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Saúde mental

Sobrecarga: oito em cada 10 atendimentos nos CAPS de Porto Alegre envolvem álcool e drogas

Em um ano, 88% dos serviços nos Centros de Atenção Psicossocial foram relacionados ao uso de substâncias químicas

18/12/2025 - 09h55min


Lisielle Zanchettin
Lisielle Zanchettin
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André Ávila/Agencia RBS
Sala expõe atividades de usuários do CAPS Centro Céu Aberto.

O uso abusivo e a dependência em substâncias químicas é um problema global. O consumo não se revela apenas nas ruas ou em relatos de famílias, ela aparece nas estatísticas de saúde mental. Dados de 2024 da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que cerca de 400 milhões de pessoas vivem com transtornos por uso de álcool e drogas em todo mundo.

Em Porto Alegre, oito em cada 10 atendimentos realizados nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) envolvem casos de usuários dessas substâncias. As informações levam em conta dados entre outubro de 2024 e outubro de 2025, fornecidos pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS).

Em um ano, 222.564 atendimentos foram realizados nos centros da Capital. Entre as atividades estão consultas individuais, ações em grupos e de articulação e acolhimento de novos usuários. Desse total, 195.201 foram ligados ao álcool e às drogas – o que representa 88% dos atendimentos.

A Capital tem 16 CAPS com atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS). São três unidades para crianças e adolescentes (CAPSi), cinco para adulto (CAPS II) e oito com foco em álcool e drogas (CAPS AD). As estruturas são regulamentadas pelo Ministério da Saúde e contam com apoio multiprofissional. Entre as principais demandas estão:

  • CAPSi: situações de vulnerabilidade, violência e transtornos do desenvolvimento na infância
  • CAPS Adulto: transtornos mentais graves e persistentes – quadros psiquiátricos mais intensos e com dificuldade de melhora. Recebe muitos regressos de internações psiquiátricas
  • CAPS AD: pessoas com uso problemático de álcool e outras substâncias, que buscam formas de reduzir o consumo e se recuperar. Também recebem usuários vindos de internações e funcionam com demanda espontânea

Busca por apoio

Uma moradora de Porto Alegre – que prefere não se identificar – conta que, em meio a mais uma crise do seu filho, acionou a Brigada Militar e o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). O homem, de 26 anos, foi conduzido até o CAPS AD IV Centro Céu Aberto após utilizar uma grande quantidade de crack e cocaína.

Na unidade, que fica na avenida João Pessoa, a mulher foi informada que seu filho poderia permanecer no local por até 14 dias. Essa é a conduta de acolhimentos no centros. O período, no entanto, pode ser menor, uma vez que a permanência e o acompanhamento dos pacientes não são mandatórios. 

A moradora do bairro Santana, Mara Nunes, também vive uma realidade parecida com o filho. A mulher buscou o mesmo Centro Céu Aberto como uma maneira de ajudar o homem na luta contra as drogas. No entanto, seu filho não chegou a ficar um dia recolhido: 

— Eu fui diversas vezes buscar ajuda. Levei meu filho e me avisaram que não podiam obrigar ele a ficar lá. Esperamos uma manhã inteira para o atendimento até conseguirmos que ele ficasse por 14 dias. Mas, não deu 20 minutos e a equipe me ligou avisando que ele havia saído da unidade. 

Conforme a coordenadora geral da unidade, Danara Rodrigues Dall Agnol, o CAPS trabalha respeitando a individualidade de cada paciente. Por esse motivo, os usuários podem escolher permanecer ou não no local. O plano de atendimento é elaborado considerando de cada usuário. 

Para o médico da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e presidente da Associação de Psiquiatria Cyro Martins, Euclides Gomes, os atendimentos realizados em CAPS, por vezes, não resolvem as questões:

— A proposta do CAPS é um atendimento rápido para liberar o paciente e dar lugar a outro, mas, na verdade, isso não significa resolver a doença. O problema persiste e aumenta. Há usuários que ficam um período, voltam para a rua, depois buscam acolhimento de novo. É interminável — avalia.

Grande procura  

Uma das explicações para a alta demanda pelos serviços de álcool e drogas pode estar relacionada a forma de atuação dos CAPS AD. As unidades funcionam com “porta aberta”, ou seja, a população pode procurar atendimento de forma espontânea a qualquer momento. Também ocorrem procedimentos agendados, conforme o plano terapêutico de cada paciente.

Já as demais modalidades de CAPS operam a partir de encaminhamentos da Unidade Básica de Saúde (UBS), o que impacta no volume de pacientes recebido. Os serviços para crianças e adolescentes manteve a média entre outubro de 2024 e o mesmo mês de 2025: foram 9.219 envolvendo jovens de até 17 anos. Para os adulto, foram 18.144 atendimentos no período. 

