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Prédios abandonados e mais de 200 lojas vazias: "Após a enchente, o que já era ruim ficou péssimo na Farrapos", diz empresário

Construída no passado para ligar a Zona Norte ao centro de Porto Alegre, via, ao longo dos anos, tornou-se apenas um lugar de passagem para veículos e com pouca circulação de pedestres, o que acaba enfraquecendo o comércio

24/10/2025 - 15h21min


Guilherme Gonçalves
Guilherme Gonçalves
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André Ávila/Agencia RBS
Avenida Farrapos sofre com perda de negócios e insegurança à noite.

A fuligem dos ônibus que passam pela Avenida Farrapos, em Porto Alegre, escurece as fachadas de prédios em estilo Art Déco erguidos na década de 1940. A falta de cuidado com esses edifícios esconde a sua beleza e faz com que o reboco das estruturas caia nas calçadas, tornando ainda mais cinzenta a avenida. Hoje, grande parte dessas construções — e de outras que surgiram desde então — estão desocupadas e seguem com marcas da enchente que atingiu a cidade em maio de 2024. 

No trecho entre o Viaduto da Conceição até a estação do Trensurb, no encontro com a Avenida A.J. Renner, foram contabilizados 211 pontos comerciais no andar térreo vazios. São as conhecidas "lojas de rua", que no passado abrigavam negócios na via, inaugurada em 1940 como a mais moderna da Capital.

Quarenta anos depois foram criados os corredores de ônibus da Farrapos. Para esta obra canteiros com árvores foram derrubados e parte do calçamento que ainda era formado por paralelepípedos foi trocado por asfalto

Foi o começo da decadência. A avenida hoje é feia, e isso afasta as pessoas — lamenta o empresário Antônio De Conto, 69 anos, dono do hotel Hotel Ivo De Conto, que existe há mais de oito décadas na Avenida Farrapos. 

André Ávila/Agencia RBS
Antônio De Conto gerencia o Hotel Ivo De Conto, aberto há 82 anos na Farrapos.

Neto do fundador do hotel, Antônio De Conto diz que nem a proximidade com o aeroporto tem ajudado a atrair clientes. 

— Atendemos muito pouco quem vem de fora. A entrada da cidade está muito feia, horrível. O pessoal passa longe daqui. Estamos sofrendo há muito tempo. À noite, não podemos nem indicar um lugar para jantar. Após a enchente piorou tudo. Muitas lojas fecharam. O que já era ruim ficou péssimo

João Carlos Zago, 85, conserta radiadores desde 1967 na Avenida Farrapos. Há 15 anos, sua empresa atendia uma média de 20 motoristas por dia — um número já baixo na comparação com o movimento dos tempos de ouro da avenida. Hoje, se chegam cinco carros para conserto, é muito, diz o empresário. 

— Havia várias concessionárias na minha volta. Elas foram todas embora. Tinha casa de autopeças, amortecedor, vidros, parabrisas. Elas foram para onde tem movimento bom — diz Zago.

Inaugurada por Getúlio Vargas

Em 14 de novembro de 1940, o então presidente Getúlio Vargas veio a Porto Alegre para inaugurar a avenida. Cruzando os bairros Floresta, São Geraldo e Navegantes, a Farrapos conectou o Centro à zona industrial com faixas mais largas para carros, uma novidade para a época. Canteiros laterais repletos de álamos conferiam beleza e elegância à via, além de trazer sombra para quem circulava a pé pela região. Por anos, esses elementos unidos favoreceram o desenvolvimento do comércio local. 

Território de concessionárias

Na década de 1960, o fluxo gerado por trabalhadores das indústrias foi diminuindo com o fechamento de empresas no 4º Distrito. Mesmo assim, seguia tomada por concessionárias, o que acabava puxando a abertura de mecânicas e de lojas de autopeças. 

A família da aposentada Maria Emilia Rivaldo, 71, é dona do edifício Centro Empresarial Farrapos, onde, por anos, funcionou a antiga Casa Dico, tradicional revenda de carros da Chevrolet. Disputada no passado, a construção próxima ao Viaduto da Conceição está agora cercada por placas de "aluga-se" de mais de uma imobiliária. 

— Começou um movimento de exigência das montadoras, que viram Porto Alegre crescer para outras regiões. Foram para mais perto de seus clientes. Quando abriram a Terceira Perimetral, aquilo ali se tornou uma área interessante para as concessionárias. A Farrapos ficou envelhecida e não houve tentativas da prefeitura para continuar tornando essa área interessante — reclama. 

