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Estrelas da Periferia

"A gente ainda não conseguiu chorar tudo que tinha para chorar" diz artista que teve casa submersa por 28 dias

Mariana Marmontel, integrante do coletivo Poetas Vivos e moradora da Vila Farrapos, relata o impacto devastador que a chuva teve nos artistas da periferia 

11/06/2024 - 10h00min

Atualizada em: 25/06/2024 - 16h32min


Diário Gaúcho
Diário Gaúcho
Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal
Neega Mari teve a casa invadida pela água

Natural de Porto Alegre, Neega Mari é destaque no meio artístico, literário e ativista do Estado. Atriz, poeta, escritora, cantora, mestre de cerimônias e empreendedora, e estudante de pedagogia, Mariana Abreu Marmontel, marca presença aonde chega.

Ela é uma mulher de 26 anos, mas na voz e nas ideias, carregas milhares dos seus. Além dos três empreendimentos que administra, Mari faz parte do coletivo Poetas Vivos, que promove a representatividade preta e periférica através do Hip-Hop, literatura, educação, música e grafite.

Na luta contra a desigualdade e a tirania, a artista usa seu talento com as palavras para falar por muitos.

Agora, fala também pelas vítimas da tragédia ambiental que vivemos. A casa onde a artista mora com o namorado ficou submersa durante 28 dias.

Além das perdas pessoais, dentro da residência guardavam os produtos e matérias-primas para produção das mercadorias que vendem nos empreendimentos. Durante dias o casal não sabia o que havia sido perdido.

— Só quando a gente entrou na casa e viu como estava que a gente pôde ter a real dimensão — diz Mari, que depois de semanas viu seus pensamentos mais pessimistas virarem realidade:

— Perdemos tudo, menos algumas peças de roupas e pares de sapato.

Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal
Material de trabalho e pertences pessoais foram perdidos

Da tabacaria que tocava com o namorado, quase tudo foi perdido. O negócio mais recente era uma loja online de pelúcias, que foram todas danificadas pela água contaminada. A única coisa que foi possível salvar foram as argolas que vende na @adonadaroda, loja de produção e venda de acessórios personalizados.

— Tudo que tínhamos para vender está sem condições. O que sobrou é a minha bolsa de argolas, que, por sorte, não estava em casa. Então, comprar nossos produtos é uma grande ajuda — conta Mari, que vê no coletivo sua única saída:

— Não temos nenhuma outra fonte de renda, todas estão alagadas.


POETAS VIVOS

Entre tantas perdas, a mais cruel foi a coleção de livros do Poetas Vivos, que fica na casa da Mari.

O coletivo é a principal fonte de renda de grande parte dos integrantes. Mari e Maicon foram os únicos membros que foram afetados diretamente. Mas os outros três poetas sofreram indiretamente, principalmente na questão financeira.

Uma das formas que o grupo se mantém é com a venda de materiais literários autorais: são dois livretos, cinco fanzines (publicação gráfica artesanal) e um livro. Mari e Maicon vendiam os títulos em bares e restaurantes da cidade.

Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal
Muitos livros foram perdidos

Recentemente, o casal trouxe da gráfica 200 exemplares do livro Nós.  Eles foram encontrados encharcados e em pedaços. A impressão ainda não foi paga. Quanto ao todos os fanzines e livretos, não puderam ser achados nos escombros, pois, segundo Mariana, se desintegraram completamente, virando uma massa de papel.

— Foi um vasto acervo de livros que foi completamente perdido, e acho que, de todas as dores, essa foi uma das maiores A gente teve um prejuízo gigantesco — afirma.

Além dos autorais, o casal tinha em casa centena de livros de artistas pretos e periféricos do Brasil inteiro, que eram usados nas oficinas culturais.

— Esses materiais todos eu levava para as salas de aula, para as oficinas que a gente dava. A gente perdeu materiais riquíssimos que usávamos para complementar as nossas oficinas, mostrando o trabalho, a arte de outros artistas.

Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal
Casa de Mari ficou submersa por 28 dias

Diversos eventos para qual haviam sido chamados foram cancelados ou adiados, o que também afetou a renda do grupo. Desde o começo da tragédia, o coletivo ainda não foi chamado para nenhum evento.

Mesmo sem os materiais literários, Mari diz que o grupo ainda tem o essencial:

— A gente ainda tem o nosso intelecto, o que a gente construiu todos esses anos. A gente tem isso para compartilhar.

Assim como outros grupos de artistas, os Poetas Vivos levantaram uma campanha para que produtores e contratantes daqui e de outras localidades fortaleçam o coletivo.

— Uma ótima forma de colaborar com a cultura gaúcha é indicando e contratando nosso coletivo para eventos dentro e fora do Estado, presenciais ou online — diz Mari, que continua:

— É muito importante também que os contratantes, as escolas, sigam olhando para o Poetas Vivos, enxergando esse momento como um momento crucial para estar contratando o coletivo para uma atividade, seja para oficina, seja para performance poética ou roda de conversa.

PRA CIMA,  MARI

— A gente não pode só resistir, a gente também precisa revidar — diz Mariana.

O contragolpe é a mudança. Ela diz que o Poetas Vivos é uma injeção de esperança, esperança de que qualquer um pode ser um grande artista, de que o periférico pode ser poeta, escritor ou intelectual. Que essa possibilidade não é distante. Está a um livro, um poema, a uma música de distância. E essa meta continua sendo o norte do grupo: inspirar e fortalecer.

— A gente vai seguir com mais força, com mais garra e com a certeza de que o nosso trabalho é importante. Eu preciso ser sincera, a gente ainda não sabe como vamos fazer isso, mas que a gente não vai desistir — diz Mari.

Um tema frequente da pauta dos Poetas é a saúde mental e a resiliência. A artista diz que pretende seguir os conselhos que dão nas rodas de conversa, mas, nesse momento, nada tem sido fácil.

— A gente não conseguiu parar para chorar tudo que tinha para chorar. Tentamos nos preservar o máximo que desse, porque a gente sabia que ainda ia ter muito para sofrer — admite Mariana.

Largar a arte não é uma opção para a jovem. O grupo continuará provando que, mesmo que desafiador, viver da arte é possível. Mari conta que nunca foi fácil sua trajetória artística. A vontade de desistir existe, mas não vai prevalecer.

— A vontade é de entrar em um buraco e sair só quando tudo estiver resolvido, mas não temos essa possibilidade. Só nos resta seguir sendo fortes para recuperar o que for possível — afirma, e completa lembrando o quanto foi complicado enfrentar os últimos dias:

— Foi muito difícil para mim estar longe das minhas coisas, conseguir me sentir bonita nesses dias foi uma coisa que eu tive que trabalhar muito em mim. A gente vai tentar, de todas as maneiras, se manter firme e forte para, mais uma vez, poder recomeçar. A gente ficou muito desesperançoso, assim, justamente por sermos moradores da Vila Farrapos, que foi uma das vilas mais atingidas e, ao mesmo tempo, uma das mais abandonadas.

Mesmo sentindo ser alvo de descaso a artista percebeu que contava com uma rede de apoio, fortalecida pela própria classe artística, pela cena do Hip-hop gaúcho. Com esta ajuda, Mari decidiu mais uma vez transformar a injustiça em solidariedade. Ela está agora na casa da sogra, que virou um ponto de coleta de doações e centro de distribuição.

— A gente usou essa raiva, essa revolta como força para estar ajudando outras pessoas. Não consegui deixar de pensar nas pessoas que não estavam tendo essa rede de apoio tão grande quanto a minha. Então, nada mais justo do que a gente se ajudar nesse momento, né?


COMO AJUDAR MARI

Pix: neegamari@gmail.com
Contrate em: contatopoetasvivos@gmail.com
Siga nas redes sociais: @neegamari @poetasvivxs
@adonadaroda Produção e venda de acessórios personalizados, em sua maioria brincos de argolas, como os que Mari usa na foto acima.

* Produção: Camila Mendes



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