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Celeiros de músicos e bandas: conheça histórias de gaúchos que começaram a carreira em igrejas

Nomes como Julio Luz e Lizzi Barbosa são exemplos de que o ensino musical em instituições religiosas pode trazer benefícios para os jovens de periferia

02/07/2022 - 07h00min

Atualizada em: 03/07/2022 - 10h22min


José Augusto Barros
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Mateus Bruxel / Agencia RBS
Julio Luz: começo no pagode, hoje, na igreja

Você sabe o que Pabllo Vittar, Anitta, Luan Santana, Thiaguinho, Beyoncé, Justin Bieber e até Elvis Presley (1935 – 1977) têm em comum? Todos eles, consagrados em suas áreas, começaram a cantar na igreja, ainda na infância. Neste final de semana, o Diário Gaúcho mostra histórias inspiradoras de artistas locais, que começaram suas trajetórias musicais também em templos religiosos, seja cantando em corais, tocando violão em grupos de jovens ou, simplesmente, tiveram seu primeiro contato com a música na igreja. 

Esse ambiente, principalmente nas periferias, não apenas ajuda os jovens a se aproximarem da música, mas auxilia quem está começando a vida artística a se afastar de males muito presentes nos bairros periféricos Brasil afora: criminalidade e o tráfico de drogas. Conheça trajetórias de mulheres e homens que seguem belas carreiras na música, fora ou dentro da igreja, e confira a opinião de especialistas da área, que enxergam com bons olhos a igreja como um local de iniciação musical, tanto na periferia quanto fora dela. 

Julio fala de aperfeiçoamento

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Julio, no palco que escolheu para a vida

Ao contrário de outros entrevistados desta reportagem, Julio Luz, natural de Porto Alegre, mas que mora em Sapucaia do Sul, atualmente, não começou na igreja e migrou para outros gêneros. Aos 15 anos, Julio, amante do samba e do pagode, resolveu se aventurar no mundo da música. Ao longo da adolescência e, depois, já na fase adulta, participou de grupos conhecidos do gênero, como o Pau-Brasil, que teve como integrante Bedeu (1946-1999) um dos ícones do samba rock no Rio Grande do Sul, conhecido nacionalmente pela composição de canções como Carolina.

- Chegamos a ganhar um festival da extinta rádio Metrô, com a música Vagal. Sempre gostei de samba e pagode, tocava percussão geral e cavaco. Achei que seguiria nesse caminho por muito tempo - relembra Julio, 42 anos.

Até que, em 2010, Julio mudou para o gospel.

- Na época, fui muito influenciado principalmente pelos cantores Thalles Roberto e Davi Sacer (dois dos nomes mais fortes da música gospel no país) e resolvi mudar. Foi uma mudança que veio do coração. Antes de ir para o gospel, toquei muito tempo na noite. Vi coisas boas e outras não tão boas - comenta o cantor.


Mudança

Hoje, ele se mostra completamente satisfeito com a mudança radical de rumos em sua trajetória artística. Julio já lançou 2 CDs e três clipes (O Meu Chamado, Salmos 46 e Tua Graça), faz shows em cultos e em eventos a céu aberto, com canções como O Meu Chamado, que já tem clipe, e Não Temas, além de já ter feito abertura de shows de nomes do gênero, como o próprio Davi. Hoje, Julio diz não sentir saudades as épocas mais boemias, de samba e pagode.

- A igreja ajudou muito no meu aperfeiçoamento musical. Principalmente na técnica vocal, pois a igreja prioriza muito o estudo musical, pois louvor tem que   ser executado com excelência - afirma.

Julio, que conhece de perto a realidade das periferias, acredita que a igreja exerce um papel fundamental para os jovens que começam ali suas vidas artísticas.

-  Nessas regiões, além de tirar o jovem da contravenção, das drogas e de uma vida errada, ainda lhe proporciona uma educação vocal e princípios fundamentais que ele levará para toda a sua vida - finaliza.