André Ávila/Agencia RBS
Centro Empresarial Farrapos também abrigou concessionária no térreo. Hoje, prédio está desocupado.

A Farrapos do comércio

Em 2009, a situação da Farrapos já não era boa para o setor. Naquele ano, Zero Hora mostrou que grandes marcas haviam deixado a avenida.

De lá para cá, o quadro se agravou. Presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Porto Alegre (CDL-POA), Irio Piva reforça que o abandono da Farrapos ficou ainda mais evidente depois da enchente do ano passado. Ao contrário de outras áreas da cidade que foram afetadas pela cheia — onde imóveis foram limpos depois da tragédia climática — grandes prédios da avenida seguem marcados pela água barrosa que atingiu 1m20cm. 

— Todo o 4º Distrito sofreu muito com a enchente, inclusive a Farrapos. Mas a avenida já vinha sofrendo antes. O lugar ficou feio, degradado e desvalorizado — diz Piva. 

Edifícios atingidos pela cheia foram invadidos e furtados. Para evitar que isso volte a ocorrer, os proprietários começaram a lacrá-los com paredes de tijolos. Simone Camargo, dona de uma imobiliária que atua há 72 anos na Farrapos, diz que dificilmente esses imóveis serão restaurados. 

Com as paredes de tijolos, os proprietários nem querem mais apresentar os imóveis para interessados em locar. Até porque é raro que tenha. A esperança deles é que uma construtora compre e derrube para fazer um prédio no futuro. Essa é a realidade.

SIMONE CAMARGO

Proprietária de imobiliária

Dos bairros pelos quais a Farrapos atravessa, apenas o Floresta teve queda no número de unidades disponíveis para locação nos últimos seis anos. Segundo o Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis (Secovi-RS), grandes imóveis comerciais no São Geraldo e Navegantes foram devolvidos em agosto de 2024, depois da enchente (veja na tabela abaixo)

Ainda antes da cheia, a Gerdau deixou seu centro administrativo na avenida e levou seu escritório para São Paulo. 

— As empresas se desmotivam. Veem que as promessas não são cumpridas, recebem propostas de outros locais e saem. Muitos foram para Santa Catarina. A primeira coisa que prometem lá é que não tem enchente. Somado a isso, ainda oferecem isenção fiscal — diz o presidente da Associação dos Empresários do 4º Distrito Vítimas da Enchente, Arlei Romeiro.

Nos últimos anos foram abertos postos de combustíveis e uma concessionária, erguida depois da enchente no terreno da antiga Ribeiro Jung

Presidente do Secovi-RS, Moacyr Schukster diz que o estado de abandono dos prédios antigos afasta interessados em investir na avenida. Para que as estruturas sejam reformadas, sugere que a prefeitura conceda incentivos fiscais

— Teria de haver uma modificação na utilização dessa avenida, a começar por um estímulo fiscal ao retrofit (revitalização de prédios). Se a prefeitura estimulasse isso, teríamos o reaproveitamos de prédios. Outro grande problema é a falta de lugar para estacionar na Farrapos. Isso é fundamental para o comércio — afirma Schukster. 

A Farrapos dos moradores

Simone Camargo, dona da Imobiliária Farrapos e também vice-presidente do Secovi-RS, diz que o preço do aluguel de apartamentos de um dormitório na Farrapos gira entre R$ 600 e R$ 800. Para venda desse tipo de unidade, os preços anunciados variam entre R$ 150 mil e R$ 170 mil. Mesmo com o comércio enfraquecido, a empresária afirma que a Farrapos tem ganhado novos moradores desde a enchente. 

Apartamentos anunciados na avenida se encaixam na faixa de valor do programa Compra Assistida, do governo federal, destinado a pessoas de baixa renda que foram atingidas pela cheia. Em uma "dança das cadeiras", apartamentos deixados por quem morava na Farrapos até a enchente agora são ocupados por pessoas que deixaram a região das ilhas

Além de novos, a Farrapos conta com moradores antigos como a aposentada Tina Gregório, 70 anos. Do sexto andar de um edifício de 15 pavimentos, ela viu as mudanças na paisagem da Farrapos nos últimos 36 anos. 

Conheci a Farrapos no tempo que ela era "top". Sempre morei nesta zona. Se fosse bem cuidada, seria muito boa. É perto de colégio, supermercados. Tu vais a pé para o Centro.

TINA GREGÓRIO

Moradora de um prédio na Farrapos

Segundo ela, as pessoas têm medo de empreender na avenida. 

