Sinal de alerta
Porto Alegre tem uma morte no trânsito a cada quatro dias no primeiro semestre, conforme EPTC; patamar preocupa autoridades
Excesso de velocidade, desobediência da sinalização, falta de atenção, uso do celular e embriaguez ao volante colocam em risco a segurança de pedestres, motoristas e motociclistas


As ruas e avenidas de Porto Alegre têm, com cada vez mais frequência, sido cenário de acidentes que resultam em mortes. De janeiro a junho deste ano, uma pessoa morreu no trânsito a cada quatro dias, segundo dados da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC). O número elevado preocupa autoridades que enxergam uma tendência de alta contínua. No ano passado 84 pessoas perderam a vida, nível mais alto desde 2017, quando foram 90 mortes, conforme levantamento da EPTC.
Excesso de velocidade, desobediência da sinalização, falta de atenção, uso do celular e embriaguez ao volante colocam em risco a segurança de pedestres, motoristas e motociclistas.
Nesta reportagem você verá:
- Os critérios utilizados em levantamentos de autoridades
- Atropelamentos e envolvimento de motos e pedestres: como são os acidentes com morte na Capital
- Distração, pressa e impunidade: o que está causando a imprudência
- Investimento em fiscalização e campanhas “sem precedentes": o que fazer que não foi feito ainda para frear a imprudência
Critérios diferentes
A forma de contabilizar mortes no trânsito varia conforme cada órgão. A Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) leva em consideração mortes em acidentes ocorridos em vias municipais e que ocorrem até 30 dias depois do fato, seguindo critério da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Nesse caso, foram registradas 45 mortes em 44 acidentes entre 1º de janeiro e 30 de junho, a mesma quantidade dos primeiros seis meses de 2024 e 60% a mais do que em 2023. O dado representa uma vida perdida no trânsito a cada quatro dias.
O diretor-presidente da EPTC, Pedro Bisch Neto, afirma que, nos últimos 25 anos, sempre se observou uma tendência de redução na mortalidade, ainda que, em meio a esse período, houve anos com crescimento.
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— No ano passado a gente ficou perplexo quando chegou na metade do ano. Foi quando começamos a ser mais duros na fiscalização, e notamos que isto continuou no segundo semestre. Nossa meta para esse ano era tentar “podar” esse aumento para voltar àquela curva anterior, mas fechamos o primeiro semestre e notamos que está repetindo a mesma coisa do ano passado. Isso nos abriu um fator de preocupação. Tem alguma coisa acontecendo — afirma.
O Departamento Estadual de Trânsito do Rio Grande do Sul (Detran-RS) adota o mesmo critério de 30 dias, mas considera também ocorrências em rodovias federais que estejam em Porto Alegre. O órgão possui dados consolidados até o mês de maio, que apontam 41 vítimas, duas a mais que no mesmo período do ano anterior.
Já a Polícia Civil contabilizou 55 mortes em investigações até o final de junho por meio do Departamento de Trânsito, frente a 51 no ano passado no mesmo período do ano passado. Isto representa uma morte a cada três dias.
A Polícia Civil considera, para apontamento de estatística, qualquer pessoa que vai a óbito decorrente de um acidente, independentemente do período.
Atropelamentos e envolvimento de motos e pedestres
Os atropelamentos são a principal causa de mortes no trânsito na Capital. Conforme o Detran, 87% das 40 ocorrências contabilizadas pelo órgão são desse tipo e envolvem motociclistas e pedestres.
Também foi registrado um número significativo de choques (batida entre um veículo e um objeto, como poste) e colisões (batida entre dois veículos).
— Claro que quem perde sempre são os mais frágeis. Quem está na linha de frente, que são os motociclistas e pedestres — ressalta Diza Gonzaga, diretora institucional do Detran.
O envolvimento das motos chama a atenção. Dados da EPTC apontam que, mesmo havendo uma moto para cada 10 carros na Capital, os motociclistas são responsáveis por metade dos sinistros.
— Ou seja, é 10 vezes mais arriscado andar de moto do que de carro. Mata mais — enfatiza Pedro Bisch Neto.
