Entrevista
Fernanda Montenegro: "A cultura de um país é o que o homem pode aspirar de transcendência"
Atriz fala sobre gravação em família de episódio da série"Amor e Sorte", que estreia nesta terça (8), na RBS TV, e sobre momento político do país
Prestes a completar 91 anos (em 16 de outubro), Fernanda Montenegro revela que fez uma "forte análise de consciência" nos últimos quatro meses de isolamento social. E tal processo se deu em família, por conta das gravações de Gilda e Lúcia, o primeiro do seriado Amor e Sorte, que estreia nesta terça-feira (8), às 22h45min, na RBS TV.
Na trama, Fernanda vive Gilda, que é levada pela filha Lúcia (Fernanda Torres) a uma casa em região isolada, para que fiquem seguras em meio à pandemia do coronavírus. Com personalidades opostas, e depois de anos sem contato direto, as duas entram em confronto durante a convivência. O episódio é um projeto em família. Foi gravado na casa da região serrana do Rio de Janeiro onde Fernanda cumpre o isolamento social ao lado da filha Fernanda Torres, do genro Andrucha Waddington, que assina a direção, e dos netos. Em entrevista a GZH, por videoconferência, a atriz destaca o quanto Amor e Sorte a ajudou a repensar sua vida e fala sobre o atual momento do país.
Este episódio fala sobre amor, perdão e relações familiares. Tem alguma questão que você reflete em sua própria vida?
Esse especial cravou para sempre um momento de realização artística, de comunhão familiar e de aceitação de uma nova possibilidade de sobrevivência diante de uma tragédia como esse vírus que está no mundo. Deram um espaço para a gente poder ir para a natureza e foi tudo consumado na série pelo acaso. E o acaso sempre tem a última palavra, como diz a Simone de Beauvoir. A gente tem os filhos, que vão para as suas vidas, tomam seus rumos, mas nesses quatro meses juntos nos encontramos de uma forma amorosa mesmo, essencial, muito humana. Isso tem um pouco na feitura da nossa série. E saímos mais completos, mais experimentados diante da vida e da sobrevivência nesse momento.
O que estamos enfrentando a ajudou a construir sua personagem?
Ajudou sim. No roteiro, a ação age sobre o seu excesso diante da vida, na sua atividade ou no seu emocional. À medida que você recua desse projeto de ação e resultado, vai para o meio do mato e vê que pode viver sem aquilo tudo, sem aquela ansiedade de produtividade, de exibição da sua fome de talento e de produção. Vamos recuar? Não acho que nas posições fundamentais, como física e culturalmente, mas a gente está meio desesperado e esse vírus está fazendo a gente pensar a respeito. Depois da (gripe) espanhola, por incrível que pareça, vieram Hitler e Mussolini, então precisamos ter cuidado com o que está vindo aí. Em volta, está muito ruim em matéria de política, de atendimento social, de tudo.
Estamos vivendo em um momento de tensão, incerteza e vendo pessoas tristes. O humor é uma saída para enfrentar tudo isso?
O humor traz o raciocínio em cima da dor. E não é que pare de sentir (dor), mas isso te leva à ação, sair da toca e ir adiante. Acho que no momento está faltando o humor que seja uma defesa e também uma arma sadia. Penso que talvez fosse legal fazer um trabalho conjunto como o (jornal carioca) Pasquim, pegando humoristas desta estirpe, em uma frente não tão individualizada, mais aglutinada. Fizemos um pouco disso no nosso episódio de Amor e Sorte.
Você falou recentemente que Brasil vai vencer esse atual momento pela arte. A pandemia será um ponto de transição para maior valorização da arte no país?
Essa pandemia vamos deixar de lado. A condenação ao redor da cultura é uma imbecilidade, é uma pretensão, é um retrocesso gigantesco e trágico, porque nós (os artistas) não vamos acabar. A cultura de um país é o que o homem pode aspirar de transcendência. Não pode viver sem essa transcendência, nem quando ele saiu da gruta, sempre se expressou de forma além da praticidade, da produtividade, isso não deixa de ser cultura. Deixa a imbecilidade se propor, estamos completamente vivos, atuantes e não deixamos de existir. Não seremos os que vão ficar no fundo da terra, não seremos mesmo. É um ciclo que vai passar. Estamos produzindo com a maior dificuldade, sob maior interferência. Isso já aconteceu muitas vezes na história. Não sei porque chegamos a esse ponto, mas somos imorredouros e não estou assustada. É só ter paciência. A nossa transcendência cultural é viva, latente e produtiva.
Fala muito nesse período na palavra reinvenção. Como tem observado esse processo?
Nesses meus anos de vida, nunca vi algo assim, mesmo no período militar. O que se criou lá, em um tempo de contestação, é algo extraordinário em todas as áreas das artes. Nenhum regime ditatorial alcançou isso que estamos vivendo nesse momento com o Congresso aberto, é um momento mágico negativo (risos). É só esperar, não vai durar, não tem como durar. Há um corte em toda e qualquer possibilidade de criatividade artística no país, nenhuma zona da criatividade tem algum prestígio durante o atual governo. Tivemos isso com o Congresso fechado. Não vamos ficar no meio do caminho, é uma questão de tempo.
Você já trabalhou com Jorge Furtado (que assina a criação da série) em outros projetos. Que características dele destaca?
O Jorge é um cara de uma humanidade comovedora, ele está na vida, no encontro do ser humano com outro, todo seu talento de criador é voltado para humanidade, humanismo, para a consciência social. Sempre com um humor muito criativo. Eu tive o prazer de trabalhar com ele e sua equipe e estou às ordens. A hora que quiser, se eu estiver andando e falando, pode contar comigo.
Que balanço faz desse últimos meses?
A cada dia, uma nova era. É exaustivo isso, e imagina com a minha idade. Seria bom se a bendita vacina aparecesse em setembro mesmo, seria uma esperança, nova vida. Que venha até o Natal, como presente, porque eu não tenho muito tempo. Os vivos da minha idade ou perto disso, estamos apreensivos. Queríamos viver em um mundo diferente antes de ir para outro lugar. Há esperança de que vamos ter chance, então a gente acorda e canta. É isso.