Caos
Canoas tem hospitais superlotados, falta de insumos e 82 mil pedidos de consulta pelo SUS; entenda a situação
Município da Região Metropolitana vive um cenário de crise na saúde pública. Em março, fila de solicitações incluía ainda 21.313 para exames e 12.441 para cirurgias


Canoas vive um cenário de crise na saúde pública. O município da Região Metropolitana tem três hospitais, sendo dois exclusivos para atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas as instituições estão superlotadas e operam sem insumos básicos, como medicamentos, agulhas e luvas. Também há falta de pagamento de médicos, de direitos trabalhistas e problemas nas escalas de funcionários.
Apesar de ter uma das maiores populações do Rio Grande do Sul, 347 mil pessoas, conforme o último Censo, Canoas conta com apenas 15 leitos de emergência disponíveis. Em São Leopoldo, por exemplo, são 41 leitos de emergência para 217 mil habitantes.
Os números de solicitações de atendimento pelo SUS em Canoas, no entanto, são muito maiores: 82 mil pedidos de consulta, 21.313 para exames e 12.441 para cirurgias aguardavam na fila em março de 2025.
Como está o atendimento nos hospitais
Referência em traumatologia para mais de cem municípios, o Hospital de Pronto Socorro (HPS) de Canoas tem a pior situação. Fora da sua estrutura devido à enchente de maio de 2024, a equipe está alocada junto ao prédio do Hospital Nossa Senhora das Graças e é responsável pela porta de urgência e emergência das duas instituições.
Conforme documentos obtidos com exclusividade pela reportagem, faltam semanalmente luvas, agulhas, seringas, ataduras, compressa de gaze, coletor de urina, equipamento para infusão intravenosa, fralda, esparadrapo e soro. Além dos suprimentos básicos, também não há medicamentos e itens necessários para especialidades:
— Faltam medicações, incluindo remédio para dor, como dipirona, e antibióticos. Tem semanas que temos que substituir diariamente o tipo do remédio, e quando é necessário um antibiótico de amplo espectro, o paciente fica sem o tratamento adequado. Não tem cateter para medir a pressão intracraniana, sendo que é um hospital referência de trauma que atende muitos casos de traumatismo cranioencefálico — relatou uma profissional que prefere não ser identificada.
Segundo médicos que atuam no HPS, a falta de itens básicos é recorrente. Existem ainda problemas nas escalas, principalmente de cirurgiões plásticos e médicos vasculares, conforme o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers).
Essa situação havia sido alertada em março pelo ex-diretor técnico do hospital, Álvaro Fernandes. O profissional foi exonerado pela prefeitura de Canoas no mesmo dia que anunciou o fechamento da emergência. As escalas incompletas geram consequências graves aos pacientes.
Um dos casos é o de Paulo Michael Souza Waltemann de Freitas, 26 anos, que sofreu um acidente de trabalho no dia 19 de abril. O morador de São Francisco de Paula, na serra gaúcha, foi encaminhado ao HPS de Canoas devido uma fratura no braço. Ao chegar lá, os familiares foram informados de que não havia médico vascular de plantão.
— Só no outro dia foi que o hospital conseguiu um médico vascular e meu filho passou por uma segunda cirurgia. Depois de um tempo, ele contraiu uma bactéria e o médico disse que não tinha como esperar, precisava amputar o braço ou corria risco de morrer — contou a mãe dele, Fabiana Guedes.
No dia 4 de maio, Paulo teve parte do braço amputado. Segundo Fabiana, os familiares foram orientados a buscar um cirurgião plástico para dar continuidade no tratamento:
— O médico avisou que não tinha o cirurgião para o caso dele. Disse que era para eu transferir meu filho para algum hospital onde tivesse um cirurgião plástico, porque o caso era grave e tinha que ter cuidado para a bactéria não voltar.
Conforme a familiar, a transferência pelo SUS não foi feita. No dia 7 de maio, o paciente foi levado para a ala particular do hospital de Sapiranga, a custo da empresa em que trabalha.
A falta de médicos especialistas nas escalas também está vinculado à falha no pagamento dos salários. Conforme informações do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), os salários entre dezembro de 2024 e fevereiro de 2025 não foram pagos.
As dívidas são de responsabilidade da prefeitura e do Instituto de Administração Hospitalar e Ciências da Saúde (IAHCS), que administra o hospital. A gestão alega que o município não repassa o valor total do contrato. A prefeitura, afirma que está pagando pelos serviços realizados atualmente.
Restrições em cirurgias eletivas
Conforme os relatos de profissionais, nenhuma cirurgia eletiva está sendo realizada no HPS de Canoas. Apenas casos graves e de urgência são operados. Com a restrição, os médicos são orientados a cadastrarem e encaminharem os pacientes ao Hospital Universitário (HU), onde, no entanto, também há problemas.
— A orientação é encaminhar todos os casos para o HU, mas o problema é que lá não tem agenda também. Não é autorizada cirurgia em quem não está internado. Os pacientes estão ficando com sequelas. Uma idosa que atendi precisava voltar no HU há três semanas, mas veio até o HPS porque não conseguiu atendimento lá. No caso dela, não tem mais como ser feita a cirurgia, já passou o tempo — contou um médico que prefere não ser identificado.