— O povo gosta de ver coisa bonita, não gosta de ver tristeza. O negócio é movimentar, tem edifícios bons — diz Tina. 

André Ávila/Agencia RBS
Tina Gregório, 70, mora há 36 anos na Avenida Farrapos.

O prédio em que Tina mora fica na esquina com a Avenida Presidente Franklin Roosevelt. Ali, diz que faz tudo a pé, mas somente até as 18h. Quando o sol se põe, as calçadas ficam vazias e a sensação de insegurança predomina na avenida. 

A Farrapos da insegurança

À noite, o movimento é outro. Poucos pedestres se arriscam a andar pela avenida. Conhecida pela diversidade de casas noturnas, hoje a Farrapos conta com apenas duas boates abertas à noite. 

A sensação de insegurança é a principal queixa de comerciantes e moradores ouvidos pela reportagem. Segundo eles, a região virou ponto de tráfico de drogas à noite. 

Comandante do 9º Batalhão da Brigada Militar de Porto Alegre, o coronel Hermes Völker diz que a força policial tem feito ações de interceptação no loteamento Santa Terezinha, conhecido com Vila dos Papeleiros, na Rua Voluntários da Pátria. Segundo comerciantes e moradores do 4º Distrito, é de lá que viriam assaltantes e vendedores de drogas. 

— Fazemos rondas diárias por todas as ruas adjacentes à Farrapos, onde são feitas apreensões. Com isso, fizemos diminuir o tráfico no local. A sensação de insegurança está muito relacionada com pessoas em situação de rua — diz Völker. 

André Ávila/Agencia RBS
Ruas vazias são uma marca da avenida ao cair do dia.

A Secretaria Municipal de Segurança (SMSeg) acrescenta que a Guarda Civil Metropolitana mantém efetivo fixo no local desde a operação integrada com a Brigada Militar e que irá instalar nas próximas semanas uma base fixa junto ao Viaduto da Conceição, na Avenida Farrapos. 

Já a Secretaria Municipal de Assistência Social, diz que na primeira quinzena do mês de outubro a equipe abordou 55 pessoas em situação de rua no entorno da Farrapos. Todos teriam aceitado a abordagem, mas possuem vulnerabilidades sociais "que dificultam o estabelecimento de um plano de acompanhamento". 

As soluções para a Farrapos

O novo Plano Diretor de Porto Alegre, apresentado na Câmara de Vereadores este ano, prevê a construção de prédios de até 130 metros de altura, o que poderia trazer um adensamento maior para esta região. Para o arquiteto Lucas Obino, isso ajudaria, mas não é o suficiente. 

Segundo o profissional, a solução para a Farrapos estaria no que ele chama de "caminhabilidade". Além de poder atravessar a cidade de carro, o porto-alegrense que ali convive poderia ir a pé aos bairros Moinhos de Vento, São João e Higienópolis.

— É uma boa via para caminhar. É plana, mas é feia e caótica. O grande problema é a barreira de corredor de ônibus. Torna a Farrapos uma via apenas de passagem. No passado, ela era uma via de costura urbana e de permanência. Além desse caráter de terminal, o corredor de ônibus cria essa barreira — diz Obino. 

Para resolver isso, o arquiteto sugere o fim do corredor de ônibus e o alargamento das calçadas. Para que os coletivos sigam com preferência no tráfego, uma faixa azul seria destacada junto à calçada, como já ocorre em outras áreas da cidade, trazendo o movimento das paradas para o calçamento, junto ao comércio

Ativa o comércio, traz paisagismo e coloca equipamento urbano. Isso traria uma percepção de qualidade espacial e ambiental. Joga as pessoas para as calçadas. Trabalha bem a iluminação.

LUCAS OBINO

Arquiteto

André Ávila/Agencia RBS
Corredor de ônibus é criticado por comerciantes da avenida.

A atual gestão municipal diz estar desenhando um novo projeto para revitalizar a avenida. As obras seriam bancadas por um financiamento com bancos internacionais. Entre as alterações citadas pelo secretário municipal de Planejamento e Assuntos Estratégicos, Cezar Schirmer, estariam melhorias nas calçadas, plantio de árvores e instalação de novo mobiliário urbano

Remover o corredor de ônibus ainda estaria sendo estudado, diz o secretário:

— A questão do corredor tem que discutir. A Farrapos, pela sua complexidade, exige estudos técnicos mais aprofundados. Há o propósito de incrementar a avenida. Envolve estímulos para melhorar os prédios que ali existem. Uma pintura nas fachadas já resolve bastante. Vamos ouvir a comunidade antes de qualquer coisa. 


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