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"Às vezes, não conseguimos olhar no rosto do paciente": a rotina de uma emergência superlotada na Capital 

Reportagem de Zero Hora acompanhou um turno de trabalho no Hospital de Clínicas, um dos principais com atendimento SUS

27/07/2025 - 16h23min


Lisielle Zanchettin
Lisielle Zanchettin
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Camila Hermes/Agencia RBS
No dia da visita, a instituição operava com lotação de 300%.

— Às vezes, não conseguimos nem olhar no rosto do paciente. No final do plantão, não lembramos quem é quem. 

O relato de um técnico de enfermagem que atua na emergência adulta do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. A fala reflete o cenário de superlotação visto em hospitais que atendem pelo Sistema Único de Saúde (SUS). 

A reportagem de Zero Hora acompanhou um turno de trabalho na emergência do Clínicas no dia 15 de julho. Na ocasião, a instituição operava com lotação próxima de 300%. Mesmo com a estrutura qualificada, a demanda espontânea é tanta que não há como impedir que a situação se instaure.

Diferentemente do que se observa no inverno, com o aumento de casos respiratórios, as maiores demandas do Clínicas são de pacientes que já fazem acompanhamento no hospital. Isso envolve casos de cardiologia, oncologia, neurologia e antisepsis. 

O setor de urgência é dedicado a pacientes graves e encaminhados pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). No local, o atendimento é realizado pelos médicos contratados e residentes em emergência, entre outros profissionais. 

Na ocasião, a reportagem observou dois atendimentos graves encaminhados pelo Samu. Em um dos casos, foram necessários nove profissionais — entre técnicos, enfermeiros, fisioterapeutas e médicos — para o processo de intubação.

Na unidade de decisão médica — onde os pacientes aguardam definição para atendimento na emergência ou indicação de internação — 71 pessoas eram atendidas naquele 15 de julho. O ideal para a sala, conforme o chefe do serviço de emergência, Daniel Pedrollo, é de 20 pacientes – mais de 3 vezes o número considerado adequado.

Na sala, os pacientes são acomodados em macas e poltronas, e restam poucos espaços. Ficar parado é quase impossível. Como em um quebra-cabeça, os profissionais de saúde se desdobram para ajustar e garantir mais um atendimento. Apesar disso, o relato entre as pessoas é unânime: todos são atendidos com dedicação.

Devido à lotação dos leitos, muitos pacientes ficam internados na própria emergência. É o caso do morador de Santa Maria do Herval, no Vale do Sinos, Lauro Morschel, 74 anos. 

Camila Hermes/Agencia RBS
Lauro Morschel, 74, é morador de Santa Maria do Herval.

Acomodado em uma poltrona ao fundo da emergência há cinco dias, o aposentado foi transferido para o Clínicas por causa de uma pneumonia. Segundo ele, houve dias em que não era possível circular no ambiente:

— Não tinha espaço nem para passar no meio, tudo grudado. Quase um em cima do outro. Até os médicos falaram que estava lotado demais. Mas, mesmo assim, tá bom. O atendimento aqui é ótimo e eu já estou bem melhor. 

A situação é considerada o "drama da emergência". Isso porque, segundo o chefe do serviço, os pacientes recebem o tratamento necessário, mas em um ambiente que não é o ideal:

— A proximidade entre os pacientes é muito grande, ficam um do lado do outro, não é o ambiente ideal. Mas, são pacientes que não podemos mandar para casa porque precisam de uma assistência ou rever o caso diretamente no hospital — explicou Pedrollo.

Sentada em uma cadeira no pequeno espaço entre as macas, Fátima Rejane da Silveira Schunk, 63, acompanhava a sogra Glaci dos Santos Schunk, de 84 anos. Ela é paciente oncológica e trata um câncer de intestino com metástase.

Camila Hermes/Agencia RBS
Fátima Rejane acompanha a sogra Glaci, de 84 anos.

O quadro da moradora do bairro São João, na Capital, se agravou nos últimos dias e o tratamento de radioterapia precisou ser suspenso. Diante da gravidade, à espera por um leito se torna ainda mais angustiante. 

— Hoje está lotado, mas ontem estava muito pior. É complicado ficar aqui na emergência, mas sei que estão fazendo o possível e logo estaremos em um quarto. Os profissionais redobraram os cuidados por conta do quadro dela — contou Fátima, que saiu de Santa Catarina para cuidar da sogra. 

Em pé ao lado do leito onde o marido está internado, a moradora de Guaíba, Iara da Silva Jobin, 62 anos, busca maneiras de aguentar o desgaste físico. Faltam espaço e cadeiras para os acompanhantes. 