Ainda que cada acidente tenha sua dinâmica própria, é possível perceber um padrão. A reportagem teve acesso (veja o vídeo acima) a imagens de câmeras de segurança que registram pelo menos nove casos que resultaram em mortes neste ano.
No dia 9 de maio, na Praça Rui Barbosa, no Centro Histórico, um motociclista é atingido por um ônibus ao passar no sinal vermelho. Um outro acidente, ocorrido no dia 12 do mesmo mês, na Rua Barão do Cotegipe, no bairro São João, um caminhão atinge um motociclista ao passar direto, sem respeitar a placa de "pare". Já na Rua Álvaro Guterres, no bairro Tristeza, no dia 3 de abril, uma pessoa com bicicleta elétrica vinha em alta velocidade quando bateu em um carro que estava realizando a conversão.
Investigações
Todos os vídeos fazem parte de investigações, concluídas ou em andamento, da Polícia Civil. O órgão é acionado sempre que há um acidente. As câmeras são parte fundamental para entender a dinâmica do ocorrido e apontar eventuais responsabilidades. Quando não há registro em imagens, os policiais podem utilizar relatos de testemunhas como prova.
— Nem sempre a pessoa que provocou o acidente é a responsável pelo fato. Às vezes a própria vítima é a culpada pelo acidente. Então, neste casos a gente encaminha para a Justiça um relatório apontando que a culpa foi exclusiva da vítima — explica o delegado de trânsito Carlo Butarelli, do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa.
Já na situação inversa, a pessoa é indiciada por homicídio culposo, quando não há intenção de matar.
Distração, pressa e impunidade
Autoridades e especialistas concordam que é necessário uma mudança cultural, que precisa ser impulsionada com a atuação do poder público na fiscalização, educação e punição.
Alguns aspectos são destacados como possíveis potencializadores para um trânsito mais violento:
Uso do celular
Apesar de não ser um problema novo, o uso do celular enquanto se está dirigindo é cada vez mais atribuído às distrações que resultam em acidentes. Em maio, a reportagem flagrou 102 condutores usando os aparelhos em menos de duas horas no cruzamento da Avenida Ipiranga com a Rua Silva Só.
O núcleo de pesquisas em álcool e trânsito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) planeja um estudo para compreender como esse comportamento tem contribuído para a imprudência.
— Recebemos muitos relatos de policiais da Brigada Militar que atendem acidentes. Por exemplo, após a colisão, quando eles veem o celular caído no chão, tem uma mensagem em alguma rede social. Ou seja, a pessoa estava fazendo uma postagem, e aí colidiu o carro. A gente teve alguns contatos com a polícia rodoviária federal e eles também relataram muito isso, que tem aumentado absurdamente a distração no trânsito por conta do uso do celular — relata a coordenadora do núcleo Daiane Silvello.
A impressão da EPTC é a mesma: o motorista não está mais falando, e sim, digitando no celular enquanto dirige:
O uso do celular mudou na medida em que deixou de ser um objeto para falar. Antes era assim, estava dirigindo, segurando o aparelho e olhando para a rua. Agora não: tu deixas de olhar para a rua, tu baixas os olhos para digitar e mandar o “recadinho.
PEDRO BISCH NETO
Diretor-presidente da EPTC
Sociedade apressada
Casos de excesso de velocidade, ou de carros que passam no sinal vermelho são indicativos de uma sociedada apressada. O professor da UFRGS e consultor na área de trânsito e infraestrutura Luis Afonso Senna cita os casos envolvendo motociclistas como exemplo, relacionado a serviços de tele-entrega.
— O acidente com moto é a pressa da sociedade. Então, uma sociedade com pressa, ela quer a pizza quente. Não interessa, quer dizer se atrasar 15, 10 minutos a mais do que o estimado lá, cancela — afirma Luis Afonso Senna.
Segundo a EPTC, não há comprovação de que motoboys e entregadores estejam entre os principais envolvidos em colisões com motos.
Na avaliação da diretora institucional do Detran, trata-se ainda de um comportamento reprimido da pandemia.
— As pessoas deveriam ter ficado mais cuidadosas, com tudo que a gente sofreu na pandemia. Mas, pelo contrário, parece que ficaram mais ansiosas. Se olhares o trânsito no dia a dia, qualquer horário, tu vais ver que ele tem se mostrado mais violento.