Opção para os mais carentes 

Arquivo pessoal / Arquivo pessoal
Lizzi, no palco do Grande Encontro

Em Cidreira, no Litoral Norte, Lizzi Barbosa, 40 anos, é uma referência quando o assunto é música (dentro) e fora das igrejas. Lizzi, que é uma das mais de 40 mulheres que integram o projeto Peitaço, liderado por Shana Müller, movimento artístico que busca ajudar as mulheres a conquistarem seu espaço no universo da arte regional. Como observadora, professora, ativista e nome importante da música na região, Lizzi, é cantautora, compositora e a maior parte de suas músicas versa sobre sua relação com o mar e com Cidreira.  

– Em muitos aspectos, a minha praia é uma periferia, uma vez que temos poucos recursos de ferramentas sociais e, ainda hoje, sofremos muito os efeitos da sazonalidade. Eu cresci no Parque dos Pinus (periferia aqui de Cidreira). Estar na igreja e ser reconhecida pelo meu canto e ter as ocupações inerentes ao fazer religioso me oportunizaram crescer sem me aventurar no mundo (como se diz na igreja). Ou seja, não me aproximei de bebidas, fumo, drogas e, mesmo tendo colegas e vizinhos que acabaram caindo na criminalidade. Estar na igreja forjou meu caráter e julgamento sobre quais caminhos escolher. 


 Formação 

Lizzi, que se desenvolveu artisticamente na igreja evangélica Assembleia de Deus, conta por que o ensino da música é incentivado em instituições religiosas:

- Exatamente pela música ser tão relevante para o louvor e para tocar as pessoas. O ensino dela é importante para a perpetuação da fé e para o ganho de novos fiéis. 

Quando fala sobre a importância da igreja na formação de músicos, Lizzi toca em um ponto importante: a falta de lugares gratuitos para o ensino da música no Litoral Norte.

- Sem outras opções para as comunidades mais carentes, a igreja acaba sendo o único lugar onde se pode aprender música, canto e também presença de palco. Eu sou uma pessoa tímida, mas a constante participação em preleções e apresentações de canto na igreja moldaram minha performance de palco, minha confiança em pegar um microfone e me apresentar para qualquer plateia - explica a artista, que lembra um espaço de aprendizagem musical gratuito que foi extinto na cidade:

- Durante um tempo,  tínhamos a banda municipal, na qual podíamos aprender mais sobre teoria musical. Então, íamos para lá para melhorar a performance e apresentações dos louvores na igreja.

arquivo Pessoal / arquivo Pessoal
Lizzi, na infância, no coral da igreja

Atualmente, segundo Lizzy, Cidreira conta somente com o projeto projeto Boizinho da Praia da Casa de Cultura do Litoral, que ressurgiu em 2018, por iniciativa de cientista social Ivan Therra, entusiasta das tradições gaúchas – o projeto já figurou no no Mapa de Boas Práticas na Educação, levantamento da Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho que valoriza e dá visibilidade a iniciativas gaúchas de impacto social em educação formal ou não-formal. 

Sobre a influência de famosos que soltavam a voz pela primeira vez nas igrejas, como Thiaguinho, Anitta e até Elvis Presley, Lizzi destaca que os exemplos sempre são importantes para quem está começando. E faz uma ressalva interessante:

– Claro que nem todas as pessoas seguem uma religião, mas é muito evidente em programas e concursos de música, os cantores revelarem que começaram suas carreiras na igreja, ou que aprenderam a cantar na igreja. Aqui na minha comunidade, as pessoas que me acompanham sabem da minha história na igreja e sempre se admiram de mesmo fora dela e tenho convicção que as peças de teatro, o canto coral e as preleções que vivenciem na igreja são parte das minhas artistagens.

Papel importante na sociedade

Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal
Lucas foi musicalizado na Igreja Quadrangular

Guitarrista e professor de música, Lucas Cirino, morador de Canoas, hoje é um dos nomes de destaque da música local. Com saudade, lembra do período em que foi musicalizado na igreja Quadrangular.

