Um ano depois
Centros de acolhimento da enchente serão esvaziados e terão atividades encerradas
Últimos 127 habitantes das unidades de Porto Alegre e Canoas serão acomodados em casas temporárias ou aluguel social


Um ano após a enchente, o governo do RS ingressa na última semana para o encerramento dos Centros Humanitários de Acolhimento (CHAs), inicialmente chamados de cidades temporárias. Neste sábado (24), ainda restam 127 pessoas abrigadas nas duas unidades restantes, uma em Porto Alegre, na zona norte, e outra em Canoas. A previsão é de que a maioria seja transferida para casas temporárias até a próxima sexta-feira (30), mas também há casos de encaminhamento para aluguel social ou estadia solidária.
As soluções provisórias seguirão até que esta parcela da população seja contemplada por políticas públicas de moradia definitiva, que custam a tomar ritmo acelerado em razão de burocracias e necessidade de obras.
Em Porto Alegre, o CHA instalado no Centro Humanitário de Acolhimento Vida tem 115 pessoas que vivem em amplo pavilhão com dormitórios e espaços de convivência demarcados por divisórias móveis. Neste domingo (25), 20 famílias farão a mudança. As demais tomarão o mesmo rumo no decorrer da semana. As pessoas serão acomodadas em local com 80 casas temporárias, instaladas no bairro Santa Rosa de Lima, na zona norte da Capital. Na unidade de Canoas, seguem residindo 12 pessoas que estão em transferência para um terreno com 58 residências temporárias no bairro Estância Velha. A mudança dos últimos habitantes do CHA da cidade metropolitana começou antes, no dia 17 de maio.
As casas temporárias foram adquiridas pelo governo estadual e são transportáveis e reutilizáveis. Os locais em que foram assentadas demandaram instalações de infraestrutura para os serviços básicos, como água e energia elétrica. As soluções, embora temporárias, devem garantir mais privacidade. As moradias são de módulos de concreto e têm 27 metros quadrados, com dormitório, banheiro e cozinha privativos. Todas as unidades são equipadas com mobília e eletrodomésticos da linha branca.

Os dois CHAs, criados em julho de 2024 para substituir abrigos emergenciais que funcionavam em ginásios, devem ser encerrados entre o final de maio e o início de junho de 2025. Ao longo de quase um ano, eles ficaram sob coordenação do gabinete do vice-governador Gabriel Souza, com gestão da OIM, agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para as migrações, e financiamento da Fecomércio. As mudanças das famílias para as casas temporárias são custeadas pela OIM, que também irá auxiliar com vale-alimentação por três meses e recursos para a aquisição de utensílios domésticos e móveis.
Os CHAs, às vésperas da desmobilização, têm dormitórios divididos em alas para famílias, homens, mulheres e LGBT. Os quartos são privados somente no módulo familiar. Os banheiros, espaços de lazer e de alimentação são coletivos. Alvo de críticas pelo caráter provisório, os centros de acolhimento são objeto de avaliação positiva de Gabriel.
— Foi uma política exitosa. A ONU está utilizando como referência global de albergamento. Sofremos críticas de todos os lados, diziam que os CHAs se tornariam definitivos. Sempre dissemos que não deixaríamos lá para sempre, mas era preciso uma solução digna e que não deixasse as pessoas morando em ginásios esportivos — afirma o vice-governador.
O Estado mantém um site em que a situação dos centros de acolhimento pode ser monitorada. Além dos CHAs de Porto Alegre e de Canoas, existem outros sete abrigos no interior gaúcho, mas eles têm poucos alojados. São 28 pessoas no total, distribuídas em General Câmara, Rio Pardo, Barão, Pelotas, Sobradinho e duas unidades em Arroio do Tigre. Um terceiro CHA existiu em Canoas, mas ele foi desativado em dezembro de 2024. No somatório, os três centros que funcionaram em Porto Alegre e Canoas abrigaram 1.184 pessoas. No pico, eles tiveram cerca de 800 abrigados simultâneos.
Família conta os dias para habitar apartamento próprio

