Com a Palavra
Ney Latorraca: "Há um retrocesso. 'TV Pirata' não iria ao ar se fosse concebido hoje"
Homenageado no mais recente Festival de Gramado, ator relembra sua trajetória, a natureza de alguns trabalhos, perspectivas futuras para a carreira e, ainda, alguns arrependimentos políticos
Aos 74 anos, o ator Ney Latorraca é um profissional versátil. Natural de Santos (SP), transitou por teatro, TV e cinema – isso após trabalhar em banco, em loja de roupas e de pedras semipreciosas. O começo da carreira artística foi nos palcos, em espetáculos como Jesus Cristo Superstar (1972) e O Mistério de Irma Vap (1986). No cinema, fez mais de 20 filmes. É mais conhecido do público pelas participações na TV, em minisséries como Anarquistas, Graças a Deus (1984), novelas como Estúpido Cupido (1976) e humorísticos a exemplo de TV Pirata (1988-89). Homenageado no 46º Festival de Gramado, em agosto passado, e em cartaz com o espetáculo Vamp - O Musical (em que retoma seu clássico papel do vampiro Vlad), ele conversou com GaúchaZH na serra gaúcha. O papo rendeu tanto que aceitou falar de novo dias depois, por telefone, para aprofundar algumas questões – sobre sua trajetória, a natureza de alguns trabalhos, perspectivas de carreira e arrependimentos políticos.
Ao longo das décadas, o que te motivou e te motiva a atuar hoje em dia?
Represento para sobreviver. Para mim, trata-se da arte de representar para sobreviver. Mesmo. Sou filho de um casal muito pobre, e por meio de números que eu fazia, seja das minhas graças quando criança ou cantando, sapateando e dançando, eu conseguia alguma coisa para levar para meus pais e ter comida em casa. Depois, virou uma coisa que deu certo, vitoriosa: eu pude sobreviver no meu país, conseguindo fazer sucesso e trabalhando com quem gosto. Muita gente me pergunta se prefiro cinema, teatro ou televisão. Não sei. Para mim, o que importa é o projeto. E as pessoas que estão envolvidas. Prefiro fazer um bom seriado a uma novela medíocre, mas prefiro uma boa novela a uma peça medíocre.
Por favor, conta mais dessas dificuldades na infância.
Passei fome, mesmo. Para mim, a vida é lucro. Meus pais trabalhavam em um cassino, que fechou, deixando-os desempregados. Meu pai, Alfredo, era crooner (cantor de boate), e minha mãe, Nena, era corista, descia escadarias com plumas. Essa natureza artística deles e as dificuldades por que passamos me acompanharam a vida inteira. Eu precisava retribuir, porque eles abriram portas para mim. E consegui. Eles viram meu sucesso antes de morrer. Até pelo que passaram, seria mais lógico se eu não repetisse a carreira artística e fosse médico ou engenheiro, mas quis ser ator.
Que tipo de formação você procurou?
Estudei na Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (Eca/USP), a melhor escola da época para se ter uma base completa de trabalho, conhecendo desde as histórias do teatro grego até aspectos técnicos como maquiagem, esgrima, canto. Me senti poderoso para poder escolher as coisas que queria a partir dali. Já estava de olho nos diretores e autores com quem queria trabalhar. Nos anos 1970, fiz Hair, Jesus Cristo Superstar e Lola Moreno – musicais que me deram a chance de cantar e dançar. Trabalhei em clássicos de Shakespeare, vários. Depois, atuei em filmes de Luiz Carlos Lacerda, Carla Camurati, André Klotzel, Ugo Giorgetti. Você vira uma soma das pessoas com quem conviveu. Você monta sua história assim. Tanto que, quando você perde uma dessas pessoas, é um pedaço seu que vai embora. Morri um pouco, por exemplo, quando morreu a (atriz) Lílian Lemertz, o Walmor Chagas e, mais recentemente, a Marília Pera, minha madrinha do teatro.
E a experiência de ter outros trabalhos antes de atuar?