– Fui musicalizado na igreja, através dos ensaios do grupo de jovens e aulas gratuitas de instrumentos. Isso foi importante para ampliar minha visão sobre como uma banda funciona. Vejo a igreja com um papel muito importante para a sociedade, principalmente para as periferias onde as opções não são favoráveis. Através dela os jovens podem ter acesso a música e ampliarem suas vivências, direcionando-os para caminhos mais indicados, assim como aconteceu comigo.


Trabalho consistente

Lucas, que começou na música aos 14 anos, iniciou tocando violão, que estava parado em sua casa e logo, alguns amigos que participavam de um grupo de jovens em Viamão, o convidaram para ter aulas de violão.

– Prontamente aceitei e iniciei minha jornada pela música. A música transforma vidas e na igreja é um pilar muito importante, vejo isso com muito bons olhos – lembra Lucas que, atualmente, faz jazz fusion, uma mistura de jazz, rock e funk.

Hoje, com 28 anos, o músico, que é pós-graduado em Educação Musical, é compositor e, além da banda, lançou um EP em 2016, batizado de Melodic .

Ameniza a timidez


Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal
Maria Helena, nos palcos: tem até CD gravado com músicas italianas

Natural de Cachoeira do Sul e até hoje morando lá, Maria Helena Anversa começou a cantar aos três anos. Porém, suas lembranças começam quando entrou nas aulas e violão erudito.

- Logo, comecei a ir para a igreja, para fazer a liturgia, nos cultos, na missa dominical. Depois, entrei para o grupo de jovens da igreja católica. Acredito que, quando a pessoa tem um dom, é importante que ele seja desenvolvido. Muitas celebridades tiveram alicerces cantando nos cultos, desenvolvendo canto e também instrumentos - comenta. 

Além de outros benefícios, ela acredita que a experiência ajuda as pessoas que são mais tímidas.

- O coral, especificamente, ajuda quem é mais tímido. Outra coisa interessante é que, quando a pessoa está cantando, ela não aparenta que e gaga, por exemplo. Canto é uma terapia, espanta solidão, tristeza. Além das igrejas, aqui no Rio Grande do Sul, os CTGs fazem também um trabalho muito legal de acolhimento - lembra Maria, 57 anos. 

A cantora, que tem dois CDs lançados (um deles é uma coletânea de músicas italianas), atua na igreja evangélica de sua cidade, na igreja do Senhor Jesus Cristo, atualmente. Além disso, ela é integrante de um quinteto feminino de vozes, que começou há cerca de cinco anos.

Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal
Maria integra um quinteto potente

-Canto ativamente até hoje, o ensino da música é uma semente, não só para que haja adoração e louvor - finaliza. 

Quem aproveita tem mais chances de progredir

André Ávila / Agencia RBS
Nair em sua casa, na Zona Norte da Capital

Natural de Uruguaiana, na Fronteira Oeste, Nair Teresinha, 66 anos, tem longa história na música nativista gaúcha. Aos 11 anos de idade, incentivada pelo pai, começou a cantar nos palcos a cidade e nos programas de auditório de rádios locais. Rapidamente, chamou  atenção do meio e começou a participar de festivais nativistas. Em 1971, foi a primeira  mulher a participar como cantora solo na Califórnia da Canção Nativa. Das participações no festival, um dos mais tradicionais do Estado, gravou Milonga do Exílio, de autoria de Vaine Darde e Jaime Ribeiro. 

Teve uma exitosa carreira lançando discos, como Canções do Coração (2001), De Luz e Sombra (2005) e Interiorana (2012). Este último, que tem canções de nomes como Mauro Moraes e Érlon Péricles, concorreu ao Prêmio Açorianos, na categoria melhor Intérprete de música regional. Porém, seu começo, ela recorda com carinho, foi na igreja Mórmon, na sua cidade natal, ainda na infância. 

- Cresci dentro da  Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Tudo que sei de teoria musical, regência, leitura de partituras, canto coral  aprendi  na igreja. Foi na igreja que me apresentei no palco, pela primeira vez - comenta Nair, que, atualmente, se dedica à composição e faz aulas de violão. 


