Mal da mente
Bipolaridade: aprenda a identificar os sintomas e saiba como o transtorno afeta a vida de pacientes e familiares
Transtorno caracterizado pela alternância dos estados de euforia e de depressão acomete 4% da população mundial
- Quando está em surto, ela se perde. Fala muito, aceleradamente, e, depois, cai na depressão.
- Ela fica fora de si, descontrolada, agressiva. Mas, em outros momentos, está bem animada.
Um destes relatos é ficção. Outro, vida real. Mas qualquer semelhança não é mera coincidência. Ambos exemplificam um transtorno que acomete 4% da população mundial: a bipolaridade, doença caracterizada pela alternância dos estados de euforia (tecnicamente denominada de mania) e de depressão.
Na primeira frase, a atriz Bárbara Paz, que dá vida à Nelita em A Regra do Jogo, fala sobre a personagem, através da qual o autor João Emanuel Carneiro lançou luz à doença que, até ser diagnosticada, causa muito sofrimento. Na segunda, uma dona de casa descreve a rotina da filha que faz tratamento contra o transtorno há dez anos.
Diário Gaúcho conta a história de vida desta mulher, cuja identidade será trocada para preservá-la, e mostra como a bipolaridade desequilibra não apenas as emoções de quem tem o transtorno, mas também suas relações sociais, afetivas e profissionais, interferindo na realidade de todos que a cercam.
Alternância de humor
Na novela das nove, Nelita diz que tem duas personalidades: uma quando está sóbria, outra quando bebe. A psiquiatra Márcia Kauer SantAnna esclarece:
- A alternância de humor deixa a pessoa diferente. Quando está eufórica, fica expansiva, desinibida. Quando fica deprimida, mais tímida e retraída. Mas não são duas personalidades, são características distintas da mesma pessoa que ficam em evidência de acordo com o momento.
Nelita usa o talento para a pintura como escape. Na vida real, a doença já foi ligada à maior habilidade criativa.
- Geralmente, são pacientes brilhantes e bem posicionados nas suas carreiras. Mas estudos cognitivos mostram que, depois de episódios repetitivos, não atingem mais o desenvolvimento pleno como poderiam - explica Márcia.
Quando a vida vira uma Montanha-russa de emoções
Que a vida é feita de altos e baixos, todo mundo compreende. Mas foi aos 18 anos que Juliana, jovem do Bairro Cascata, em Porto Alegre, percebeu que as suas variações de humor eram intensas e imprevisíveis. Como na maioria dos casos, começou tratamento para depressão.
- Eu sentia muita tristeza, me trancava no quarto e chorava. Tinha uma paixão não correspondida e achava que era normal me sentir assim - relata ela, hoje com 30 anos.
Mas o que parecia normal começou a ganhar proporções incomuns. Fatos corriqueiros despertavam raiva e agressividade com a mesma intensidade com que outros, igualmente triviais, provocavam uma agitação perturbadora. Até que, aos 19 anos, a então estudante teve um surto e foi levada a uma clínica particular.
A mãe, uma dona de casa de 56 anos, e o pai, motorista, 62, não queriam interná-la e optaram por tentar um tratamento em casa. Arcavam com altos custos de consultas com psiquiatras e medicamentos que provocavam efeitos colaterais violentos.
- Não tinha sono. Cheguei a ficar sete dias sem dormir. Tinha delírios e alucinações. Um dia, meu corpo enrijeceu, perdi os movimentos do rosto, a garganta paralisou - lembra a paciente.
Aos 20, veio outra crise, que, desta vez, colocou sua vida em risco, levando à primeira e inevitável internação. No HCPA, foi, então, diagnosticada com bipolaridade, deu início ao tratamento e passou a adquirir os remédios pelo Sus.
Panela de pressão
Ao longo desses dez anos, foram quatro internações, a última, em 2009. Hoje, ela toma dois tipos de remédios, somando nove comprimidos por dia. As reações ainda existem, porém, são menos agressivas.
