Notícias



Mapa da Reciclagem

Coleta seletiva: menos da metade das 30 maiores cidades do RS realiza separação total do lixo

Série de reportagens traz levantamento exclusivo e aponta desafios do tratamento de resíduos no Estado

17/12/2025 - 10h36min


Guilherme Milman
Guilherme Milman
Enviar E-mail
Jeff Botega/Agencia RBS
Mesmo em cidades gaúchas onde a coleta seletiva é realizada, há desafios para a melhoria do serviço.

Em 2010, o Congresso Nacional aprovou a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) para definir como o país deveria atuar na separação e no tratamento do lixo. Quinze anos depois, ainda há desafios para colocar a lei em prática.

Levantamento exclusivo realizado por Zero Hora com prefeituras dos 30 municípios mais populosos do Rio Grande do Sul mostra que menos da metade deles realiza a separação total entre lixo seco e lixo orgânico.

A partir desses dados, a série de reportagens Mapa da Reciclagem apresenta lo cenário da coleta seletiva no Rio Grande do Sul, apontando entraves e possíveis caminhos. Nesta primeira matéria, confira o que dizem os dados mais recentes e entenda as falhas do sistema.

Leia as outras matérias da série:

O que dizem os dados

A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) define papéis para União, Estados e municípios, cabendo aos municípios a gestão da coleta e da destinação do rejeito produzido pela população. Entre as obrigações está a de separar corretamente o resíduo conforme a sua composição, o que é chamado de coleta seletiva.

Atualmente, as prefeituras precisam informar dados sobre a coleta seletiva para o Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico (Sinisa), mantido pelo governo federal. Os números mais recentes são de 2024, referentes a 2023.

Levantamento realizado por Zero Hora nos últimos meses com as prefeituras mostra que 27 dos 30 municípios mais populosos do Estado afirmam ter coleta seletiva. Desses, 14 o aplicam em 100% de sua área, enquanto outros 13 declaram ter separação de lixo parcial — seja na maior parte do município ou apenas em áreas urbanas. 

Três cidades não fazem nenhuma separação do lixo: Alvorada, Bagé e  Guaíba.

Especialistas ouvidos para esta reportagem avaliam que, mesmo em casos onde a separação é feita, há problemas.

O que é coleta seletiva?

Jeff Botega/Agencia RBS
Separar lixo seco do lixo orgânico é fundamental para o reaproveitamento dos resíduos.

A coleta seletiva é o instrumento que permite separar o lixo seco do orgânico recolhido nas residências.

O lixo seco, composto por materiais como embalagens e garrafas pet, é encaminhado para associações e cooperativas, que fazem a destinação correta do material para ser reciclado. Já o lixo orgânico, como restos de comida ou papéis usados, é encaminhado para aterros sanitários ou passa por um processo de compostagem para ser transformado em adubo.

— Essa coleta seletiva é importante para garantir que os resíduos que geramos possam voltar para a cadeia produtiva da reciclagem. Se isso não ocorre, significa que a maioria dos nossos resíduos estão sendo encaminhados para aterros sanitários — afirma a professora e pesquisadora Joice Maciel, do Núcleo de Caracterização de Materiais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). — O principal impacto tem relação com o tempo que esses resíduos vão demorar para se decomporem. Resíduos plásticos demoram de cem a 200 anos.

As falhas no sistema

Especialistas apontam que a coleta seletiva não é efetiva se não houver política pública adequada, investimento e valorização de cooperativas.

Em Santa Maria, quinta maior cidade do Estado, menos de um terço dos bairros possui coleta seletiva, e menos de 1% do rejeito recolhido é reciclado. Já em Santana do Livramento, a coleta existe, mas é feita de forma solidária a partir da iniciativa da população.

Os motivos para a insuficiência na separação em muitos locais do Estado passam por falhas estruturais.

Coletas inadequadas

No cenário ideal, uma coleta bem feita precisa ter a separação desde a remoção nos domicílios, com caminhões diferentes para lixo seco (serviço chamado de coleta seletiva) e orgânico (coleta domiciliar). O lixo reciclável é levado para associações e cooperativas, que realizam a triagem e a correta separação, para depois ser reaproveitado.

Na prática, é diferente. O Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS), que fiscaliza essas ações por meio da Promotoria do Meio Ambiente, aponta para casos em que a coleta seletiva é feita apenas para cumprir a lei e a falta de capacidade de triagem leva a uma mistura dos resíduos.

— Não adianta o município ter a coleta seletiva se no final mistura tudo. Precisa ter locais adequados para destinar os resíduos orgânico e reciclável, um local adequado para separação do vidro, do eletroeletrônico e do plástico — ressalta procuradora Ana Maria Marchesan, coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente (Caoma) do MP-RS.

Ao entrarem em contato com resíduos orgânicos, materiais que poderiam ser retornados ao mercado formal se tornam inutilizáveis.

— Já pegamos casos em que os colegas fizeram investigações e se observava, por exemplo, que o próprio caminhão era o mesmo. Fazia a coleta do lixo seco e do lixo orgânico. O que é bem complicado — exemplifica Ana Maria.

O MP-RS faz recomendações e firma termos de ajuste de conduta (TAC) para que as prefeituras se adequem à lei.

