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Mais da metade reprova na prova prática da CNH; como o RS forma motoristas e o que pode mudar
No Rio Grande do Sul, apenas 39% dos candidatos conseguem aprovação na primeira tentativa do exame prático da habilitação para automóveis


O candidato ajusta o banco, confere o retrovisor, respira fundo. O examinador observa em silêncio. Um erro mínimo — esquecer a seta, deixar o carro morrer, tocar levemente no meio-fio — pode encerrar ali um processo que levou meses.
A prova prática da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), tradicionalmente o momento mais temido para os candidatos, passa agora a ocupar um papel ainda maior.
Com a redução drástica da formação obrigatória, ela se consolida como o principal filtro para definir quem está (ou não) apto a dirigir.
No Rio Grande do Sul, apenas 39% dos candidatos conseguem aprovação na primeira tentativa da prova prática da categoria B, para automóveis.
O dado ajuda a dimensionar o desafio: mesmo com um modelo que exigia, até agora, 20 horas mínimas de aulas práticas, a maioria dos futuros condutores precisou de mais tempo ao volante para se sentir preparado.
A nova legislação, no entanto, estabelece um piso de apenas duas horas práticas obrigatórias.
Como era a formação do condutor até agora
Até a mudança, o processo de habilitação no RS seguia uma lógica pedagógica estruturada. O candidato passava por aulas teóricas presenciais, com 18 horas de legislação de trânsito, 16 horas de direção defensiva, além de conteúdos sobre cidadania, meio ambiente e primeiros socorros.
Na prática, realizava cerca de 20 aulas, sob acompanhamento de instrutor credenciado.

Segundo o presidente do Sindicato dos Centros de Formação de Condutores do Rio Grande do Sul (SindiCFC-RS), Vilnei Sessim, esse modelo não era genérico:
— O plano pedagógico do CFC (Centro de Formação de Condutores) não é um plano geral. Ele é feito para cada condutor. O instrutor precisa se adaptar ao aluno, porque cada pessoa aprende de um jeito. Por isso existe o diretor de ensino.
Mesmo assim, os números mostram que aprender a dirigir com segurança já não era simples. Em 2025, até o mês de setembro, o RS registrou 283.384 provas práticas da categoria B, com aprovação de apenas 39% (110.519).
Já entre os motociclistas, grupo considerado mais vulnerável, foram 54.146 exames práticos, com índice de aprovação de 68% na categoria A. No exame teórico, o índice de aprovação foi de 70,47%.
O que muda a partir da nova regra
A nova legislação reduz a exigência mínima para duas horas de aulas práticas e substitui o curso teórico tradicional por uma plataforma online gratuita, oferecida pelo governo federal, com duração inferior a uma hora.
Para Sessim, a mudança representa um corte profundo no processo de formação.
— Hoje, o candidato tinha 18 horas de código de trânsito, legislação, 16 horas de direção defensiva. Agora, ele faz esse mesmo curso em menos de 40 minutos. É inacreditável que todo o conhecimento que o MEC (Ministério da Educação) indicou como necessário seja suprimido dessa forma — aponta.
Na avaliação do setor, não se trata apenas de flexibilização, mas de uma inversão de lógica: menos formação inicial e mais dependência do exame como filtro.
— Se continuarmos com a prova como é feita hoje no RS (por enquanto sem alterações previstas), que é uma prova de nível médio, a expectativa é de que os condutores vão precisar fazer mais aulas (além das duas horas mínimas) para aprender a dirigir. E isso vai ficar na mão do examinador do Detran — afirma Sessim.
Exame prático passa a ser o grande filtro
No Detran do Rio Grande do Sul (DetranRS), a expectativa é de queda ainda maior nos índices de aprovação.
O chefe da Divisão de Exames para a Habilitação Veicular, João Antônio Jardim Silveira, avalia que a mudança altera profundamente o cenário.
— Diminuindo de 20 aulas para duas, acreditamos que vai cair bastante o índice de aprovação. O Rio Grande do Sul sempre formou muito, sempre exigiu formação, com aulas fiscalizadas e monitoradas — detalha.
Ele lembra que algo semelhante ocorreu no período pós-pandemia, quando candidatos que haviam feito aulas anos antes tentaram refazer o exame:
— Na categoria B, tivemos um decréscimo de cerca de 10% na aprovação. Se hoje estamos em 39%, naquele momento cairia para algo em torno de 29%.
Com menos formação prévia, o exame prático tende a assumir um papel ainda mais decisivo.
— O exame vai ser o filtro. Por isso, o cuidado com o local, com o examinador, com o regramento e com a transparência do processo é fundamental — ressalta Silveira.
Preocupação imediata

