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Marco histórico

O último morador do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre

Há 25 anos internado na instituição que é referência em saúde mental no RS, homem foi transferido para residencial em Viamão. Agora, o local passa a tratar exclusivamente pacientes agudos, com estada máxima de 21 dias

16/06/2025 - 12h51min


Fábio Schaffner
Fábio Schaffner
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Com os ombros caídos, a cabeça curvada e arrastando os chinelos numa marcha sincopada pela medicação, Rafael deixa o pátio interno, cruza o corredor e passa pela sala da enfermagem rumo à ambulância. Acomodado no banco traseiro, ganha bergamota e refrigerante. A equipe médica se aproxima. Rafael esboça um sorriso e pisca o olho. Pede para uma das enfermeiras ir junto com ele.

A porta se fecha e a ambulância percorre pouco mais de 300 metros até o pórtico da Avenida Bento Gonçalves, na zona leste de Porto Alegre. São 10h22min de quarta-feira, 11 de junho de 2025, e o Hospital Psiquiátrico São Pedro se despede de seu último morador.

Pela primeira vez em 141 anos de funcionamento, o complexo onde chegaram a viver 5 mil pacientes simultaneamente — quatro vezes a capacidade atual da Santa Casa de Porto Alegre — não tem mais pacientes residindo em seus domínios.

Esse é um momento histórico. Estamos encerrando um capítulo sombrio da história da medicina, um tempo de enclausuramento de pessoas, de desrespeito aos direitos humanos.

LETÍCIA IKEDA

diretora de Gestão dos Hospitais Estaduais

Rafael, cujo nome verdadeiro será omitido para preservar sua privacidade, irá viver em um residencial mantido pela instituição em Viamão. No local, um condomínio com quatro casas, segurança e acompanhamento especializado 24 horas por dia, terá aposentos individuais: quarto com ar-condicionado, banheiro e um pátio de 70 metros quadrados para circular ao sol.

Aos 44 anos, com 1m60cm e 70kg, ele tem saúde física praticamente perfeita. Todavia, a desorganização mental surgida na adolescência avançou subitamente no início dos anos 1990, levando-o a passar a maior parte da vida confinado em pequenas salas úmidas e gradeadas do São Pedro.

Mateus Bruxel/Agencia RBS
Rafael passou a maior parte da vida confinado no São Pedro.

Do surgimento como hospício à reforma psiquiátrica

Concebido para receber os chamados alienados mentais, o hospital foi inaugurado em 1884. Nominado à época como hospício, era destino de qualquer pessoa de comportamento tido como insano pelas autoridades. Até então, indivíduos sem amparo familiar que apresentavam transtorno mental eram internados em uma ala especial da Santa Casa ou recolhidos à Cadeia Civil, local destinado à detenção de quem não havia cometido crime. O critério para definir o confinamento era simples: os agitados eram presos e os tranquilos, liberados.

Nas ruas, o contingente crescia a partir de uma política de saneamento social das cidades do Interior, cujos governantes despejavam pessoas com transtornos psiquiátricos na entrada da Capital. Com a loucura considerada ameaça e a Cadeia Civil abarrotada, o governo da Província adquiriu uma chácara de 38 hectares na zona leste de Porto Alegre — área equivalente à do bairro Bom Fim — e deu início à construção dos primeiros pavilhões do São Pedro.

Terceiro equipamento de saúde hospitalar do Estado, o complexo foi erguido em estilo neoclássico, com paredes de meio metro de largura, inspirado no Hospital Sainte-Anne, de Paris. Em 1893, nove anos após a inauguração, já estava lotado, com 192 pacientes num espaço concebido para receber 160.

Internações compulsórias

A ocupação desenfreada seria uma constante no decorrer das décadas. Além de pacientes mentais, o São Pedro recebia filhos rejeitados, esposas dispensadas pelos maridos e crianças “em situação de vadiagem”, a grande maioria internada contra a própria vontade. Muitos chegavam sozinhos, de trem, após serem trancafiados no chamado “vagão dos loucos”, um carro para transporte de presos e alienados que percorria o Interior com destino ao hospício da Capital.

Tal situação só começaria a mudar nos anos 1970, no surgimento da reforma psiquiátrica, cujo avanço se galvanizou no Estado a partir de 1992, após a aprovação de uma lei do então deputado Marcos Rolim que visava substituir manicômios por uma rede integrada de saúde mental.

Diagnóstico, evolução dos sintomas e tratamentos

Rafael chegou ao São Pedro poucos anos depois. Caçula em uma prole de seis filhos, o menino começou a apresentar sintomas psicóticos aos 12 anos de idade. Com déficit de aprendizado, já havia abandonado a escola quando passou por dois traumas: o melhor amigo morreu em um acidente de carro e um assaltante foi morto pela polícia perto de casa.

