Memória e cultura
“Nunca esquecer os nossos ancestrais”: Biblioteca do Negro será reaberta em Porto Alegre com acervo de 1,3 mil obras e peças históricas
Após sete anos fechada, instituição retoma atividades sob o cuidado do casal Clélia Paim e Jair Ângelos, que busca dar continuidade ao legado da professora Yvanilda Belegante


Livros e objetos ocupam as prateleiras da pequena sala de um casarão na Cidade Baixa, em Porto Alegre. Pouco a pouco, eles dão forma a um espaço que ressurge após cerca de sete anos fechado. Com uma trajetória de três décadas, a Biblioteca do Negro Yvanilda de Oliveira Belegante volta a oferecer seu vasto acervo dedicado à história e à cultura afro-brasileira, acessível a todos.
Quem está à frente da instituição hoje é o casal Clélia Paim, 69 anos, e Jair Ângelos, 60, que prepara a reinauguração oficial da biblioteca para o dia 15 de novembro. Eles tiveram acesso ao acervo há cerca de dois anos, quando a professora de Geografia Yvanilda Belegante, hoje com 85 anos, já havia interrompido seus trabalhos por questões de saúde.
Desde sempre interessada em investigar sua ancestralidade, Clélia afirma que se encantou com o local já no primeiro dia. O casal encontrou as obras encaixotadas na residência da professora, em Viamão, em um espaço três vezes maior que a atual sede. E, quanto mais mergulhavam nas pilhas de livros, mais descobertas surgiam. As publicações contemplam os mais variados assuntos: desde literatura infantil e romances até fotografia, biografias e periódicos.
O acervo reúne cerca de 4 mil obras. Desse total, aproximadamente 1,3 mil são dedicadas à população afro-brasileira – conjunto que forma a Biblioteca do Negro.
— São muitos livros, e cada um conta uma parte da história, desde a África até o Brasil. A seção sobre a escravidão no Rio Grande do Sul é muito ampla — destaca Clélia.
O espaço cultural está hoje sediado na Casa Odabá (Rua João Alfredo, 782), mas sua origem remonta à cidade vizinha. Foi lá que a professora que dá nome ao local começou a colecionar as obras que compõem o acervo.
Inicialmente, o casal passou alguns meses trabalhando na residência dela, organizando as publicações, até firmar um acordo com a família da idosa para assumir definitivamente o arquivo. Antes disso, outras instituições também demonstraram interesse em receber os materiais, mas a geógrafa não aceitou. Com Clélia e Jair, finalmente, o trabalho de Yvanilda ganhou continuidade.
Avaliação do conteúdo
Para reabrir o espaço, não basta apenas distribuir os livros. Há todo um processo cuidadoso de avaliação, obra por obra, para entender o estado de cada uma antes de disponibilizá-las. Por serem antigas, muitas dessas publicações carregam uma linguagem desatualizada e, em alguns casos, até inapropriada.
É o caso, principalmente, da seção de literatura infantil, que reúne cerca de 200 livros. Clélia explica que alguns textos foram escritos em épocas em que se utilizavam termos racistas, hoje inadmissíveis:
— É por isso que não abrimos a biblioteca ainda. Tivemos um ano, depois que viemos para cá, para fazer esse trabalho que é de altíssima responsabilidade, porque estamos repassando conhecimento.
A historiadora e doutoranda em Educação Jade de Oliveira Monteiro tem ajudado Clélia e Jair no esforço de catalogação das obras. Ao saber do acervo, se voluntariou para ajudar a organizar um sistema de consulta online que, atualmente, já conta com mais de 500 livros.
— É um acervo bem especializado, que dispõe de obras muito antigas. O livro mais antigo que chegou às minhas mãos, até então, é de 1950. Mas sabemos que existem livros que são até um pouco mais antigos que isso. Muitos deles já estão esgotados, edições raras, que não foram comercializadas recentemente.
Entre as raridades estão, por exemplo, O Negro na Fotografia Brasileira do Século XIX, de George Ermakoff, que utiliza imagens e fontes históricas para mostrar o cotidiano no período da escravatura. Em Quilombolas: tradições e cultura da resistência, do geógrafo Rafael Sanzio Araújo dos Anjos, são apresentadas comunidades de diferentes Estados. Já no cenário regional, Calabouço urbano: escravos e libertos em Porto Alegre (1840-1860), de Valéria Zanetti, olha para a capital gaúcha do século 19.