— Eu venho e volto para Guaíba de ônibus. Tenho problema nos joelhos e nunca tem uma cadeira vazia para a gente sentar um pouco. Não consigo ficar acompanhando ele porque não tenho como ficar o dia todo em pé. 

Lotação que esgota os profissionais 

A alta demanda afeta além do sistema físico do hospital, mas o coração da emergência: os profissionais de enfermagem. Com papéis cruciais no atendimento rápido e eficiente aos pacientes, a sobrecarga causa exaustão e adoecimento da categoria. 

Durante um plantão de seis horas, o técnico de enfermagem Arthur Cougo Garcia, 33 anos, foi responsável por medicar e monitorar os sinais vitais de 11 pacientes. Isso significa que, em média, ele dispõe de 32 minutos para cada um. Quando questionado sobre o sentimento, a resposta é tristeza. 

— É uma corrida muito grande para conseguir dar conta. Os cuidados de dar banho ou trocar fralda, só conseguimos se a família apoia. A gente se sente triste porque queremos dar a melhor assistência ao paciente — contou. 

Camila Hermes/Agencia RBS
Arthur Cougo Garcia é técnico de enfermagem no Clínicas.

O enfermeiro chefe da emergência, Cristiano Rossa da Rocha, afirma que a equipe trabalha no limite. O desgaste emocional e físico é apontado como principal motivo para os afastamentos: 

— É um cenário que está além da nossa capacidade de atendimento. Se coloca em risco os pacientes e a própria equipe porque sabemos que a superlotação não é ideal. Estamos com um quadro de afastamento e grande parte pelo esgotamento emocional e físico. 

Conforme o enfermeiro chefe, para tentar amenizar a situação, a instituição busca girar a escala dos profissionais para que possa ocorrer um "respiro". Também se busca adequar o quadro para o atendimento, além de autorizar horas extras. 

O presidente do Conselho Regional de Enfermagem do Rio Grande do Sul (Coren-RS), Antônio Tolla, afirma que a sobrecarga é uma característica dos profissionais do serviço de saúde. 

— Observamos um aumento no adoecimento dos profissionais, principalmente dos técnicos, desde o período da pandemia. Nas emergências, os profissionais da enfermagem são os que realizam o primeiro contato com os pacientes. Quando há uma sobrecarga de trabalho, alguém acaba deixando de ser atendido corretamente. 

Em relação aos médicos, o número de afastamentos do hospital é considerado menor. No entanto, Pedrollo afirma que, a exaustão é sentida por todos. 

O coordenador do núcleo de psiquiatria do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), Ricardo Nogueira, afirma que a situação é grave: 

— Os médicos também sofrem. Além dos casos de depressão e ansiedade, tivemos aumento de suicídio envolvendo médicos e estudantes. O número de agressões também aumentou muito, principalmente envolvendo mulheres. 

Diante dos casos contra profissionais de saúde, entidades médicas do RS lançaram Observatório da Violência. O objetivo é monitorar o registro de boletins de ocorrência por agressões e propor ações para assegurar a integridade dos trabalhadores, sobretudo dos da linha de frente.

A estrutura da emergência 

Com 56 leitos, originalmente, divididos entre as unidades do setor, a emergência do Hospital de Clínicas passou por reformas recentes, com ampliação e modernização dos ambientes. A instituição é uma das principais para assistência à saúde da população gaúcha e conta com programa de ensino com residência médica e multiprofissional que recebe profissionais de diferentes regiões. 

Um dos casos é do Pedro Mansur. O médico veio de Alagoas para realizar a especialização em emergência na Capital. Para o profissional, o papel do emergencista busca estabilizar quem precisa e otimiza o atendimento, seja com acolhimento, medicação ou procedimento necessário. 

— Estou há dois anos e meio na Capital. A valorização desta área em Porto Alegre é maior, é um diferencial. Faz parte da cultura — afirma.

O diretor médico do Clínicas, professor Luis Eduardo Paim Rohde, ressalta que a instituição analisa permanentemente o cenário do setor:

— A emergência é uma área de difícil previsibilidade, mas buscamos agir de maneira planejada. A direção tem interagido de maneira constante com as chefias da Emergência com o objetivo de alinhar condutas, avaliar riscos assistenciais e ajustar os fluxos internos conforme a demanda e capacidade operacional — afirma. 

Conforme Rohde, em momentos de sobrecarga extrema, procedimentos eletivos são cancelados, "visando aumentar a disponibilidade de leitos intensivos e de internação". Ele afirma que o hospital atua de forma integrada com a rede, participa do comitê de crise criado pela Secretaria Municipal de Saúde e integra reunião diária com equipes de regulação do Município e Estado, "o que permite análise conjunta e em tempo real da ocupação". 




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