Adeus à voz do milênio
Cantoras gaúchas falam sobre a importância de Elza Soares: "Cumpriu sua missão como artista e mulher negra"
Cantora morreu nesta quinta-feira, aos 91 anos, de causas naturais
Eleita a "voz do milênio" pela BBC, Elza Soares, que morreu nesta quinta-feira (20), deixou um grande legado na música e na sociedade. Mulher negra, vinda da periferia e com uma história cheia de adversidades, ela foi exemplo para diversas gerações e lutou para ser reconhecida e ouvida.
GZH pediu o depoimento de cantoras gaúchas sobre a influência e a importância da artista na vida delas. Confira a seguir:
Andréa Cavalheiro
"Elza viveu de luta e amor, ressignificou com a sua vida a representatividade da mulher preta num país que nos sexualiza e nos objetifica. A sua voz era o eco das vozes de toda a nossa ancestralidade que cantava 'lata d'água na cabeça' e chegou aos 91 anos consagrada como rainha! Para Elza, era importante estar com os nossos, com os gays, com os jovens, com o povo. Seu timbre de voz era o povo cantando, voz rasgada na garganta.
Certa vez, num hotel da serra gaúcha, Elza tomava seu café e me atrevi a atrapalhar aquele momento matinal, pois, como fã que sou, não poderia deixar passar o momento!
— Com licença, Elza. Desculpa te incomodar na hora do café, mas tu pode me dar um autógrafo?
Sabe o que ela me disse?
— Oh, minha filha, já tomou café? Senta aí!
Esta era Elza, a mulher do início até o fim do mundo!"
Camila Toledo
"O que mais me chamava atenção na Elza era a capacidade de sempre se atualizar e se manter sendo uma artista de referência para toda a música popular brasileira, não só para as mulheres negras. E, quando eu comecei a cantar, eu estava muito em busca de mulheres inspiradoras, sobretudo mulheres negras e mulheres que, depois dos 30 anos, ou tinham começado a caminhada ou seguiam a sua caminhada, trazendo sempre novidade e se atualizando, não desistindo do mercado por conta da idade e por conta das novas levas que vinham aparecendo. E ela foi uma das pessoas que eu tive como inspiração, não só para montar repertório, mas também com relação a isso, essa profunda característica da Elza de nunca desistir.
Ela tem uma vida que inspira muito, sobretudo porque ela acreditou na arte como uma possibilidade de salvar ela dos horrores que ela vivia. E a arte salvou ela, e salvou mais de uma vez. A arte mantinha ela viva e ela dizia que queria cantar até o fim. Então, é muito bonito isso.
A gente perde a Elza como uma figura corpórea, uma pessoa que está aqui respirando o mesmo ar que a gente, mas isso que a Elza foi, esse signo de alguém que nunca desiste, de alguém que acredita na arte como possibilidade de te salvar, acho que isso não vai morrer nunca. Ela imprimia uma emoção nas coisas que ela cantava não só pelos recursos que ela utilizava, que faziam dela uma cantora diferenciada mesmo, mas porque me parece que ela buscava viver intensamente cada letra. Algumas letras que ela cantou eu nunca consegui ouvir na voz de outras pessoas com a mesma profundidade, com a mesma sensação de alguém entregando o corpo inteiro para aquela letra. Meu Guri é uma delas, A Mulher do Fim do Mundo, A Carne Negra."
Loma
"Elza Soares viveu com a consciência plena ativada, nos provando com seu engajamento que todos nós temos o poder e a obrigação de lutar contra a falta de oportunidades, a fome e a violência autorizada contra o povo negro.
Elza, essa cantora extraordinária cumpriu sua missão como artista e cidadã do planeta Terra, tamanha a grandiosidade de sua obra e legado.
Na década de 1980, recém-chegada no Rio de Janeiro, participei como coralista do LP Negra Elza. Audaciosa, sozinha e inexperiente. Ela, em sua simplicidade, generosamente me recebeu em sua casa, me acolheu em seu coração e alertou sobre prováveis cantadas em troca de sucesso, enfatizando o meu valor como artista e representatividade das mulheres negras gaúchas!"
Valéria Barcellos
"Falar sobre a Elza como inspiração é falar sobre força, sobre resistência, sobre amor pelo que faz, pela música, pelo canto. Acho que nunca vi uma pessoa com tanta vontade, que acreditava tanto no próprio canto quanto a Elza. É isso que me chamava mais a atenção nela. A perseverança de acreditar em si, de nunca desistir de si. Tirar uma força sabe-se lá de onde para não desistir. Vai fazer muita falta na música. Acho que ela cumpriu lindamente sua missão aqui, tanto como artista quanto como mulher negra. Curiosamente, morreu no mesmo dia do Garrincha, o que é uma coisa muito louca. Fica uma lição de vida de como ser uma artista verdadeira aqui neste país e no mundo."