Ícone do samba
Martinho da Vila canta a situação do negro no Brasil em novo álbum e diz: "Se algo melhorou, foi graças à luta"
Sambista lançou "Negra Ópera" na madrugada desta sexta-feira nas plataformas digitais
Apesar de levar a vida devagar, devagarinho, Martinho da Vila não para. Cerca de um ano após seu último lançamento, o álbum Mistura Homogênea, o sambista lançou um novo trabalho na madrugada desta sexta-feira (12). Trata-se de Negra Ópera, álbum que se distingue de tudo o que já foi feito por ele até aqui. Uma prova de que, no auge de seus 85 anos, o músico segue disposto a continuar reinventando a própria arte.
O disco se inicia com uma peça orquestral regida pelo maestro Leonardo Bruno. Aos três minutos e 48 segundos, ouve-se pela primeira vez a voz de Martinho, que entoa: "Zumbi dos Palmares, Zumbi". É como um anúncio do que virá nas 11 canções seguintes — duas delas inéditas —, que tocam todas na situação do negro no Brasil, exaltando a ancestralidade e denunciando os problemas.
Negra Ópera é uma espécie de adaptação musical do livro Ópera Negra, de 2001, no qual Martinho também aborda o tema. E tal qual uma ópera, o álbum traz composições duras, dramáticas, que exploram sobretudo a morte. Mas sem deixar de lado a vitalidade do samba, que aparece de diferentes formas nas canções, do ponto de Exu ao samba-enredo.
O álbum está disponível nas plataformas digitais e conta com participações de nomes como Renato Teixeira e Chico César. Em entrevista a GZH, Martinho da Vila falou sobre o disco, os planos futuros, a vida e a morte. Confira:
Quando o senhor lançou Mistura Homogênea, chegou a dizer que não lançaria mais álbuns completos. Que bom que não era verdade (risos). O que mudou nesse meio tempo?
É verdade, falei mesmo (risos). É que hoje é tudo digital, não tem mais as coisas físicas, então falei que lançaria só uma ou outra música de vez em quando. Mas aí, incentivado pelo pessoal da gravadora, resolvi fazer esse outro disco. E está aí, botei no ar.
O senhor não somente lançou um novo disco, mas um disco completamente diferente de tudo o que já fez. Uma ópera, afinal. Por que decidiu explorar esse conceito?
Eu já gravei muitos discos, né? Muitos, muitos, muitos. Aí só gravar mais um disco, sinceramente, não teria muita graça. Acho que até por isso eu falei que não lançaria mais álbuns inteiros (risos). Então pensei: "Poxa, se eles (gravadora) querem que eu faça mais um disco, vou ter que achar uma coisa diferente". Folheando o livro Ópera Negra, que eu escrevi, veio a ideia. Os meus discos são sempre muito alegres, festivos, com muitos sons, muito ritmo, então decidi que iria tentar uma coisa diferente, mais intimista. E consegui (risos).
O senhor é uma referência, um dos grandes gênios da música brasileira. Isso poderia colocá-lo em uma certa zona de conforto, mas o senhor demonstra justamente o contrário, pois segue lançando trabalhos e se reinventando. O que pensa sobre isso? Sente necessidade de estar sempre na ativa?
Quem já se sente realizado, acha que já fez muita coisa ou acha que é o cara já pode até morrer. Já fez tudo, pô (risos). Enquanto se está vivo, tem-se que estar ativo. Enquanto eu me sentir útil, tiver forças e energia — o que tenho bastante —, vou seguir fazendo coisas. Ainda tenho muita coisa para fazer. Ainda não sei bem o que é, mas tenho.
O samba é movimento, não é mesmo?
É movimento sempre (risos). E a escola de samba é um teatro ambulante.
O senhor se sente com 85 anos?
Eu nunca imaginei chegar aos 85 anos. Quando era mais jovem, não conhecia quase ninguém com essa idade, todo mundo morria por volta dos 60 e poucos. Mas, felizmente, a ciência trabalha a nosso favor (risos). Hoje, a média é 75 anos. Eu já tô com 10 na frente, tô no segundo tempo do jogo da vida (risos). Por falar em 75 anos, a nota triste dos últimos dias foi o falecimento da Rita Lee. Muito triste.
Foi uma perda sentida por todos, independentemente do grau de proximidade, mas o senhor tinha uma relação próxima com a Rita?
Não muito, mas tocamos algumas vezes, estivemos juntos no Festival de Montreux, em alguns outros festivais. Eu gostava muito dela e sei que ela também gostava muito de mim.
Voltando ao álbum, chama atenção que as canções, especialmente as inéditas, exploram sonoridades muito ligadas à ancestralidade negra. Há ponto de exu e capoeira, por exemplo. Por que trazer esses sons ancestrais para a sua ópera?
Eles têm a ver com a temática da ópera. A história do negro tem a ver. A ópera é uma peça bonita, complexa, muito bacana. Tirando a história, que geralmente é triste (risos).
Realmente, as óperas costumam ser marcadas pelo drama. Seu disco, apesar de entoar o ritmo do samba, também carrega uma dramaticidade, traz letras bastante fortes. Foi planejado? Como se deu a escolha das canções que entrariam no disco?
Tendo a ópera como referência, a intenção foi mesmo fazer algo mais dramático, bem como ficou. Aí fomos pesquisando, encaixando músicas, até que fechou.