Acompanhando o marido, internado desde o dia 30 de março à espera por uma cirurgia de coluna, a moradora de Cambará do Sul, Ereni dos Santos, 49 anos, relata que não há previsão de data para o procedimento. Além disso, ela precisa levar medicamento de casa para manutenção do tratamento.
— Não tem previsão da data. E falta remédio. Meu marido precisa tomar pregabalina porque está fazendo um tratamento e não tem. Eu vou trazer de casa porque aqui não tem.
O cenário do Hospital Nossa Senhora das Graças é semelhante ao do HPS. A instituição, administrada pela prefeitura a partir de intervenção, suspendeu por quase um mês os atendimentos eletivos devido à superlotação. Familiares de pacientes também relatam falta de itens básicos:
— Falta tudo, não tem remédio para dar na hora, não tem material para trocar os curativos, fraldas e luvas. Os enfermeiros até se esforçam, mas faltam as coisas. Meu filho se acidentou no dia 23 de março e precisa fazer uma cirurgia no HU, só que não tem nem previsão de quando vão transferir — contou a mulher que não quis se identificar.
No Graças também há falta de salários. Os médicos estão com os pagamentos atrasados relativo ao mês de dezembro de 2024. Em comparação com dos demais, a situação do HU não afeta diretamente o atendimento da população. A instituição não possui emergência, mas é referência em obstetrícia para outros municípios.
O principal problema afeta colaboradores e ex-funcionários. Isso porque, há uma dívida de cerca de R$ 95 milhões envolvendo rescisões, depósitos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e impostos.
A maior parte desse montante é de responsabilidade da prefeitura – da época em que o hospital estava em intervenção municipal. Outra parte diz respeito a atual gestora, a Associação Saúde em Movimento (ASM). Além disso, conforme o Simers, há atraso nos salários de médicos em dezembro de 2024 e fevereiro de 2025.
Fila do SUS
Dados da Secretaria Municipal de Saúde mostram que, em março, a fila para consultas tinha 82.803 pedidos. Ortopedia e traumatologia tem a maior demanda, com 10.120 solicitações. Em relação aos exames, os números também preocupam. São 21.313 entre exames simples e complexos, sendo 10 mil solicitações para ultrassonografia.
A fila das cirurgias é a menor, mas chama atenção. Dos 12.441 pedidos, 5.549 são da área de traumatologia e ortopedia. Essas especialidades são atendidas pelo HPS e HU.
Ministério Púbico investiga a desassistência no município
O Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) instaurou um inquérito civil para investigar a desassistência médica em Canoas, especialmente a falta de profissionais no HPS. A medida foi instaurada em abril, após solicitação do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers).
O promotor responsável pelo caso, Márcio Emílio Lemes Bressani, afirma que a situação preocupa diante da chegada do inverno, quando há maior demanda para o sistema de saúde. Ainda conforme o promotor, o cenário atual está sendo analisado, o próximo passo é buscar a perspectiva do Estado, assim como medidas eficientes para evitar a desassistência à população.
O que diz a prefeitura:
A Prefeitura de Canoas, por meio da Secretaria Municipal da Saúde, ressalta que vem trabalhando incansavelmente para recuperar o sistema de saúde da cidade e garantir as melhores condições atendimento para a população. A administração municipal está revitalizando a gestão da saúde, implementando novas ferramentas administrativas e melhorando as condições de trabalho e de atendimento da população. Desde o início da atual gestão, mutirões de consultas, exames e cirurgias em diversas especialidades têm sido realizados nos hospitais e unidades de saúde da cidade, resultando em avanços significativos na redução das filas.
Canoas também está mobilizada, em conjunto com os municípios integrantes do Consórcio da Associação dos Municípios da Região Metropolitana da Grande Porto Alegre (Granpal), para buscar junto aos governos estadual e federal o repasse mais apropriado de verbas para o sistema de saúde da região, que atende não só a demanda interna de cada município, mas também de cidades do interior do Estado, o que tem resultado nos episódios de lotação verificados nas últimas semanas.
A Prefeitura informa ainda que apura todas as denúncias relacionadas ao atendimento de saúde da população em todo o sistema e toma as medidas necessárias para solucionar eventuais problemas encontrados.
O que dizem os hospitais:
Hospital de Pronto Socorro
O Hospital de Pronto Socorro de Canoas (HPSC) informa que a Lei Geral de Proteção de Dados estabelece critérios de divulgação de dados sensíveis, razão pela qual não comentamos casos de pacientes.
Em relação à realização de cirurgias de segundo tempo no HPSC, esclarecemos que as mesmas não fazem parte do escopo do contrato do hospital, sendo os casos encaminhados aos hospitais de referência por meio da Central de Regulação.
O HPSC segue à disposição para esclarecimentos e reafirma seu compromisso com a qualidade da assistência prestada à população.
Hospital Universitário
O Hospital Universitário não retornou aos contatos até a publicação desta reportagem.