Para quem está diariamente dentro do carro de instrução, a preocupação é menos abstrata e mais imediata. Instrutora de trânsito em Porto Alegre, Paula Tatiane Roeper afirma que a principal consequência da mudança é a perda de informação e de vivência orientada no trânsito.
— Hoje nós temos um processo de cerca de 45 horas, em que trabalhamos dinâmica, didática, simulado, atividades em grupo e conversa do dia a dia. É ali que o aluno começa a entender o trânsito para além do volante — explica.
Ela cita, por exemplo, aulas introdutórias oferecidas pelos CFCs para que o candidato conheça o carro, o ambiente e a lógica do processo de habilitação, etapas que deixam de existir com o novo modelo.
— O nosso maior interesse é que o aluno saia daqui feliz e habilitado, porque amanhã ou depois a minha filha vai estar andando do lado do teu carro. E a minha preocupação hoje é que tipo de condutor vai estar do lado dela amanhã — indaga.
Para Paula, a redução drástica da carga prática reforça uma falsa sensação de preparo, baseada na experiência informal.
— As pessoas imaginam que, porque já dirigem até o mercado ou a padaria, a prova vai ser tranquila. Com 20 aulas já é difícil. Imagina com duas, sem acompanhamento teórico, sem orientação clara de onde parar, de como interpretar uma placa. A placa de "pare" para muita gente já virou "siga" — ironiza.
Na avaliação dela, o debate público acabou concentrado apenas no preço da CNH, deixando em segundo plano o valor do processo formativo.
— As pessoas se preocupam com o preço, não com o valor. Por trás de um CFC tem energia, veículo adaptado, manutenção constante, instrutor, acompanhamento na prova. Isso tudo garante segurança. Sem isso, o tempo vai mostrar a diferença entre preço e valor — conclui.
Quem avalia quem? O peso sobre o examinador

A mudança também desloca a pressão do sistema. Se antes ela recaía sobre os CFCs e instrutores, agora tende a se concentrar no examinador do Detran, responsável por reprovar candidatos que não demonstrem domínio mínimo do veículo e das regras.
— A sociedade procura culpados. Resolve um problema e cria outro. O foco vai acabar no examinador, que será a pessoa que vai reprovar essas pessoas — observa Sessim.
O Detran afirma que pretende reforçar capacitações e manter o rigor técnico.
— A normativa sobre o examinador se mantém, mas teremos uma preocupação maior com capacitações periódicas, padronização de procedimentos e clareza no processo — diz Silveira.
Hoje, os exames já são filmados e lançados em sistema digital, como forma de dar transparência ao resultado.
Impacto humano
Especialistas alertam que a redução da formação pode ter efeitos diretos no cotidiano das cidades. Menos tempo de aula significa menos vivência no trânsito real, menos treino em situações de risco e menor compreensão do comportamento defensivo.
— As pessoas não têm cultura de investir em educação. Vão fazer duas horas de aula, achar que já podem dirigir e tentar várias vezes a prova — diz Sessim, que também é instrutor de trânsito.
Ao invés de investir em conhecimento, vão investir em passar no exame
VILNEI SESSIM
Presidente do Sindicato dos Centros de Formação de Condutores do Rio Grande do Sul
Na prática, isso pode gerar condutores inseguros, mais nervosismo ao volante e maior risco de conflitos no trânsito — especialmente entre motociclistas, grupo que já concentra grande parte dos acidentes.
O que muda para quem vai tirar CNH
Para o candidato, o caminho pode parecer mais curto, mas não necessariamente mais fácil. Com menos aulas obrigatórias, a tendência é:
- menor preparo inicial
- mais reprovações no exame prático
- gasto concentrado em novas tentativas de prova
- busca por aulas avulsas, muitas vezes sem padronização e com valores mais altos do que a tabela atual
— Não existe mágica. As coisas têm custo: carro, pneu, instrutor, combustível. Não tem como dar aula de graça — finaliza Sessim.
O Detran reforça que seguirá exigindo, no exame, aquilo que considera mínimo para a segurança viária.
— Vamos focar em habilitar quem efetivamente tem condições de estar habilitado — resume Silveira.
Novas regras a partir do dia 5
Em nota oficial publicada na quarta-feira (17), o DetranRS confirmou que as novas regras para a CNH passam a valer no Estado a partir de 5 de janeiro, mesmo diante da ausência de um período formal de transição.
De acordo com o órgão, o fluxo inicial da habilitação funcionará da seguinte forma:
- O candidato pode abrir o processo pelo aplicativo Gov.br e iniciar o curso teórico digital ou realizar a requisição diretamente em um CFC
- Simultaneamente, pode fazer a coleta biométrica no CFC e agendar os exames de aptidão física e mental
- A partir de 5 de janeiro, será possível agendar a prova teórica
- Medida de transição: enquanto não houver integração com o banco nacional de questões da Senatran, o DetranRS aplicará a prova teórica no modelo antigo
- Após a aprovação no exame teórico, o candidato poderá marcar as aulas práticas, com carga mínima obrigatória de duas horas-aula
- Quando se considerar apto, o candidato agenda o exame prático, realizado no CFC
- O exame de direção veicular seguirá o modelo atualmente vigente, até que a Senatran atualize o Manual Brasileiro de Exames de Direção Veicular
- O exame toxicológico só será exigido após regulamentação específica pelo Contran, conforme autorização da Senatran
O DetranRS reforça que, neste momento, instrutores autônomos e uso de veículo próprio ainda dependem de regulamentação, o que impede sua aplicação imediata no Estado.
Além disso, os candidatos que preferirem podem realizar todo o processo pelas regras antigas, enquanto os ajustes no sistema são concluídos.