Os episódios aumentaram sua reclusão. Rafael passou a ficar cada vez mais tempo sozinho no quarto, dizia sentir medo e perguntava por que haviam deixado seu amigo morrer. Aos 15 anos, a agressividade aflorou e, em março de 1996, seus pais procuraram o São Pedro pela primeira vez.

Ele tinha características clássicas de esquizofrenia, como isolamento, gestos estereotipados, agitação, insônia e pedidos para que devolvessem sua mente. Ficou 33 dias e voltou para casa, mas foi hospitalizado mais duas vezes naquele ano. Só que a família resistia às altas e procurava o São Pedro em intervalos cada vez menores.

NATÁLIA KERBER

Médica que analisou os 10 volumes de prontuários de Rafael.

O tratamento inicial surtiu efeito e Rafael passou o ano seguinte em casa. Contudo, a orientação para que recebesse acompanhamento psicológico e assistência do conselho tutelar foi ignorada. O quadro psiquiátrico se agravou. Ele gritava na rua e tentou pegar a bicicleta de uma pessoa, sendo hostilizado e até agredido. Por pressão dos vizinhos, os pais instalaram grades no quarto, onde vivia segregado.

Estigma

Estigmatizado no município de 20 mil habitantes do Vale do Sinos onde morava, Rafael foi internado mais duas vezes em 1998, acompanhado de laudo médico, abaixo-assinado e pedido expresso da prefeitura para que não retornasse. No final do ano, apresentou uma agressividade tão severa que chegou a receber 10 ampolas do antipsicótico num período de quatro horas.

Em janeiro, os médicos adotaram tratamento mais incisivo. Levado ao Hospital de Clínicas, o rapaz foi submetido a seis sessões de eletroconvulsoterapia. Desenvolvido na Itália nos anos 1930, o procedimento funciona como uma espécie de reset cerebral.

Ao induzir convulsões controladas no paciente por meio de uma descarga elétrica, a técnica restabelece o fluxo de neurotransmissores, aliviando sintomas dos transtornos mentais. Quando começou a ser implementado nos pacientes do São Pedro, em 1937, o eletrochoque substituiu a malarioterapia, tratamento no qual a doença é inoculada para induzir febre e convulsões, tirando o paciente do surto.

Todas as práticas em medicina, há 50, cem anos atrás, aos olhos de hoje são absurdas. O tratamento da pressão alta, por exemplo, era com sangria. Tinha também a insulinoterapia, em que se aplicava insulina no paciente, que entrava em coma. Quando saía do coma, saía do surto. O tratamento de saúde mental deu um salto a partir dos primeiros fármacos, em 1952.

ALCEU GOMES

Psiquiatra diretor-técnico do São Pedro

A evolução de Rafael com a eletroconvulsoterapia foi imediata. Ele foi transferido da unidade de pacientes agudos, onde ficava a maior parte dos dias trancado em uma sala, para a ala dos crônicos. Mantinha convívio social, praticava esportes e recebeu a mãe com um abraço.

Laços com a equipe

A despeito da fala rudimentar, quase monossilábica, desenvolveu uma relação familiar com as equipes de enfermagem. Criava apelidos para os funcionários, pedia música e brincava de ditado com as enfermeiras.

— Eu errava de propósito a escrita das palavras e ele ria sem parar, se divertia com o meu erro — conta Isabel Petry, auxiliar de enfermagem há 32 anos no São Pedro.

Em seu melhor período, Rafael recebeu alta em maio de 1999, mas voltou um ano depois, mais desorganizado e agressivo. Passou a receber doses diárias de um antipsicótico que toma até hoje em dose máxima, e foi submetido a outras 14 sessões de eletrochoque. O grande desafio para a equipe era domar seu comportamento instável. Após episódios sucessivos de violência, cogitou-se uma psicocirurgia, intervenção sucedânea da lobotomia e que ainda hoje causa controvérsia no ambiente psiquiátrico por lesionar parte do cérebro responsável pela agressividade.

O procedimento foi descartado por divergências médicas e pela progressão do quadro clínico, o que tornaria a cirurgia menos eficaz. O tratamento resumiu-se então a doses de dois antipsicóticos e um anticonvulsivante e estabilizador de humor, base de sua medicação atual.

Criação de residenciais 

Nesse período, o São Pedro tinha cerca de 900 pacientes na unidade de crônicos e fez avançar o processo de desinstitucionalização. Com a criação do Morada São Pedro, em 2002, os internos com maior autonomia passaram a viver sob curatela em três ruas de casas geminadas numa área contígua ao hospital.

O experimento deu certo e hoje a instituição mantém outros dois residenciais, totalizando 97 pacientes morando em ambientes controlados, porém despidos do estigma de um hospício. Com acompanhamento médico constante e cuidados especializados, participam de festas comunitárias e passeios turísticos.

O São Pedro garante os itens básicos à subsistência, da alimentação à higiene, e todos recebem cerca de R$ 2 mil mensais em benefícios do governo federal que usam para despesas pessoais, em geral guloseimas.