— Hoje nós temos 16 CAPS, sendo que oito são para esse atendimento de álcool e drogas. Então, realmente eles ocupam metade da demanda. A principal diferença é a forma de acesso, o que faz com que mais pessoas tenham a possibilidade de atendimento — explica a coordenadora da saúde mental da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), Marta Fadrique. 

O médico psiquiatra, fundador da Associação Brasileira dos Estudos de Álcool e outras Drogas (ABEAD), Ângelo Martinez Campana, também acredita que a desproporção dos atendimentos está ligada à estrutura. Na prática, se tem mais acesso para o tratamento de álcool e drogas, do que para transtornos mentais. 

— A gente sabe que muitos transtornos mentais não estão sendo atendidos, né? E é uma crítica que se faz à morosidade do CAPS em atender. Essa desproporção parece ter mais a ver com a estrutura oferecida do que propriamente com a necessidade. As crises são muito mais frequentes na droga do que em outros transtornos.

A percepção é dividida por Euclides Gomes:

— Enquanto os CAPS estão lotados de demandas de álcool e drogas, outras doenças graves como depressão severa, bipolaridade e esquizofrenia não estão sendo tratadas de forma adequada. 

Os números de atendimentos "AD" refletem diretamente nos profissionais que atuam nas unidades de atenção psicossocial. Zero Hora conversou com trabalhadores das três modalidades de CAPS da Capital e os relatos são de esgotamento. Os profissionais relatam que o serviço é essencial, mas a demanda é grande e recorrente. 

— A demanda é gigantesca e recorrente, sinto que estamos enxugando gelo. É muito cansativo. Por vezes, se esgota os recursos e não se resolve o problema — contou o profissional que atua em um CAPS AD.

10 mil solicitações para consulta

Enquanto os atendimentos para álcool e drogas apresentam elevação mensalmente, as outras demandas seguem reprimidas. Porto Alegre tem 10.214 solicitações para consultas em saúde mental na fila de espera. 

O encaminhamento a um especialista é feito pela UBS. O paciente é inserido no sistema de regulação de consultas especializadas pelo SUS – Gercon – e aguarda ser chamado. A fila de espera segue uma classificação de prioridades estabelecida por cores. 

Os dados de novembro contabilizam seis especialidades de saúde mental. A maior demanda é para atendimento de adultos, com 5.739 solicitações. Na sequência, a espera por consultas para crianças com 4.072 pedidos

No caso de atendimentos para adultos, o município ofertou em novembro 316 consultas. Enquanto isso, 542 novas solicitações entraram no sistema. 

Conforme a coordenadora Marta Fadrique, a oferta de consultas não é o suficiente para a demanda do município. Para que o quadro seja alterado é necessário ter mais CAPS:

— Nós temos uma boa estrutura para álcool e drogas. Mas não para os atendimentos de transtornos mentais. O caminho é abrir mais CAPS para podermos mudar a forma de receber as pessoas, diminuir a fila e focar no tratamento continuado. 

Segundo Marta, a previsão é de que uma unidade para adultos e outra para crianças sejam abertos até o primeiro trimestre de 2026. O município aposta que as estruturas irão desafogar as emergências psiquiátricas e as filas de espera

Estrutura de saúde mental de Porto Alegre 

A porta de acesso para o atendimento em saúde mental ocorre através das UBSs. No posto, o paciente é acolhido, avaliado e recebe o tratamento para casos de menor gravidade. Muitas vezes, o acompanhamento é feito pelo médico de referência da UBS, com apoio de equipes especializadas.

O município tem 132 postos e 24 Equipes Multiprofissionais (eMultis), que reúnem profissionais como psicólogos, fisioterapeutas e fonoaudiólogos. Também há oito equipes especializadas no atendimento ambulatorial de crianças e adolescentes e sete para adultos.

Casos de maior gravidade e que necessitam de acompanhamento continuado, são referenciados aos CAPS (veja aqui os endereços). Em Porto Alegre, as 16 unidades são administradas pela prefeitura, pelo Grupo Hospitalar Conceição, Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Instituto Brasileiro de Saúde, Ensino, Pesquisa e Extensão para o Desenolvimento Humano (IBSaúde) e a Associação Educadora São Carlos (AESC). 

Os centros psicossociais foram criados para substituir os antigos hospitais psiquiátricos. Além do encaminhamento pelas UBS, o acesso ocorre após internações hospitalares e de atendimentos em emergências. Segundo a prefeitura, a Capital conta com oito locais para urgência e emergência, 410 leitos em hospitais, equipes de serviço multidisciplinar e unidades de acolhimento.


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