Papel importante

André Ávila / Agencia RBS
Primeiros passos na música, ainda na igreja

Nair, que hoje mora no bairro Vila Floresta, Zona Norte da Capital, acredita que a igreja tem um papel fundamental no desenvolvimento dos talentos artísticos dos jovens, dando oportunidades de crescimento pessoal e profissional.

- O trabalho desenvolvido com os jovens nas Igrejas tem o papel  fundamental de afastá-los das ruas, da marginalidade, das drogas e das más influências, proporcionando sua inclusão na sociedade. Aqueles que aproveitam, têm mais chances de progredir na vida - completa. 

Nair acredita que os inúmeros casos de famosos que começaram suas carreiras musicais na igreja acaba influenciando de maneira positiva os jovens.

- Vejo  que  os jovens que têm talento ou se interessam pela música, por aprender a tocar um instrumento encontram nas igrejas o apoio que necessitam. Eles se inspiram muito nos seus ídolos. Isso serve de incentivo para que busquem a realização dos seus sonhos - finaliza. 

Lista extensa de famosos

Rodolfo Magalhães / Divulgação
Luan também começou na igreja

Entre as dezenas de famosos que começaram sua carreira na igreja, estão Anitta Livinho, Pabllo Vittar, Elvis Presley, Luan Santana e Thiaguinho. O pagodeiro paulista, 39 anos, na infância, começou a cantar e tocar violão nos corais da igreja que a sua mãe frequentava. Depois, foi seu tio quem o apresentou o pagode para o jovem. 

- Minha infância foi muito na igreja. Era da escola para igreja, da igreja para a escola. Chegava no fim da tarde e ficava até de noitão. Participava não só dos grupos de jovens, mas também de adultos. Toquei violão e até cavaquinho lá dentro. Tive uma influência muito boa lá dentro - contou o pagodeiro, em entrevista ao programa Encontro com Fátima Bernardes, da TV Globo.

Já Luan Santana começou a cantar na banda da igreja que frequentava em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, também na infância. 

- Quando eu comecei a tocar na igreja, a cantar, morávamos em um apartamento pequeno, em Campo Grande. Naquele momento, a experiência de tocar na igreja, me ajudou muito. Foi uma grande escola- lembra o sertanejo, 31 anos, em entrevista ao programa Altas Horas.

Primeiro contato na catequese

Para o professor Jonas Julião, que trabalha na Rede São Francisco, que pertence à Arquidiocese de Porto Alegre, o primeiro contato com a música, geralmente, vem por meio da catequese e de grupo de jovens. 

– Sempre o contato com os  mais antigos que já tocam algum instrumento, a necessidade de músicos na liturgia e nos encontros é outro fator que atraí os mais novos. Comigo foi assim. Depois, seguem, estudando e muitos acabam se encaminhando para outros ramos na música – aponta.

Julião observa que, atualmente, o número de paróquias que tem coro, coral ou grupo de canto, não é muito grande. Um projeto que ele destaca é da paróquia Nossa Senhora da Glória, batizado de Carlo Acuti, no qual ele comandava um grupo de violão, antes da pandemia e que está retomando contato agora.


Lugares múltiplos

Para Michelle Girardi Lorenzetti, doutora em música pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), os lugares para aprender música são múltiplos e as religiões configuram-se como instâncias que possibilitam a formação musical.

- As religiões são espaços que tornam possível o acesso à música, pelo fato de, muitas vezes, não exigirem requisitos técnicos e também por não limitarem a idade, possibilitando relações intergeracionais. Por lidar com uma dimensão importante da vida das pessoas - a religião, a fé - aprender nas igrejas pode ser uma grande motivação para seguir envolvido com a música e até mesmo com a própria religião - afirma Michelle.

Na sua pesquisa de mestrado, ela conta que identificou relações educativo-musicais na Igreja Católica e a articulação com outros espaços de formação, como a mídia, a família e a escola:

- Também pude identificar características da aprendizagem na Igreja, como uma aprendizagem ocorrida na prática, sem priorizar a teoria musical, a importância de cursos, ensaios e festivais; a auto aprendizagem e; o valor dos grupos, especialmente grupos de jovens para que o conhecimento musical   


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