Comecei trabalhando como atendente da Santa Casa, em Santos, com 14 anos. Fui bancário, depois, vendedor – cheguei a ser gerente de uma loja de roupas femininas –, mas, paralelamente, já fazia teatro de arena. Em 1965, atuei em Reportagem de um Tempo Mau (1965), montagem de uma peça de Plínio Marcos que a ditadura militar censurou. Em seguida já vivia de trabalhos na Rádio Tupi, na Rádio Record, fotonovelas, baile de debutantes. Foi quando me profissionalizei. Fazendo de tudo para sobreviver do que eu gostava de fazer.
Fotonovelas e bailes de debutantes?
Fiz de tudo o que você puder imaginar que um ator brasileiro pode fazer. Sou um ator brasileiro. Quando comprei um apartamento e fiz um financiamento para pagá-lo em 40 anos, tive de me esforçar muito para juntar dinheiro. Meus contemporâneos todos fizeram fotonovela e também aqueles filmes em que você sai correndo da Boca do Lixo com a mesma cueca (risos). Faz parte, não tenho pudor. Meu pudor é fazer uma coisa de que não gosto.
Por que, em 2017, você anunciou sua aposentadoria, em pleno lançamento de Vamp – O Musical? Em seguida, no programa Altas Horas, da Globo, você brincou dizendo que pararia mesmo, mas que era para te chamarem depois.
Confesso que aquilo aconteceu em um dia em que eu estava de muito mau humor. Um mau dia para a estreia. Vi que o microfone não estava funcionando direito e que o cara da técnica não me acompanhava. Pensei que era melhor largar tudo de uma vez, por um instante pareceu não fazer mais sentido. Mas eu também queria chamar atenção da equipe técnica, que não estava se comportando bem. É difícil, às vezes há problemas. Mas acabou sendo uma frase de efeito que funcionou.
Se o artista aposta na inteligência do público, não passa do limite.
NEY LATORRACA
Ator
Ajudou a promover o musical.
Sim. As pessoas ficaram pensando que era meu ato final. Não foi.
Você integrou o elenco da novela O Tempo Não Para, mas acabou pedindo para sair. O que houve?
Estava muito cansado. Só isso. Mas estou aberto a fazer novelas, tenho contrato com a Globo até 2022.
Seu primeiro sucesso na teledramaturgia foi o Felipe, um personagem mudo, em Escalada (1975). A que você atribui a grande popularidade dele?
Como eu era muito magro e tenho 1m80cm, parecia, no ar, que era uma pessoa muito frágil. O público feminino queria, digamos assim, pegar para tomar conta. Era um personagem carente, estava sempre na rede, com um livro na mão. Foi virando um fofo. As mulheres enlouqueceram, foi isso o que aconteceu. Daí ele começou a aparecer mais. E eu não queria que isso tivesse acontecido.
Por quê?
Porque ele passou a falar muito. Preferia ficar quieto, pois eu estava fazendo duas peças em São Paulo. Ia de trem ao Rio para gravar a novela. Era uma rotina muito cansativa. Se não tivesse tanto texto, seria melhor. Quando as falas aumentaram, o trabalho aumentou, e o cansaço também. Veja como são as coisas: entrei na Globo naquele momento, como um trabalho único, contrato de três meses. E estou lá há 43 anos.
Em seguida, em 1976, você viveu Mederiquis, um roqueiro playboy de Estúpido Cupido, que fez sucesso entre os jovens.
As pessoas ainda me chamam de Mederiquis! Dá para saber a idade das pessoas pelo personagem que me chamam na rua (risos). Às vezes alguém diz: "Estou do lado do Barbosa! (personagem da TV Pirata)". Falam do Vlad (Vamp), do Quequé (Rabo de Saia) e do Volpone (Um Sonho a Mais). Gosto disso, de não ser só eu, o Ney, a estar ali com as pessoas, mas toda uma história que eu construí, uma soma do que fiz e ficou na memória afetiva do público. Sou um ator popular e gosto disso. Gosto de andar de metrô, e não em um carro blindado. Minha vida não está blindada; está aberta. Está certo que às vezes quero ficar em casa, no silêncio. Mas gosto do contato com as pessoas.
Como é um dia normal para você?