Há muitas canções sobre morte. Chama atenção, afinal, o senhor é o cara que canta que a vida vai melhorar.
A morte está muito presente mesmo, né? (risos). Foi acontecendo, acho que por conta dessa coisa da ópera, mas eu mesmo não sou alguém que costuma pensar na morte. Ela vai chegar quando tiver que chegar e tudo bem, não adianta ficar se preocupando. Claro, quando a gente está com algum problema de saúde, pensa um pouquinho mais (risos). Tive que fazer uma cirurgia recentemente, para retirar um tumor da bexiga, aí dei uma pensadinha. "Ih, caramba. Será que já tá perto?" (risos). Mas, no geral, não penso muito não. Eu creio que a minha morte vai ser bonita, não vai ser uma coisa tristronha. Eu sou do samba, e o pessoal do samba transa bem com isso. O velório do sambista é na quadra da escola do samba, com o povo cantando músicas do falecido, e quando vê já vira uma festa. É uma coisa até boa de assistir, tipo uma ópera (risos).
As canções tocam todas na situação do negro no Brasil, saudando a cultura, mas também denunciando os problemas. É algo que o senhor faz desde sempre, na verdade. As questões do negro cantadas hoje ainda são as mesmas de 40 ou 50 anos atrás?
A questão do racismo, que era muito forte, está diminuindo, só que aos poucos. Mas se algo melhorou, foi graças à luta das diversas organizações do movimento negro. Antigamente, lá bem atrás, até reclamar era um ato de coragem. Depois, passou-se para a fase em que já se podia protestar. Aí entraram em cena caras como Abdias do Nascimento (escritor e multiartista que foi um dos principais intelectuais do movimento negro), que foi fundamental na denúncia. Hoje, a luta do movimento negro é mais por inclusão. A intenção é que estejamos em todos os setores da sociedade, nas grandes empresas, nas faculdades, nos ministérios e nos governos.
Essa sua fala me fez lembrar que, em 2010, o senhor chegou a pleitear uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, mas acabou não tendo votos.
Aquela tentativa foi incentivada por colegas do movimento negro. A Academia, apesar de ter sido fundada por um negro (Machado de Assis), era pouco ocupada por negros, então eu me candidatei. Foi quase como uma missão, mas não penso em tentar de novo.
Exu das Sete é uma música que se destaca no disco, pois traz uma sonoridade potente, que reproduz uma gira de Exu. Qual a sua relação com as religiões de matriz africana?
Eu venho de uma formação católica, fiz primeira comunhão, fiz parte da cruzada eucarística, era muito aplicado. Houve até um tempo em que me incentivaram a ser padre, mas eu não gostei muito não (risos). Depois quiseram que eu fosse sacristão, e eu disse: "Sacristão, tudo bem. Ajudar na missa até que dá". Mas aí me deram aquela roupa vermelhinha, cheia de rendinha, com saia... Bom, não me senti bem de saia e já não quis mais saber de ser sacristão (risos). Mas, apesar dessa formação católica, sempre tive proximidade com as religiões de matriz africana. Essa música é uma homenagem.
O disco traz algumas parcerias, mesclando nomes pouco conhecidos e nomes consagrados em seus respectivos gêneros. Como foi a escolha dessas parcerias?
São pessoas com as quais eu já tinha relações. O Renato Teixeira é um amigo antigo, o Chico César também. Tem a Mart'nália que, bem, é minha filha (risos). Todos contribuíram muito para que o disco ficasse bom. Inclusive, acho que as faixas com participações são as melhores. Claro que tem aquela coisa: música é estado de espírito. Dependendo do nosso estado de espírito no momento, a gente gosta mais de uma ou de outra, mas eu gostei muito das que trazem essas parcerias.
Além da Mart'nália, seus filhos Maíra e Preto também estão no disco. Não é exatamente uma novidade, pois o senhor já fez várias parcerias com seus filhos, mas como é cantar com eles?
Eu gosto com eles, mas boto nos discos não porque são filhos não, viu? É porque eles são talentosos (risos). Sempre que convido alguém para participar de um disco meu, é para acrescentar no meu trabalho. Tem gente que agradece, e eu sempre digo: "Tem que agradecer nada não, só convidei porque vai ser bom para mim" (risos).
Em família, quando estão reunidos, vocês têm o hábito de cantar juntos?
Ih, a música sempre é o primeiro plano. A gente canta, mostra música nova um para o outro, aí um palpita no que o outro tá fazendo, assim vai.
Esse disco deve se desdobrar em turnê?
Vai. Farei os primeiros shows na sexta, sábado e domingo, em São Paulo. Estou muito feliz, pois as três datas estão esgotadas. Porque é aquilo: show bom é show cheio de gente; show vazio é show ruim (risos). Depois disso, vou viajar para a Europa com uma turnê que vai misturar o disco novo e sucessos da minha carreira. Começo por Portugal e passo por Alemanha, França e Inglaterra.
Podemos esperar o senhor em Porto Alegre?
Com o maior prazer. Eu já falei com o meu pessoal para ver como podemos levar essa turnê a outras cidades. Não gosto de fazer excursões muito corridas, tem que ser devagar, devagarinho (risos). Quero ir a Porto Alegre com calma, ver os amigos, comer um galeto, um churrasco, e depois ir para outro lugar.