Dos que não foram catalogados, ainda há livros sobre saúde da população negra, cultura e samba de Porto Alegre, quilombos urbanos, além de uma quantidade considerável de revistas e jornais que, de tão extensa, não conseguiram calcular. Para além do material escrito, o local ainda guarda objetos: máscaras e roupas africanas, tambores, vestimentas religiosas e obras de arte compõem o acervo, que hoje também já recebe novas doações. O casal ganhou, recentemente, um sino com mais de cem anos que foi utilizado em uma fazenda onde trabalhavam escravizados.
Todo esse material guarda as experiências de gerações anteriores, e são memórias que permanecem vivas quando passadas adiante. Um conjunto que se mostra como um canal de preservação e de homenagem ao legado da população negra. E quando pensam sobre a forma como chegaram até o acervo, Clélia não tem dúvidas de que a espiritualidade foi um guia que uniu os caminhos dela com o da professora.
— Acredito muito na força dos orixás. Eu não conhecia a Yvanilda. Quando chegamos lá, ela estava sentadinha na área de sua casa. Ela me olhou e disse: “Eu estava te esperando” — relembra, sem esconder a emoção.
Um acervo que surgiu de forma orgânica
Jair é filho de Eloy Ângelos, jornalista e advogado com importante atuação no movimento negro do Rio Grande do Sul. Ele conta que conheceu Yvanilda Belegante quando foi aprovado em um concurso para assistente social em Viamão.
Após atuar em Centros de Referência de Assistência Social (Cras), foi convidado a trabalhar no Departamento de Cidadania e Direitos Humanos. Na nova função, acabou cruzando caminho com a professora de Geografia, servidora que já acumulava vasta experiência na área educacional do município.
O interesse de Yvanilda pelo mundo da educação é antigo. Sua aproximação com pautas voltadas à população negra também tem relação com suas origens. Mulher branca e descendente de nordestinos, ela cresceu ouvindo histórias sobre o passado escravocrata de seus antepassados.
A filha, a jornalista Ana Karina Belegante, conta que o bisavô de Yvanilda foi senhor de engenho e que, mesmo após a abolição, negros libertos continuaram vivendo e trabalhando nas propriedades da família.
— Sem ter para onde ir, muitos continuaram morando nas casas onde trabalhavam: amas de leite, funcionárias das cozinhas, pessoas que já estavam com uma certa idade. O que fariam? Então, meu avô foi criado por filhas e netas de escravizados, e minha mãe cresceu ouvindo essas histórias — conta Ana Karina.
"Ela queria fazer a diferença"
Na vida adulta, já morando no Rio Grande do Sul, Yvanilda decidiu cursar Geografia e construir carreira na área educacional. Em sua trajetória, o foco estava em estudar a cultura dos povos. O que a interessava era entender culturalmente as diferentes populações a partir da perspectiva geográfica.
Trabalhou com os açorianos e com povos originários, até passar a tratar da questão do negro no Brasil. Quando se mudou para Viamão, Yvanilda comprou uma casa e iniciou ali o espaço que foi batizado de Biblioteca Itinerante Maria Helena Vargas da Silveira, em homenagem à escritora, pedagoga e ativista afro-gaúcha, de quem era amiga.
Um fato curioso é que o pai de Jair ajudou a poetisa Maria Helena na edição de alguns de seus livros. Por essa relação, Yvanilda quis conhecer o Dr. Eloy, mas o encontro entre os dois acabou não se concretizando.
Yvanilda começou a arrecadar, ganhar e comprar livros, reunindo um acervo extenso, com algumas publicações inexistentes em outros lugares do país. Com isso, sua casa virou ponto de encontro para pessoas interessadas no tema. Ela ainda recebia alunos de países africanos, como Moçambique e Angola, que vinham estudar em universidades de Porto Alegre e acabavam coletando materiais para pesquisa em seu acervo.
Pegou a garagem, que era um espaço grande, e transformou em uma biblioteca, em um centro cultural. Com o tempo, já não tinham apenas livros. Havia objetos, quadros, fotografias, muitas coisas que armazenava ali.
Foram décadas de dedicação, com a casa sempre cheia de amigos e convidados. Até que, por volta de 2019, Yvanilda passou a apresentar esquecimentos frequentes e outros sintomas. Era preciso fechar a biblioteca. Com o agravamento do quadro, em 2024, foi diagnosticada com demência por corpos de Lewy, doença cerebral progressiva que causa declínio na memória, no raciocínio e no comportamento.