A professora Joice Maciel, da Unisinos, destaca que as falhas na coleta desmobilizam a população e descredibilizam a educação ambiental:

— Muitas vezes, ficamos com aquela sensação de "poxa vida, os resíduos foram separados, mas a coleta comum passou e levou tudo junto, inclusive o reciclável".

Cooperativas precárias

Jeff Botega/Agencia RBS
Cooperativas são consideradas fundamentais no processo de coleta seletiva.

Outra questão apontada pelos especialistas é a desvalorização de cooperativas de catadores.

O Programa Nacional de Resíduos Sólidos prevê que essas cooperativas tenham prioridade em assumir o serviço de triagem e separação do lixo, e permite a contratação sem necessidade de licitação.

No levantamento de Zero Hora, todos os municípios que têm coleta seletiva e responderam ao questionamento afirmam ter ao menos uma cooperativa ou associação.

A infraestrutura de que dispõem, no entanto, muitas vezes é deficitária. A professora Joice, que atua no apoio às cooperativas de catadores, relata casos que dificultam a capacidade de triagem.

— Quando os municípios contratam serviço para coleta de resíduos domésticos e sanitários, que são esses que geramos diariamente, existe um valor. Quando falamos de serviço de coleta seletiva, não sei o que que acontece, mas os municípios entendem que não necessariamente precisa ser pago — compara.

Valores baixos impedem a cooperativa de investir em infraestrutura básica, como prensas, esteiras e manutenção, resultando em um trabalho precário

Dificuldades dos municípios

A estruturação de uma política efetiva de resíduos sólidos é complexa e requer capacidade de investimentos e organização, o que cidades menores muitas vezes não têm.

Relatórios elaborados pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS) apontam que 141 das 497 prefeituras do Rio Grande do Sul — ou seja, quase um terço — não têm um Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PMGIRS), previsto no PNRS, que deve estabelecer metas de redução, reutilização, coleta seletiva e reciclagem.

— Ele (o plano) envolve todos os serviços, inclusive compostagem dos resíduos orgânicos recicláveis — explica a auditora do TCE-RS Flávia Burmeister Martins. — O município vai ter que estruturar a destinação final e registrar como vai buscar as metas. É um plano que requer um esforço grande do município, que muitas vezes não tem estrutura técnica.

Em 2020, com a aprovação do novo Marco Legal do Saneamento, novas exigências foram criadas, como a contratação de agências reguladoras para fiscalizar os serviços de saneamento, incluindo os resíduos sólidos. Ainda segundo o TCE-RS, atualmente apenas 37 cidades gaúchas têm serviço de coleta regulado. Para Flávia, uma das soluções é trabalhar com a regionalização do processo, incluindo a presença de cooperativas:

Não é viável ter uma cooperativa por município, principalmente no caso dos municípios de pequeno porte. O ideal seria que uma cooperativa pudesse receber resíduos de diferentes municípios ao redor e tivesse alguma autonomia.

Desafios da logística reversa

Ainda que os resíduos sejam corretamente separados, com triagem adequada em cooperativas bem estruturadas, há questões no processo de reciclagem que seguem sem ser resolvidas. A principal diz respeito ao retorno dos produtos recicláveis ao mercado, processo chamado de logística reversa.

A PNRS estabeleceu os princípios da responsabilidade compartilhada e do poluidor pagador, em que as empresas que lucram com a venda deveriam assumir a obrigação de recolher e reciclar o que sobra. A procuradora Ana Maria Marchesan explica:

— Se eu sou uma fabricante de bebidas e tenho uma logística para fazer meu produto chegar aos supermercados, também tenho que ter uma logística adequada para fazer esse produto chegar a um local onde seja reciclado. Porque senão eu estou poluindo o meio ambiente.

Segundo ela, o PNRS criou um sistema de acordos em que setores econômicos estabeleceram metas de longo prazo com o governo federal. Em alguns casos, os acordos chegam à meta de 40% de produtos reciclados até 2040.

Tudo isso é muito longo. E daí o que acontece? Quem acaba arcando com essa logística reversa na prática? Os municípios — conclui a procuradora.

O desafio se torna ainda maior, já que muitos materiais tecnicamente recicláveis não têm valor de mercado ou volume suficiente para serem vendidos. Na prática, muitos produtos recicláveis que passam pela coleta seletiva chegam às cooperativas e depois são levados para o aterro sanitário, pois não há interesse em reutilizá-los. 

Metas para os próximos anos

Um decreto publicado pelo governo federal em 25 de outubro busca acelerar os objetivos da reciclagem: a medida estabelece uma meta de recuperar 32% das embalagens plásticas em 2026. Além disso, cria um percentual mínimo gradual de conteúdo incorporado às embalagens plásticas que facilitem a reciclagem, iniciando com 22% no mesmo ano.

Existe, ainda, uma diretriz do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) que regulamenta a prática no Rio Grande do Sul, obrigando a empresa ou um conjunto de empresas do mesmo setor a criar um sistema de logística reversa. As metas a serem estabelecidas não podem ser inferiores às que constam no Plano Nacional ou nos acordos setoriais firmados.

* Produção: Fernanda Axelrud

Últimas Notícias