de local de residência:
— A enchente atingiu a todos de uma maneira muito parecida. Pessoas que viviam em bairros de alta concentração de renda tiveram que sair assim como pessoas de zonas periféricas. Claro que pessoas com maior renda conseguiram buscar refúgio na casa da praia, em pousada, hotel, e aquelas com menos recursos tiveram que procurar os abrigos públicos, as ONGs. É uma característica que marcou bastante.
Outra particularidade foi a falta de preparo das cidades, sem nenhum tipo de protocolo para uma migração ordenada que recebesse os refugiados.