Junto do companheiro e de duas filhas, Karine Alessandra Paim, de 38 anos, vive no CHA de Porto Alegre desde 11 de julho de 2024. Ela será uma das últimas pessoas a deixar o local, rumo às casas temporárias. Mas será por pouco tempo. No último dia 16, Karine assinou contrato de aquisição de um apartamento pelo programa Compra Assistida, do governo federal. Ela aguarda o pagamento da Caixa ao vendedor e a saída de um inquilino do imóvel para poder se mudar. O futuro lar da família fica no Jardim Leopoldina, perto da Praça México.
— Sempre é assustador um lugar diferente, mas temos de recomeçar. Gostei da zona norte de Porto Alegre e tem ônibus disponível. Me adaptei. Quero botar o pé em casa, voltar a trabalhar, colocar as filhas na escola e ter minha vida de volta. Sem medo de acordar dentro da água e perder tudo — planeja Karine.
Na trágica enchente de 2024, ela e a família moravam na Ilha da Pintada. A água com correnteza alcançava o segundo andar de casas quando ela foi resgatada por bombeiros na tarde do dia 3 de maio, mas a motoaquática em que estava com a filha Maria Luisa, hoje com 3 anos, tombou.
— Entrei em desespero. Tudo que eu segurava, quebrava. Fomos três vezes para o fundo. Foi um pesadelo — recorda Karine.
Ela e a filha foram salvas do afogamento pelo companheiro, que tinha uma corda amarrada ao corpo e as agarrou.
Maria Luisa cresceu no CHA de Porto Alegre, onde recebe visitantes com abraços e traquinagens. Nos próximos dias, levará sua alegria para um lar definitivo.
— Aqui (no CHA) fiz amigos, tive momentos bons e ruins. Foram várias emoções, mas estou louca para ir embora — desabafa Karine.
Celoí vai virar microempreendedora

Aos 72 anos e depois de passar por cinco abrigos, Celoí Moreira da Silveira exala um otimismo contagiante. Ela irá se mudar para as casas temporárias enquanto espera o trâmite para a aquisição de uma moradia pelo programa Compra Assistida. Celoí fez três cursos de capacitação profissional oferecidos pela OIM no CHA da zona norte de Porto Alegre e foi contemplada com R$ 7 mil para dar a largada em um pequeno negócio. Ela já idealizou a empresa "Doces e Embalagens", do ramo de chocolates. Ela prepara as iguarias, recheia e providencia os invólucros. A idosa não guarda mágoa do passado, quando teve a casa que alugava submersa em Eldorado do Sul.
— Eu não olho para trás. Vamos voar. Não podemos ficar nos lamentando. Tudo o que acontece é para nos fortalecer espiritualmente — diz a dona Celoí.
Preocupação

O governo estadual afirma que nenhuma pessoa ficará ao relento com o fechamento dos CHAs. O público que restou nos locais é de perfil humilde, sem posses ou dinheiro para pagar aluguel. A garantia do poder público é de encaminhamento para as moradias temporárias, instaladas em quantidade suficiente para acolher o contingente restante. Nos últimos dias de funcionamento do CHA da Capital, a OIM mantém uma sala de oportunidades em que faz encaminhamentos para as políticas de habitação aos atingidos pela enchente. Ainda assim, há quem ande com ares de angústia pelo ambiente. Existe dificuldade de compreensão sobre os programas habitacionais. Em meio a informações desencontradas, algumas pessoas dizem ter destino indefinido: são os casos de Alexandre Gomes, Vanderlei Salvado da Silva e Marlene Rudke, os três amparados no CHA da zona norte de Porto Alegre. Eles procuraram a reportagem para manifestar preocupação por não saberem onde irão morar.