- Sinto cansaço, desânimo, o corpo trêmulo e inchado. Nesses anos, engordei 40kg - conta.
A mãe reforça:
- Ela era muito vaidosa, mas, com a doença, perdeu completamente a vaidade.
À primeira vista, a jovem cordial, de gestos delicados e fala mansa não aparenta ser capaz de ter rompantes de explosão. Mas, consciente da sua condição, ela admite:
- Só quem convive comigo sabe como eu sou. A relação com a minha família é conturbada, todos são geniosos, e comigo, é oito ou 80. Bota tudo isso dentro de uma casa, e vira uma panela de pressão pronta para explodir!
Intensidade
De acordo com a vice-presidente da Associação Brasileira de Transtorno Bipolar (ABTB) e professora de psiquiatria da Ufrgs, Márcia Kauer SantAnna, o que difere as sensações normais de alegria e tristeza da euforia e depressão é a intensidade e a associação de uma série de fatores, como os vivenciados por Juliana, por exemplo.
Agitação, inquietude impulsividade, fala e pensamentos acelerados, intercalados com fases de desânimo profundo, falta de energia e até de sono, tudo em grande intensidade, podem ser indícios do transtorno bipolar. Ainda assim, o diagnóstico, que é clínico e baseado no histórico do paciente, pode demorar anos.
- Normalmente, o primeiro episódio é precedido por algum fato estressor. E o quadro depressivo acaba associado a este evento. Mas aquilo está sendo desencadeante de um transtorno bipolar que estava latente - justifica a médica.
Isolamento social
Lidar com o comportamento de um bipolar não é tarefa fácil. Exige paciência, dedicação e tolerância. Que o diga a mãe de Juliana. Sob o olhar atento da filha, ela descreve a rotina dentro de casa:
- Ela vive as quatro estações do ano em um único dia. Tem vezes que levanta bem, mas, em cinco minutos, já está estranha e muda de reação. Te xinga, reclama, e, mais tarde, coloca música e vai dançar.
Esta instabilidade emocional dificulta a convivência social e destrói as relações interpessoais. Foi assim que, longe de ter uma adolescência como as meninas da sua idade, Juliana viu os amigos tornarem-se cada vez mais raros. Hoje, passa os dias na companhia da família, em casa, dividindo-se entre a sala, onde costuma assistir a programas de humor na tevê, e o quarto, onde gosta de ouvir música cercada por bonecas e ursos de pelúcia que lhe fazem companhia.
- Eu tinha muitos amigos, mas sei que é difícil conviver com uma pessoa como eu. A maioria não tem paciência. Minha família não me abandonou porque é minha família - conta a jovem.
E, de fato, vem da família o suporte e estrutura para que ela siga em frente. É a mãe quem faz a romaria, todo mês, para buscar os remédios da filha.
- Quando ela tem que ir ao médico ou a uma entrevista de emprego, dá diarreia, vômito, tremedeira... Eu tenho que ter calma pra convencer, pra incentivar, mostrar que é importante pra ela. Faço tudo que posso - diz a dona de casa.
Trabalho comprometido
Profissionalmente, também ficou cada vez mais difícil. Juliana, que atualmente recebe auxílio doença do INSS, lista, pelo menos, dez empregos pelos quais passou. Na maioria deles, ficou menos de seis meses.
- Eu tinha crises, e as pessoas notavam. Eu não percebia como estava tratando os meus colegas, com agressividade, alterada - lembra.
Confrontar o paciente quando ele está alterado não é a melhor atitude, pois só agravará o quadro.
- O familiar tem que escolher as batalhas, e a principal é fazer com que a pessoa procure tratamento adequado. A família deve se unir no intuito de convencer o ente querido a procurar ajuda - diz a psiquiatra Márcia.
