Insegurança alimentar
"Vou fazer de conta que não é Natal": a saga de quem vai dormir por não ter o que comer na noite de 24 de dezembro
Assim como no Brasil, índices da fome melhoraram no Rio Grande do Sul, mas incerteza sobre a próxima refeição ainda é realidade para 1,7 milhão de gaúchos


A voz engasga, mas é preciso engolir o choro. Para quem tem de se mostrar forte diante de quatro meninas e dois meninos — com idades entre um ano e oito meses e 12 anos –, as emoções precisam ser contidas. A dona de casa Luciana, 30 anos, de São Leopoldo, é mãe e chora porque não tem comida para dar aos filhos. Na semana que antecede o Natal, ignorar a data é seu único subterfúgio:
— Vou fazer de conta que não é Natal, Vamos dormir e só.
Luciana (nome fictício usado nesta reportagem para preservar a identidade da mulher e dos filhos em situação de vulnerabilidade, conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente) não está sozinha nessa dor. Comer dignamente em 24 de dezembro é um privilégio que não alcança a todos. No Rio Grande do Sul, 14,8% dos lares enfrentam insegurança alimentar (entenda os conceitos abaixo), o que representa cerca de 1,7 milhão de pessoas. Os números são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE, divulgada em outubro.
O cenário, porém, já foi pior. Os dados do IBGE corroboram o que diz relatório de 2025 do Estado da Segurança Alimentar e Nutricional do Mundo da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO/ONU), que oficializou novamente a saída do Brasil do mapa da fome do mundo. O anúncio veio em julho deste ano.
Investimento em políticas públicas, aumento do salário mínimo, oportunidades de trabalho, programas de transferência de renda e de alimentos são responsáveis pelos resultados, segundo pesquisadores. O fortalecimento de cozinhas solidárias está entre as ações.
É uma dessas cozinhas que garante pelo menos duas refeições semanais para Luciana. A que ela frequenta fica a poucas quadras de casa. É a cozinha Marielle Franco, no bairro Arroio Manteiga.
Os potes vêm fartos. Dá para o almoço e a janta. O último cardápio contava com arroz, chuleta de porco, salada de repolho, alface cenoura e milho-verde.
Terça e quinta a gente sabe que vai ter o que comer. Nos outros dias, vai levando. Agora mesmo acabou o último litro de leite que tenho para a nenê. Às vezes, vem alguma cesta, alguma doação. A gente come hoje, mas não sabe se vai comer amanhã.
LUCIANA
Dona de casa, 30 anos, mãe de seis filhos
A situação da família de Luciana se agravou nos últimos três meses. A única renda que ela tem é em torno de R$ 1.200 do Bolsa Família, mas um problema cadastral envolvendo a matrícula de uma das crianças bloqueou a transferência do benefício. Luciana sustenta os seis filhos sozinha e não pode arrumar emprego, pois não há quem fique com as crianças. Um dos filhos desenvolveu um quadro de depressão. Além disso, ela e duas filhas têm medida protetiva contra seu ex-companheiro.
Outra situação extrema também obrigou a mãe a abdicar do próprio celular há poucos dias. Sem dinheiro e sem gás no fogão, teve de vender o aparelho para comprar um botijão. Conforme a dona de casa, a fome não chega com dia e hora marcados.
— Criança não entende muito, né? Tem fome e quer comer, não importa de onde vem. E eles também gostam de coisas de criança. Às vezes, passa o senhor do algodão doce aqui na rua, outras crianças ganham e eu não posso comprar. Dói — relata a mãe.
Para este Natal, Luciana só quer os filhos felizes e comida no prato. Os presentes, a família espera que venham por meio de cartinhas "enviadas ao Papai Noel". A mesma cozinha onde ela busca as refeições promoveu a ação que, além dos presentes, contará com uma confraternização especial às crianças. Terá cachorro-quente, refrigerante e bombom.
— Uma das meninas pediu boneca, um dos guris abriu mão do presente e pediu uma cesta de alimentos. Eu só quero ter uma comida para fazer para eles, não importa o que — conclui Luciana.
Má alimentação e seus reflexos

Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Paulo Niederle ressalta que a saída do Mapa da Fome foi fundamental, mas que não se pode ignorar pessoas vivenciando insegurança alimentar grave.
Niederle ainda se refere ao que considera uma "epidemia de saúde pública" relacionada à má alimentação, com implicação na elevação dos índices de obesidade e doenças crônicas não transmissíveis.
Estudos têm demonstrado, segundo o professor, que o grande problema são dietas com excesso de consumo de alimentos ultraprocessados. Esses mais baratos e consumidos por pessoas de baixa renda. Neste caso, as soluções são mais difíceis porque envolvem políticas inovadoras para ampliar o acesso a alimentos saudáveis.
Uma frente que tem mostrado bons resultados, segundo ele, é a Estratégia Alimenta Cidades, do Ministério do Desenvolvimento Social em parceria com municípios e organizações sociais. A ideia é identificar cada contexto por meio de entes públicos e privados fazendo com que a solução de um problema (a fome) não impacte na produção de outro (as doenças crônicas).
— É importante ter flexibilidade e parcerias amplas. Há situações onde o Estado não consegue sequer entrar, pois há entidades sociais e religiosas que já estão trabalhando. Então, parcerias são fundamentais. Por isso, as cozinhas solidárias têm chamado tanto a atenção como um instrumento que precisa ser fortalecido — exemplifica.
"Peru eu não faço porque é muito caro"
Também em São Leopoldo, a celebração da dona de casa Jociele de Camargo Borba, 36 anos, terá um sentido ampliado e mais otimista no próximo 25 de dezembro. Além do Natal, ela e a família irão celebrar a vida, o novo endereço e o recomeço.
Um pinheirinho foi comprado e luzinhas já enfeitam o imóvel de dois cômodos em madeirite, no loteamento Tancredo Neves.
Atingida pela enchente de 2024, Jociele morava próximo ao dique do bairro Campina. Ela perdeu a casa e os móveis. O mais importante, ela salvou:
— Perdi tudo de material, mas não perdi meus filhos. Ganhei aquele dinheiro do governo para comprar parte de uma casinha e aos poucos vou equipando. A comida compro um cestão de R$ 600, que pago em duas vezes. A mistura, carne, galinha, essas coisas, é mais caro, mas comemos o que tem.
Neste ano, ainda está em definição o que ela, a mãe e os dois filhos irão comer na data natalina. A certeza é de que não vai passar em branco.
Vou fazer o básico. Arroz, salada verde e, se der, vou assar até uma galinha no forno para a ceia. De sobremesa, uma salada de fruta. Peru eu não faço porque é muito caro.
JOCIELE DE CAMARGO BORBA
Cuidadora, 36 anos, mãe de dois filhos
Além de ganhar, por meio do Bolsa-Família, o valor R$ 1.200 por mês, ela conta com a renda extra do trabalho como cuidadora de outras duas crianças. Os filhos de Jociele têm 11 anos e dois anos. O pai do mais velho faleceu. O da menina mais nova não procurou mais a família.
Perfil social dos mais vulneráveis

Em geral, as pessoas mais vulnerabilizadas em situação de insegurança alimentar grave são mulheres negras, esclarece o professor da UFRGS Paulo Niederle, que também integra o GT Acadêmico na Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Isso porque há não apenas uma questão econômica, mas dimensões de raça e gênero associadas na explicação do problema.
Entre os fatores, estão a maior dificuldade desse público encontrar e manter um emprego, sobretudo no caso de mães solo. A maioria também reside nas periferias das cidades, distante dos locais de trabalho. Não raro, são submetidas a jornadas extenuantes entre o serviço e o deslocamento, de tal modo que nem sequer conseguem tempo para preparar os alimentos. Torna-se não apenas uma questão de custo, mas também de conveniência.
É importante não apenas pensar nas políticas, mas em como as pessoas acessam elas. Como e quando as pessoas vão conseguir se alimentar adequadamente. Isso envolve planejamento urbano, transporte, infraestruturas urbanas básicas.
PAULO NIEDERLE
Professor do Departamento de Sociologia da UFRGS
Acesso e qualidade do que se come
Para mensurar os níveis de insegurança alimentar, o conceito leva em consideração a quantidade de alimentos disponíveis somada ao consumo e ao total de calorias necessárias. O conceito de fome, segundo Juliano Sá, pesquisador e ex-presidente do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional do RS (2020-2024), pode ser usado com um sinônimo para insegurança alimentar grave. É não ter absolutamente nada para comer durante um determinado período.
A fome e a insegurança alimentar também podem ser entendidas pela intensidade e abrangência do problema. Fome é a sensação física de falta de alimento, quando a pessoa não tem o que comer. É uma condição imediata e grave. Já a insegurança alimentar refere-se à falta de acesso regular e seguro a alimentos adequados, seja por questões econômicas, sociais ou de disponibilidade.
Menor nível em 20 anos
No Rio Grande do Sul, o nível de insegurança alimentar total (leve, moderada e grave) caiu 22,3%. Em 2023, eram 2,2 milhões de gaúchos que viviam nesta condição. Atualmente, são 1,7 milhão.
No Brasil, no mesmo período, 2 milhões deixaram a insegurança alimentar grave. Hoje, são 6,4 milhões de pessoas, menor nível em 20 anos no país.
Entenda os níveis de insegurança alimentar*
- Leve – Consiste na incerteza se conseguirá realizar a próxima refeição ou deixa de realizar uma necessidade básica para poder se alimentar (em geral depende de amigos, familiares, doações e cozinhas solidárias)
- Moderada – Quando a pessoa não está se alimentando em quantidade ou qualidade o suficiente, ou seja, já convive com a fome (exemplo: quem não faz alguma das três refeições básicas ao dia ou quem está se alimentando apenas com produtos alimentícios ultraprocessados. Exemplo: macarrão instantâneo, biscoito recheado, etc)
- Grave – Quando a pessoa passa um dia todo sem se alimentar. Situação clássica da fome
*Fonte: Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA)