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Cultura urbana

Como o grau de bicicleta virou febre em Porto Alegre e agora pode ser reconhecido como esporte

Modalidade popular entre jovens ganhou força nas redes; proposta de vereador prevê reconhecimento como prática esportiva

05/10/2025 - 17h54min


Murilo Rodrigues
Murilo Rodrigues
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Kauã Rodrigues/Arquivo Pessoal
O jovem Kauã Rodrigues mostra equilíbrio e criatividade nas manobras de grau, prática que saiu das ruas para ganhar espaço nas redes sociais.

Quem passa pela Orla do Guaíba provavelmente já deve ter notado jovens levantando a roda dianteira da bicicleta e deslizando apenas sobre a traseira. Trata-se do "grau de bike", prática também chamada de wheeling bike, que começou como lazer em comunidades periféricas, cresceu rápido, e hoje já conta com encontros que reúnem dezenas de ciclistas.

O movimento ganhou tanta força que chegou à Câmara Municipal: um projeto de lei em tramitação quer reconhecer o grau como modalidade esportiva em Porto Alegre (entenda abaixo).

Entre os nomes mais conhecidos dessa cena, está Kauã Rodrigues, 16 anos. Ele comanda a página @grauzeirosdepoa, com quase 5 mil seguidores, e mantém um perfil pessoal que ultrapassa os 60 mil

Foi a partir das postagens dele e de amigos que a Orla passou a reunir cada vez mais ciclistas dispostos a mostrar manobras e gravar vídeos.

— Comecei aos 10 anos, com uma bike pequena. Todo dia treinava, até perceber que estava melhorando. Então pensei: vou criar um perfil no Instagram. Comecei a postar vídeos e stories todos os dias, e isso foi criando reconhecimento. Lá na Orla, eu e dois amigos acabamos motivando a gurizada a entrar nessa — conta.

O que é o wheeling bike?

A manobra é até fácil de descrever, mas difícil de dominar. Nela, o ciclista deve levantar a roda dianteira e manter o equilíbrio apenas sobre a traseira. No Brasil, a prática ficou conhecida como grau de bicicleta, adaptação da expressão inglesa wheeling bike

Em Porto Alegre, os principais pontos de encontro são a Orla do Guaíba e o Parque Marinha do Brasil. Além disso, o movimento também carrega uma estética própria: camisetas de equipe, adesivos personalizados e encontros organizados pela internet. 

No mês de julho, por exemplo, a rua Nestor Ludwig, ao lado do Marinha, recebeu o primeiro evento legalizado de wheeling bike na Capital, reunindo famílias e dezenas de ciclistas em um espaço fechado ao trânsito.

— No "wheelie", nada disso é competição. A gente se reúne para treinar, postar vídeos, trocar ideias. Em alguns lugares até tem campeonato, mas a maioria dos encontros é lazer, um jeito de juntar a rapaziada. Nosso objetivo é dar nome e reconhecimento para essa prática, mostrar que também é um esporte — relata Kauã.

O começo da prática costuma ser em locais planos e sem movimento, com treinos repetidos até encontrar o ponto de equilíbrio. À medida que o ciclista ganha confiança, as manobras se diversificam: raspar a mão no chão, subir no banco ou manter o grau por longas distâncias

— No início, a gente vai para ruas com pouco carro, sempre cuidando. É repetição, tentativa e erro, até achar o ponto em que a bike fica só na roda traseira. Depois que tu pegas o jeito, começa a inventar coisa nova, um amigo ensina o outro. É criatividade o tempo todo — conta.

"Grauzeiros de rua"

Com publicações quase que diárias, o perfil @grauzeirosdepoa foi criado em fevereiro por Kauã como um coletivo e rapidamente se tornou referência para os praticantes. A página reúne vídeos de adeptos do grau de diversas regiões do RS.

— Quando a gente começou a postar, a Orla enchia. Depois disso, criamos a equipe e começamos a organizar encontros. No começo, era tudo improvisado, em ruas abertas. Mais tarde, conseguimos eventos legalizados, com apoio da prefeitura, e foi muito diferente: as famílias apareceram, teve recordista mundial participando, e todo mundo viu que não era bagunça — relembra Kauã.

Se antes o grau se limitava a encontros informais, hoje é também conteúdo consumido por milhares de seguidores. Vídeos de manobras novas, desafios entre equipes e registros coletivos alimentam a cena virtual e ajudaram a consolidar a comunidade.

— Hoje já tem muito público no Instagram e no TikTok. O pessoal vai inventando, inovando, tentando manobras cada vez mais difíceis. Aos poucos, foi se criando uma comunidade, em que um ajuda o outro com dicas. Eu mesmo vou para a Orla todos os dias. Às vezes nem é para dar grau, é só para pedalar, encontrar os amigos e se divertir — diz ele.

Apesar da popularidade, o grau de bicicleta ainda enfrenta certa resistência entre a população em geral. Para muitos, a palavra "grau" remete imediatamente às motos, ao barulho e ao risco no trânsito. Segundo Kauã, essa associação alimenta a visão de que a prática sobre duas rodas sem motor seria sinônimo de "bagunça":

— Se tivermos um nome oficial, como esporte, ajuda a mostrar que não é algo ruim. É só a gurizada se encontrando, treinando e se ajudando. É muito mais lazer, união e prazer para nós do que bagunça.