Levanto, ando pela Lagoa (Rodrigo de Freitas), volto para casa e leio. Por exemplo, pego um livro. Ele cita um filme do François Truffaut. Vou atrás daquele filme. Uma coisa vai levando a outra. É um estudo, para mim. É conhecimento. Também gosto de estar com os jovens. Agora, com os atores bailarinos de Vamp – O Musical: me sinto rejuvenescido com eles. Como um vampiro (risos).
Você sempre fala com entusiasmo sobre ter atuado na minissérie Anarquistas, Graças a Deus (1984). Por que esse trabalho foi marcante?
Era uma obra adaptada de Zélia Gattai – que, depois que foi para o ar, virou um best-seller. Era a primeira vez que eu fazia um papel de pai de cinco filhos, casado, e isso me transformou. Eu estava com 39 anos. Era um momento de mudança – que veio impulsionada por esse trabalho. E a minissérie fez muito sucesso, inclusive no Exterior, principalmente na Itália – falávamos o dialeto vêneto, tínhamos medo de que as pessoas não entendessem o que estávamos falando, mas, não, a imagem é muito mais forte do que as palavras. Logo em seguida vieram Rabo de Saia, Memórias de um Gigolô, Grande Sertão: Veredas, a estreia da Ópera do Malandro, tudo mais ou menos no mesmo momento, que acabou sendo um momento de transformação para mim.
Estou achando a barra pesada. O nível está muito baixo, a polarização e a violência verbal prejudicam o país. O que defendo é a união dos artistas para derrotar isso. A arte contra a barbárie.
NEY LATORRACA
Ator
Como você vê as mudanças pelas quais a produção de TV e cinema tem passado, sobretudo com as plataformas de streaming?
Acho saudável. É o futuro. Dá mais campo de trabalho para nós todos.
Há um culto à TV Pirata, humorístico de 1988 no qual você interpretou o icônico Barbosa. A que você atribui isso?
Pois é, estão até pensando em fazer TV Pirata – O Filme. O segredo, ali, foi o Guel Arraes e o Daniel Filho terem juntado autores como Luis Fernando Verissimo, Miguel Falabella, Mauro Rasi, Patricya Travassos, mais toda a turma do Casseta & Planeta, e pegar muitos atores do teatro – Cristina Pereira, Débora Bloch, Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães e eu. Deu liga. Eu nem ia fazer a TV Pirata, quem me chamou foi o Marco Nanini. Nós estávamos fazendo uma peça, e ele me avisou de que estava faltando um ator. Me indicou. Naquela época, a Globo estava me guardando para fazer os galãs. Mas acabei fazendo o Barbosa.
Como surgiu esse personagem?
Em uma reunião, decidimos que o Diogo Vilela faria uma homenagem ao Osmar Prado, enquanto a Louise Cardoso homenagearia a Renata Sorrah, a Claudia Raia, a Christiane Torloni e eu, a Walmor Chagas e a Carlos Alberto Riccelli. Na mistura de homenagens a esses dois, deu o Barbosa (risos). Era uma ideia geral de fazermos caricaturas que, ao mesmo tempo, fossem homenagens.
Você fez muitos papéis cômicos. Hoje, a comédia popular é um gênero bastante difundido no cinema nacional. Como você vê essa onda?
Acho saudável. A gente lutou pela democracia para ter um leque aberto de opções. Há essas comédias que lotam os cinemas e, ao mesmo tempo, há os filmes dos festivais, como Benzinho e Ferrugem (ambos em cartaz). Tem um equilíbrio aí. Uma coisa ruim é que muita gente espera os filmes aparecerem em outras plataformas, porque, no atual contexto de violência e dificuldades financeiras, não é fácil ir até o cinema.
Não te interessa fazer uma comédia popular?
Se me chamarem, faço, sim. Me chamaram para o Sai de Baixo e para o filme Crô, mas não tive tempo.
Ator não pode ter frescura, nesse sentido?