Eles não vão deixar nunca de ser pacientes psiquiátricos, seguem tomando medicação, fazendo consultas regulares. Mas hoje estão nas suas moradias, vivem com muito mais dignidade.

GISSELLE FERREIRA

Administradora dos residenciais

Em abril de 2023, saiu o último grupo de pacientes. Restava Rafael. Para transferir seu derradeiro morador, a direção do São Pedro esmiuçou seu histórico de mais de 26 anos de internação e reuniu mais de 50 especialistas para discutir o caso. No ano passado, desenvolveu um projeto terapêutico singular para ele.

Aos poucos, Rafael começou a ser preparado para a despedida. Os primeiros passos foram passeios de carro pelo pátio, depois pelas ruas. Os trajetos foram se alongando até que, em maio, ele visitou pela primeira vez a nova moradia. Duas semanas depois, pernoitou no local. Ao assistir a um vídeo da aclimação, Letícia Ikeda, diretora dos hospitais estaduais, surpreendeu-se ao vê-lo se alimentando sentado à mesa e usando talheres. No retorno ao São Pedro, uma semana antes da transferência, Rafael atirou beijos ao enfermeiros, fez cafuné em um psiquiatra e pediu músicas de Chitãozinho e Xororó durante um passeio no pátio.

— Parece que ele está sentindo que está todo mundo preparando um ambiente melhor para ele — comentou Denise Coitinho, chefe de enfermagem na unidade masculina.

Fim definitivo do manicômio

Com a saída de Rafael, o São Pedro passa a se dedicar exclusivamente ao tratamento de pacientes agudos. São 90 leitos disponíveis para pacientes em surto, com risco de suicídio, homicídio ou exposição moral.

Cada paciente fica internado no máximo 21 dias e sai com medicação suficiente para um mês. Há ainda um ambulatório para pacientes previamente cadastrados, com 2 mil atendimentos ao mês.

— Hoje se encerra oficialmente o manicômio. É a verdadeira transformação da saúde mental. Agora somos definitivamente um hospital — celebra Alceu Gomes, ao ver a ambulância partir com Rafael.

Nova morada

Mateus Bruxel/Agencia RBS
Na nova moradia, paciente tem quarto e pátio individuais.

Vinte e sete minutos depois, Rafael desce do veículo e entra na casa nova. Ele circula pelo quarto, vai até o banheiro e sai para o pátio, dando voltas sem parar ao redor de uma mesa de plástico. Quando a enfermeira Salette Wanke traz para fora o colchão e dois travesseiros, Rafael não titubeia. Deita ao alcance dos raios do sol, puxa a manta até o peito e fica lagarteando no calor do final da manhã.

— Meu Deus, olha essa cena. No primeiro dia já, que coisa incrível essa adaptação. Essa experiência é gratificante. Tem gente aqui que não fala, que não tem família, e está com 90 anos. Esse lugar acolhe, mas nos ensina muito, sobretudo a seguir em frente — comenta Sallete, esfuziante com a chegada do novo morador.

Linha do tempo do São Pedro

  • 1874 — É criado o asilo de alienados em Porto Alegre.
  • 1879 — Começa a construção do hospital São Pedro em uma área de  33 hectares na zona leste da Capital.
  • 1884 — O Hospício São Pedro é inaugurado, recebendo os primeiros 41 alienados (24 homens e 17 mulheres) da Santa Casa e da Cadeia Civil.
  • 1903 — Terminam as obras dos seis pavilhões da ala sul, hoje desativadas, à época com capacidade para 450 internos.
  • 1925 — Um novo regulamento é aprovado e a instituição passa a se chamar Hospital São Pedro.
  • 1938 — O São Pedro cria o Serviço Aberto aos Alienados, atendimento ambulatorial e se torna o primeiro hospital do RS com assistência social.
  • 1960 — O uso em larga escala de medicamentos antipsicóticos e antidepressivos permitem a muitos pacientes voltar para as famílias.
  • 1972 — Começa o processo de regionalização do atendimento, reduzindo o número de pacientes de 5 mil para mil nos 10 anos seguintes.
  • 1985 — O hospital adquire direito de estabelecer número máximo de pacientes, terminando com admissão irrestrita de pessoas com transtornos psiquiátricos.
  • 1992 — A luta antimanicomial começa dentro do São Pedro e a Assembleia Legislativa aprova a lei que substitui manicômios por rede integrada de saúde mental.
  • 2002 — O primeiro residencial terapêutico de Porto Alegre, a Morada São Pedro, é inaugurado em uma área contígua ao hospital.
  • 2023 — A última grande leva de pacientes deixa o hospital com destino aos três residenciais mantidos pela instituição.
  • 2025 — O derradeiro morador do São Pedro é transferido para Viamão, encerrando 141 anos de trajetória de asilamento mental.

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