 — Muitas vezes as pessoas ouvem "grau" e acham que é coisa ruim, bagunça ou vandalismo, como nas motos. Mas quando especificamos "grau de bike", ou wheelie bike, muda a percepção. É uma prática que tem técnica, cuidado e segurança, mesmo que nem todos tenham equipamentos — completa o menino.

Kauã Rodrigues/Arquivo Pessoal
Entre aplausos e olhares curiosos, as manobras chamam atenção em encontros de wheeling bike pela cidade.

Diferentes modalidades

Vale ressaltar que a cena do grau em Porto Alegre não é homogênea. Dentro do movimento, há estilos distintos, que reúnem formas próprias de se relacionar com a bicicleta. 

Praticante há cerca de seis anos, o ciclista João Disconzi Guedes, 26 anos, conhecido como @grao_d_bico, é adepto do grau na bicicleta fixa, modalidade com características técnicas diferentes do wheeling

— A bicicleta fixa (modelo que possui um sistema de transmissão sem mecanismo de roda livre, o que significa que os pedais sempre giram com a roda traseira) tem um funcionamento diferente. Enquanto a roda de trás está girando, os pedais também estão em movimento. Então dá para andar tanto para frente quanto para trás, e tu não precisas de freio para empinar. O controle é todo no ponto de equilíbrio. Já a bicicleta de wheelie é de freeride, tem o quadro mais baixo e exige o uso do freio — explica o jovem, que está na cena do ciclismo desde os oito anos.

Para ele, as manobras também mudam conforme a modalidade:

— No wheelie, tu te joga muito mais para trás, sobe em cima do banco, raspa a mão no chão. São estilos diferentes. Fiz até uma analogia: é como no BMX (tipo de esporte com bicicleta), em que as bikes parecem iguais, mas cada uma é feita para uma modalidade.

Na avaliação de João, o grau nas bicicletas fixas é um nicho mais restrito, com forte vínculo ao underground do ciclismo. Já o wheeling se expandiu rapidamente, com campeonatos organizados e adeptos por todo o país.

— O reconhecimento por lei tem muito mais a ver com o wheelie. Isso porque é muito maior, tem muito mais gente envolvida, já existem competições, mesmo que não oficiais. Para essa gurizada, vejo que seria um baita incentivo, porque hoje eles treinam, arriscam e fazem vídeos para as redes, mas sem nenhum apoio — afirma.

Projeto de lei quer tornar esporte

Em junho, o vereador Moisés Barboza (PSDB), conhecido como Maluco do Bem, apresentou o Projeto de Lei n.º 352/25, que busca reconhecer a prática como modalidade esportiva em Porto Alegre. 

Segundo o parlamentar, além de valorizar a cultura urbana, a proposta também pretende combater o preconceito que ainda existe em torno do grau. Para ele, encontros já realizados na Capital demonstraram que o movimento atrai famílias e pode ser organizado de forma segura.

— Se a gente não der espaço para a prática do wheeling bike, a gurizada vai ficar praticando nas ruas, correndo risco em lugares inapropriados. Com reconhecimento, podemos organizar encontros, como já aconteceu na rua Nestor Ludwig. Foi uma festa, sem incidentes, com famílias participando — defende.

O projeto de lei estabelece alguns objetivos, como incentivar a prática esportiva entre jovens, valorizar manifestações culturais e evitar que as manobras sigam sendo feitas em vias movimentadas. Pelo texto, a prática só poderá ocorrer em locais apropriados e licenciados, públicos ou privados, sempre com uso de equipamentos de segurança. 

A formulação, no entanto, levantou dúvidas na reportagem sobre uma possível restrição da atividade em outros espaços da cidade. Moisés rebateu a interpretação e afirmou que o projeto não pretende proibir, mas organizar.

— Não seria exequível proibir, e ninguém levantou isso, até porque não há desejo de mexer nisso. Os praticantes já buscam locais apropriados. O que a lei prevê é que encontros e apresentações maiores tenham organização — esclareceu.

Cuidados para a prática do grau de bike

Atualmente, a prática do grau de bicicleta não é regulamentada em Porto Alegre. Por isso, a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) orienta que, enquanto não houver regras específicas, os ciclistas devem seguir as normas gerais de trânsito: respeitar a sinalização, dar prioridade aos pedestres e, sobretudo, não se colocar em situações de risco.

Embora o uso de capacete e outros equipamentos de proteção não seja obrigatório por lei, a recomendação é clara: sempre utilizar Equipamentos de Proteção Individual (EPI). Capacete, luvas, óculos, farol e lanterna são itens que podem evitar acidentes e reduzir os impactos em caso de quedas, principalmente em treinos noturnos.

A EPTC destaca ainda que realiza, por meio da Escola Pública de Mobilidade, ações educativas voltadas a ciclistas, com orientações sobre segurança, circulação e conduta previstas no Código de Trânsito Brasileiro (CTB). As iniciativas são divulgadas no site da prefeitura

Para o vereador Moisés Barboza, essa é justamente uma das lacunas que a proposta pretende preencher.

— Esse é o entendimento enquanto o esporte não for reconhecido devidamente. Após a aprovação da lei, a Secretaria de Mobilidade e a EPTC precisarão se atualizar sobre o wheeling bike — afirma.


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