Tratamento: sus oferece o básico
O tratamento para a bipolaridade é a longo prazo, essencialmente através de medicação e para a vida toda. Também é recomendado acompanhamento psicológico, que pode ajudar a evitar e combater os fatores estressantes, além de lidar com os sintomas da doença.
- Se fizer o tratamento adequado, é possível levar uma vida normal - garante Márcia.
Geralmente, o tratamento inclui uma combinação de medicamentos, sendo mais usuais os estabilizadores de humor, à base de lítio, anticonvulsivantes e/ou antipsicóticos.
O Sus oferece gratuitamente os remédios para o tratamento básico.
No entanto, quem não responde bem a eles tem mais um problema a enfrentar. Medicamentos de primeira linha, que atenuam consideravelmente os efeitos colaterais, custam caro e não estão disponíveis na rede pública de saúde.
- Já foi publicado no Diário Oficial que novos remédios seriam incluídos, mas, na prática, isso ainda não acontece - explica Márcia, reforçando:
- Para o tratamento mais simples, alguns medicamentos podem variar de R$ 50 a
R$ 100, enquanto outros vão de R$ 600 a R$ 800. Mas, em casos mais graves ou quando é preciso dobrar a dose, vai de R$ 1,2 mil a R$ 1,6 mil por mês.
Desenvolvimento da doença
/// Os primeiros sintomas da bipolaridade aparecem, em geral, em pessoas de faixa etária entre 18 e 35 anos.
/// As duas principais classificações da doença são: "tipo 1" e "tipo 2".
// O primeiro é mais grave, com episódios que incluem psicose, quebra de realidade, quadros de paranoia e alucinação.
/// No segundo, o quadro é mais leve. As euforias não são tão proeminentes e predominam episódios depressivos, que se alternam em menor número e intensidade.
/// Ainda existem casos que apresentam sintomas bipolares mas que não preenchem todos os critérios científicos e, por isso, são classificados como "não especificado" ou pertencente ao "espectro bipolar".
/// As mudanças de humor podem ser bruscas, mas a duração de cada episódio, não. A depressão, geralmente, é igual ou superior a 15 dias, enquanto a euforia dura, pelo menos, uma semana. Tudo isso é intercalado com fases de normalidade.
Causas
/// Há um alto componente genético (quando a mãe, o pai ou irmãos têm o distúrbio), especialmente no tipo 1 da doença.
/// Variações hormonais do ciclo menstrual e do pós-parto podem desencadear crises nas mulheres.
/// Fatores ambientais experimentados na infância, como maus-tratos, negligência por parte dos pais, abuso sexual e até uma vida desorganizada, sem horários nem rotina, favorecem a bipolaridade ou novas crises.
/// O uso de estimulantes, anfetaminas e outras drogas pode antecipar a idade de apresentação dos sintomas.
Fique atento aos sinais
Observe com atenção os indícios de que as oscilações de humor podem representar sintomas de bipolaridade.
/// Prejuízo no desempenho no trabalho e nos estudos.
/// Interferência nos relacionamentos sociais, familiares e profissionais.
/// Sensação de desconforto, agitação ou angústia excessivas que pode provocar intenção suicida.
/// Comportamentos impulsivos que o coloque em risco como uso de drogas, sexo inseguro e direção ostensiva
/// Sono e ritmo biológico desregulados. Dificuldade de estabelecer relação com horários e rotinas do resto das pessoas da família.
Onde procurar ajuda
/// No Hospital de Clínicas de Porto Alegre (Rua Ramiro Barcelos, 2.350, Bairro Santa Cecília), funciona o Grupo de Apoio a Pacientes Bipolares (GAPB), que, uma vez por mês, oferece palestra gratuita com pesquisadores do grupo. Funciona na sala 160 do hospital, é aberto ao público e gratuito.
/// Todos os postos de saúde fazem encaminhamento ao ambulatório do HCPA, que têm, atualmente, 300 pacientes em atendimento. Eles passam por uma triagem antes de serem repassados ao ambulatório de transtorno bipolar.
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