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Testemunho

De voluntário a resgatado, a história de um homem centenário nas duas grandes enchentes de Porto Alegre

Alfredo de Souza Lima participou de resgates em 1941 e foi socorrido de barco em 2024. Morador do bairro Humaitá, o policial aposentado comemorou 100 anos em junho

11/07/2025 - 09h47min


André Malinoski
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Mateus Bruxel/Agencia RBS
Idoso tem história para contar.

Testemunha das duas grandes enchentes de Porto Alegre, em 1941 e 2024, o policial civil aposentado Alfredo de Souza Lima completou 100 anos de idade em 30 de junho de 2025. A festa de comemoração do aniversário foi realizada no último sábado (5), no pátio dos fundos da casa onde o idoso vive, na Rua Monsenhor Felipe Diehl, no bairro Humaitá. Na ocasião, foram servidos bolo com merengue e chá para os cerca de 20 convidados.

Lúcido e com alguma dificuldade para escutar, lembra em detalhes das duas cheias da Capital. Na inundação de 1941, com apenas 15 anos de idade, chegou a atuar como voluntário, salvou flagelados e quase morreu afogado após cair do caíco, uma pequena embarcação de pesca, na água.

No ano passado, prestes a tornar-se um senhor centenário, precisou ser resgatado de barco. Ou seja, no espaço de 83 anos, sobreviveu a duas robustas enchentes. Trata-se de uma experiência difícil de ser apagada das lembranças.

Não imaginei que eu passaria por uma nova enchente. Essa de 2024 foi muito violenta.

ALFREDO DE SOUZA LIMA

Aposentado

Arquivo pessoal/Divulgação
Seu Alfredo em sua festa de aniversário.

Na segunda-feira (7), o aposentado estava sentado na sala de estar da casa onde vive na companhia da filha, a pedagoga especializada em recursos humanos Suzana de Souza Lima, 74 anos.

Friorento, ele tinha um cobertor quadriculado sobre o corpo, vestia uma camisa de lã e calça na cor azul-marinho. Nos pés, calçava pantufas e meias brancas. O aparelho de ar-condicionado split do espaço da moradia marcava 24° C. Porém, em função da umidade, a sensação no ambiente era de mais frio.

— Vivi minha vida sempre trabalhando. Trabalhei desde muito pequenininho. E o tempo foi passando — afirma seu Alfredo, que precisa do auxílio de um andador para caminhar e tem cuidadores nas 24 horas do dia.

Torcedor do Inter, seu Alfredo tem como passatempo assistir filmes de faroeste em DVD. Quando era mais jovem, chegava a ir duas vezes por semana ao cinema. Também lia muitos livros de bolso, hoje em dia conhecidos como pockets, e ainda mantém o hábito da leitura de jornais. Não fumava, nem bebia álcool. Sempre teve hábitos moderados e fazia check-ups médicos regulares.

Em 2021, precisou ser submetido a uma cirurgia para a retirada de um grande tumor do intestino. Mas agora está bem, realiza sessões de fisioterapia e pedala em bicicleta ergométrica.

A primeira enchente

Em 1941, seu Alfredo vivia com duas irmãs na Avenida Pará, próximo ao limite dos bairros São Geraldo e Navegantes, no 4º Distrito. Na época, ele já trabalhava em uma fábrica de carrocerias de caminhão.

Segundo narra, a água subiu vagarosamente naquela inundação e "chegou à beirada do telhado." 

— Em 1941, a água foi muito alta. Mas não foi violenta como essa de 2024 — diz o centenário, que é natural da zona rural de Gravataí, na Região Metropolitana.

Acervo Ronaldo Bastos/Reprodução
Bairro Navegantes foi afetado pela cheia de 1941.

Para escapar da inundação, foi com as irmãs para a casa de uma vizinha. Em seguida, a família precisou ser transportada de carroção para a moradia de conhecidos no bairro Cristo Redentor. Na companhia do cunhado Euclides Neves, começou a sair de caíco para resgatar flagelados e retirar estoques de mercadorias dos estabelecimentos comerciais a pedido dos proprietários. As vítimas da cheia do Guaíba eram auxiliadas de graça, mas quando curiosos queriam ir ver os estragos, os voluntários cobravam pelo transporte.

— Andávamos o dia todo no bairro São Geraldo com aquele caíco para ajudar as pessoas. Às vezes, vinha gente que queria ver a enchente — relata.

Em uma das tantas travessias, estava de pé no barco e usava varas que encostava no chão para movimentá-lo. Três homens pediram para serem levados da Avenida Amazonas até a esquina da Avenida Benjamin Constant com a Brasil. Mas, em determinado momento, o garoto desequilibrou-se e caiu na água.

— A vara pegou a beirada de um valo e eu me fui. A sorte foi que eu respirei antes de cair. O Euclides que ia mais atrás disse: "Não se mexam para não desequilibrar o barco". Ele ainda teve tempo de vir com aquela vara, mergulhar e me tirar vivo — recorda seu Alfredo, que foi casado com Lygia Lucy Lima, falecida em 2010, e tem ainda outra filha, a empresária Silvia Lima Pilla, 72, que vive em Gramado, na Serra.

Resgatado em 2024 

Desde os anos 1960, a família vive na região do bairro Humaitá. Conforme a filha compartilha, nunca antes a água havia chegado onde fica situada a moradia. Muito menos à altura de 1m70cm nas paredes do lado externo como foi em 2024.

Primeiro, seu Alfredo ficou no sobrado de uma vizinha por três dias. Mas na segunda-feira, dia 6 de maio, pediram socorro para resgatistas que singravam as vias em veículos aquáticos. Pai e filha foram levados para o ponto de concentração de resgates localizado no Viaduto José Eduardo Utzig. E de lá para um abrigo no bairro Bom Jesus. Era um ginásio, onde o idoso precisou dormir em cima de dois colchões.

Nesse ginásio, onde permaneceram por 14 dias, conseguiram uma cama, e seu Alfredo ganhou até uma prótese dentária nova, porque a anterior perdeu-se na casa inundada.

Seu Alfredo ficou em abrigo em 2024:

Depois, um vizinho encontrou uma moradia de um conhecido em Viamão, na Região Metropolitana, para onde o pai e a filha foram trasladados. Dois dias mais tarde, partiram para a casa de um filho de Suzana, em Cachoeirinha.

Apenas em 29 de junho, o ex-policial civil retornou para o lar. Os prejuízos para recuperar a moradia foram de R$ 100 mil. Foi necessário usar o dinheiro do seguro do carro, que teve perda total, para investir na casa.

Em relação aos dias difíceis vividos por todos no ano passado, a filha conta sobre a tranquilidade do pai em meio à pior tragédia climática do Rio Grande do Sul:

— Ele dizia para mim: "Vai dar tudo certo. Estamos vivos".

Antes disso, o idoso havia passado pela pandemia da covid e recuperou-se de um acidente vascular cerebral (AVC), que teve no dia do seu aniversário de 90 anos. Chegar a um século de vida após testemunhar duas enchentes históricas é um feito para poucos. Seu Alfredo venceu a fúria das águas.


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