A professora era questionada sobre por que uma mulher branca, de posses, se interessava pela cultura negra. Na visão da filha, a resposta para essa pergunta está diretamente relacionada ao passado da família:
— É como se fosse um resgate, uma homenagem. Já que você não consegue mudar o passado, nem o que os seus antepassados fizeram, pelo menos ela queria fazer a diferença. Como se fosse uma homenagem mesmo, até um pedido de desculpas, quem sabe. Mas não era uma questão clara, era algo natural dela.
Conexão entre duas trajetórias opostas

Quando Clélia Paim conheceu Yvanilda, a professora já estava com a saúde debilitada. Nas visitas à casa em Viamão, a relação entre as duas nasceu de uma paixão comum pela educação. Clélia conta que seu pai, mesmo sem saber ler, sempre a incentivou a estudar.
— Fui empregada doméstica até os 18 anos, mas sempre estudando. Ele dizia que a única herança que poderia deixar eram os conselhos — recorda, acrescentando que um deles era “nunca esquecer os nossos ancestrais”.
Esse ensinamento virou um norte. Clélia fez da valorização das origens um propósito de vida e, por isso, sempre esteve próxima do movimento negro no Estado. Seu engajamento vem da própria história familiar.
Entre as pessoas que permaneceram nas fazendas após a abolição estavam seus antepassados. Ela cresceu em Santa Maria, na mesma propriedade onde seus ancestrais haviam sido escravizados, e viu os pais trabalharem em troca de comida.
— Por isso gosto tanto de mocotó. A gente ganhava o rabo do boi, a cabeça, as tripas, e a mãe fazia os englobados. Era isso que a gente tinha pra comer — relembra.
Com o tempo, a família mudou-se para Porto Alegre e começou uma nova vida. Clélia construiu uma trajetória de cinco décadas no mercado corporativo, aposentou-se há 15 anos, mas segue ativa. Às vésperas de completar 70, encontra novo fôlego ao lado do marido, planejando o futuro da biblioteca.
Assim que assumiram o acervo, decidiram rebatizar o espaço: Biblioteca do Negro Yvanilda de Oliveira Belegante – um gesto de continuidade e homenagem à mulher que o iniciou.
De portas abertas
São muitas as ações que o casal planeja para a biblioteca, que contemplam desde o público infantil até os idosos. Mas há um objetivo central que vai guiar o trabalho deles: aproximar-se de professores e educadores. Com a compreensão de que precisam fazer circular os conhecimentos guardados no local, enxergam nos docentes o caminho para esse movimento.
— Percebemos que muitos professores, especialmente os de História, se encantam ao visitar a biblioteca, pela riqueza de conhecimento reunido aqui.
Outras formas de ampliar o alcance da biblioteca estão nos projetos que estão estruturando, mas para que eles saiam do papel, Clélia e Jair têm se debruçado em estudar os caminhos possíveis para captar recursos e firmar parcerias. Não há uma cobrança para os empréstimos das obras, somente multas em caso de atrasos para a devolução. O valor é simbólico, não podendo ser contado como uma fonte de renda.
Uma instituição com a qual eles têm se aproximado é a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que deve ajudá-los tanto na parte de busca por financiamentos quanto na mão de obra especializada para recuperação de livros danificados.
Também estão estudando editais, fazendo levantamento de possíveis organizações apoiadoras e vislumbrando todas as possibilidades futuras que esse espaço carrega. Movimentos esses que são feitos para honrar “todo o legado de sabedoria” que a Biblioteca do Negro guarda, finaliza Clélia.
Conheça os projetos em desenvolvimento na biblioteca
- Letramento racial: atividades com crianças, em parceria com educadores, para desenvolver consciência de identidade e autoestima a partir da história afro-brasileira. Para os adultos, ampliar o conhecimento sobre as próprias origens
- Café com Leitura: encontros periódicos para debater temas ligados à cultura e à vivência negra, com base nas obras do acervo. Um espaço de troca de saberes
- Lendas Vivas: projeto que convida idosos a compartilharem experiências e histórias que não estão registradas em livros, fortalecendo a oralidade
- Lançamento de livros: parcerias com editoras para transformar a biblioteca em ponto de lançamentos e, futuramente, também de produção editorial
- Outras ações: oficinas sobre saúde da população negra, dança, teatro, biblioteca itinerante, beleza e arte