Não. Para o meu tipo de ator, não. Tem ator que se fecha em uma casinha. Eu quero me exercitar em todos os gêneros. Acho que fazer as pessoas rirem é mais difícil do que emocioná-las. Comédia é mais nobre. É preciso ter uma base, uma estrutura muito grande, caso contrário, fica sem graça, fica bobo. É muito fácil não acertar o tom. Marilia Pêra me falava: "Ney, humor é matemática, quase científico. Você joga ali ao vivo e a plateia reage na hora". Se você não fizer bem feito, vão achar que você está sendo forçado e não rirão. Tem que ser muito bem estudado, como se fosse uma prova.
Hoje em dia, muitas piadas são discutidas e inclusive evitadas. Há quem fale em uma onda do politicamente correto. Como você vê esse contexto?
Há um retrocesso. É contra o charme, contra a liberdade, contra tudo. TV Pirata não iria ao ar se fosse concebido hoje. Tudo agora você tem que pensar para falar. Você pode ser massacrado por elogiar ou criticar algo. Há um policiamento muito forte, uma coisa tão chata, como se tivéssemos voltado à pré-ditadura, antes de 1964.
Isso influencia no seu trabalho?
Não tanto. Faço sempre o que quero. Minha boca não vou tapar de jeito nenhum. Passei anos e anos lutando para não haver censura. Já foi o tempo de atuarmos com a fiscalização dos censores. Não quero isso de volta, não.
É importante que não se passe do limite do respeito aos outros ou, para você, uma piada é só uma piada?
O artista sabe, tem de saber quais são os limites. Na verdade, o limite é dado pelo artista. Eu não vou fazer uma grossura ou atropelar alguém para obter uma graça. Não é minha praia. Aposto na inteligência do público. Se o artista aposta na inteligência do público, não passa do limite.
Nestes tempos de incertezas e muitos embates políticos, qual é o papel do artista?
Posso responder por mim. Eu quero fazer arte, sem ser porta-voz de discursos ideológicos. O nosso trabalho é a grande arma que temos. E ela está sendo contestada, muitas vezes. Sinceramente, estou achando a barra pesada. O nível está muito baixo, a polarização e a violência verbal prejudicam o país. O que defendo é a união dos artistas para derrotar isso. A arte contra a barbárie. Só que a cultura é o primeiro lugar de onde cortam verba. É o retrato dessa contestação, dessa fragilidade da condição do artista perante a sociedade. O incêndio do Museu Nacional foi simbólico: representa o sucateamento da nossa cultura, que por sua vez é o sucateamento da sociedade como um todo. Os artistas são privilegiados, entre aspas, nesse sentido: conseguem ver de perto, de dentro o que está acontecendo. São testemunhas do sucateamento... Eu ando pelos teatros do Brasil e percebo o que está acontecendo com nossos equipamentos culturais. É o retrato do nosso sucateamento social.
Em 2012, você ficou 47 dias internado, após complicação em uma cirurgia para retirada de um cálculo da vesícula. Como foi essa experiência?
Foi como se eu tivesse ido e voltado, agora para uma segunda vida, uma segunda chance. Mudou tudo. Profissionalmente também: não me preocupo tanto com bobagens. "Ai, meu nome tem de ser preservado." Por quê? O que a gente vive no cotidiano é que é importante. Tomar banho, poder se enxugar, mexer uma colherinha na xícara: eu vivi, nesse período de internação, a impossibilidade de fazer tudo isso, porque perdi os movimentos de todo o corpo. E aí passei a valorizar mais as pequenas coisas do dia a dia.
Aos 74 anos, que tipo de trabalho te atrai mais atualmente?
Não tem um tipo específico, uma linguagem única. Gosto de variar. A minha preferência é sempre pelo projeto e pelas pessoas que estão envolvidas com ele. Quero trabalhos que me façam feliz, eu quero é ser feliz. Vamp – Um Musical, para mim, é só divertimento. Não tem a pretensão de querer mudar a história do teatro, mas faz eu me sentir bem. E é um musical 100% brasileiro, diferentemente de todos os que fiz – que eram, em sua maioria, adaptações de produções norte-americanas.
Depois de Vamp, o que você pretende fazer?
Estou envolvido com um documentário sobre a minha carreira, sobre o qual não posso falar nada ainda. E me convidaram para fazer um monólogo, contando coisas minhas e batendo um papo com a plateia. Vamos ver no que vai dar.