As pessoas buzinam quando já dá o sinal amarelo na sinaleira.
DIZA GONZAGA
Diretora institucional do Detran-RS
Sensação de impunidade
Por fim, especialistas destacam o costume de motoristas cometerem infrações mesmo sabendo que estão descumprindo a lei.
— Se tu perguntares para um motorista: “tu não sabias que não pode passar no sinal ou que não podes andar em uma velocidade acima do radar móvel?”. Ele vai dizer: "Eu sei”. O elemento de informação já existe. Mas se eu sou informado e não tenho a sensação de que eu vou ser punido adequadamente pelo comportamento transgressor, eu vou transgredir — aponta o professor do departamento de psiquiatria da UFRGS e presidente do Conselho Internacional de Álcool, Drogas e Segurança no Trânsito Flávio Pechansky.
Um levantamento realizado por Zero Hora em junho aponta para um aumento de multas eletrônicas aplicadas, embora infrações registradas por agentes tenham tido queda de até 85% em alguns casos.
Além disso, há uma crítica em relação às alterações recentes na legislação. Em 2020 houve mudou o sistema de pontos na Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Antes, a suspensão ocorria sempre que se chegasse aos 20 pontos. Com a nova regra, a medida varia conforme a gravidade de infrações que o condutor comete.
O risco da pessoa cometer um acidente ficou maior porque começaram a aliviar a penalidade. A vida funciona assim: me diz como tu vais me avaliar que eu vou dizer como vou me comportar.
LUIZ AFONSO SENNA
Professor da UFRGS
Investimento em fiscalização e campanhas "sem precedentes"
O poder público avalia que medidas para reduzir os acidentes e as mortes no trânsito já estão sendo feitas. Porém, ao verificar um cenário negativo, reconhecem a necessidade de aumentar o rigor na fiscalização, e realizar campanhas mais eficazes e com efeito prático.
A EPTC diz estar em meio a um processo de melhora da fiscalização eletrônica. O órgão afirma estar reforçando as ações com os radares móveis, e realiza a divulgação semanalmente. O objetivo dessa divulgação é justamente que as pessoas diminuam a velocidade ao saberem da presença da fiscalização
Além disso, a empresa estuda aumentar em 30% o sistema de controles eletrônicos, incluindo pardais, radares e a reintrodução dos "Caetanos" (radares de sinal vermelho), que já foram usados em Porto Alegre, mas foram desativados. Não há data para essas implementações. Outras medidas que, segundo o diretor-presidente, contribuem para a segurança viária também estão sendo adotadas, como a sincronização dos semáforos e a sinalização tática (condicionar o espaço dos automóveispor meio de pinturas na via.
— Isso vai nos ajudar a melhorar a ideia do combate à impunidade. Aquilo de “Não tem ninguém olhando”, “não tem guardinha essa hora” — diz Bisch Neto.
Campanhas
EPTC e Detran reconhecem a necessidade de reforçar campanhas e adaptá-las à nova realidade do trânsito.
— Estamos nos adequando aos comportamentos, trabalhando para fazer uma campanha em breve sobre o uso do celular. A utilização do celular pelos pedestres é um é um fator relativamente novo — afirma Diza Gonzaga.
O diretor-presidente da EPTC defende o que ele chama de uma campanha tendo como foco motoristas e motociclistas que praticam imprudências.
— Tem que fazer uma campanha todo mundo junto, todos os órgãos, prefeituras, governo do Estado, em cima da responsabilidade, da seriedade e criando a imagem de que o cara que empina a moto, que passa no vermelho, que acelera é o chato, é o potencial assassino — afirma. Ele diz que levou a ideia ao Conselho Estadual de Trânsito (Cenatran).
O psiquiatra Flávio Pechansky, no entanto, pondera que uma campanha, por si só, não é eficiente.
— Sozinha não serve para nada. Na Austrália, eles fizeram campanha publicitária muito forte sobre álcool e trânsito. Mas, ao mesmo tempo, circularam com ônibus de coleta de álcool e drogas. Deu certo. A campanha funciona quando ela está associada a ações perceptíveis e eficazes, senão ela é um tiro no pé — explica.