Entretenimento



Bate-papo

Em entrevista, Negra Li afirma que Elza Soares "passou o bastão" da luta de gênero e racial a ela em sonho

Artista fará show em Porto Alegre neste domingo (15), no aniversário de um ano do Museu da Cultura Hip Hop do RS

14/12/2024 - 05h00min

Atualizada em: 14/12/2024 - 05h00min


Giordana Cunha
Giordana Cunha
Enviar E-mail
Iude Richele / Divulgação
Negra Li é uma das pioneiras no rap

A adolescente Liliane de Carvalho, que ingressou no rap por meio do grupo RZO, nem imaginava o tamanho que Negra Li se tornaria. 

A difícil realidade da então moradora da Brasilândia, periferia de São Paulo, não cessou a sede de voar. E voou. Com a voz potente e de timbre único, já em carreira solo, a artista fez história ao ser a primeira rapper contratada por uma grande gravadora.

Os discos lançados durante sua carreira podem ser descritos como espelhos de suas descobertas pessoais. A música é a definição do que acredita e do ciclo que vive no momento. Ela já cantou MPB e pop, mas garante que seu chão é o rap. Inclusive, voltará ao gênero em seu próximo álbum, ainda sem data definida para lançamento, mas já com uma música disponível em todas as plataformas digitais, intitulada Black Money.

Negra Li retorna a Porto Alegre neste domingo (15) para o aniversário de um ano do Museu da Cultura Hip Hop do RS (Rua Parque dos Nativos, 545), que acontece a partir das 14h, e além do show dela, terá apresentações do rapper BK’. A artista garantiu, em entrevista, que adora o povo gaúcho e que a Capital é uma das referências do país quando se trata de rap.

Em bate-papo, Negra Li fala sobre carreira, lutas, família e próximos projetos. Confira!

Sua carreira começou em uma época onde o rap era majoritariamente masculino. Como foi o início da trajetória na RZO, um grupo só de homens antes de sua entrada?

Eu fui uma exceção. O RZO admitiu, né, que quis ter uma mulher dentro do grupo. Sinto que fui abençoado por ter esse espaço e oportunidade. O rap (na época) ficava nas mãos dos homens, mas eu ainda tive essa oportunidade dentro de um grupo que me fez aprender, moldou minha personalidade e me fez enxergar qual o meu lugar dentro da sociedade.

Como você se sente sendo uma referência no rap e inspiração para tantas mulheres que querem fazer carreira neste meio?

As mulheres sempre estiveram ali, mas não tinham ajuda e visibilidade. Digo nenhuma ajuda porque a gente sempre dependeu de homens naquela época (que iniciou sua carreira), exatamente porque estava na mão deles... toda a produção, estúdio, gravadora, qualquer coisa relacionada à música. Já vi como um peso, já vi como satisfação ser uma inspiração.

Como conseguiu passar por esse processo?

Hoje eu consigo ficar muito feliz. Consigo carregar esse peso hoje em razão da experiência, até porque as coisas mudaram, existem muitas mulheres em evidência, com seus próprios estilos, que não tem nada a ver com Negra Li. A partir disso ficou mais fácil.

Como foi ser a primeira mulher a assinar com uma grande gravadora como a Universal Music? O que mudou na sua carreira depois de começar a aparecer na grande mídia? 

Isso acabou fazendo com que as pessoas do movimento ficassem de mal comigo. E isso se arrastou até hoje, porque eu percebo que tem algumas pessoas que nem lembram mais, nem sabem a razão, mas tem alguma coisa com a Negra Li. Fui taxada como traíra do movimento, como a vendida, que se vendeu para Globo. Mas a assinatura foi importantíssima para mim e ao resto. Eu alcancei o que era para ser meu. Alguém precisava estar ali.

Foi nesse momento que você foi para o pop? Como foi esse período?

Sim, foi incrível na época, era uma preta misturando pop com rap... Mas fiquei chateada com o que aconteceu, achei que eu precisasse escolher uma coisa ou outra. Por um certo tempo eu fiquei um pouco perdida, porque via que estavam me virando as costas no rap e onde eu estava não me abraçavam. Me questionei onde eu me encaixava. Não foi fácil, para uma mina preta, sozinha, achar seu lugar e permanecer nele. Me considero uma desbravadora e vencedora por ter conseguido permanecer.

Hoje as questões raciais e temas como igualdade de gênero já são mais debatidas em comparação ao período que você iniciou. Mas como uma mulher negra, na prática você vê algo diferente acontecendo?

Acho que a internet nos deu voz. Se tornou um pouquinho mais fácil depois disso e depois que as pessoas tiveram informação e decidiriam falar abertamente. Fácil num quesito de não se sentir sozinha na luta, de perceber que existem pessoas lutando, apesar de acreditar que ainda precisa de mais, principalmente dentro da lei, né? A gente precisa ter mais mulheres pretas em cargos importantes. Então eu acho que a gente precisa estar no poder.

Por ser uma mulher negra, você não se sente cansada de ter que estar sempre lutando por seus direitos?

É uma dualidade. A gente está cansado de lutar e ao mesmo tempo a gente olha para trás e fala assim: “Há pouco tempo atrás como eu estaria?”. Ainda que sofrendo racismo, sendo puxada para trás, tendo que trabalhar dobrado para ganhar igual a homens brancos, eu tenho a “liberdade” de poder ter meu trabalho, minha casa. É constante essa briga dentro da gente, é muito louco, é muito cansativo mesmo. Às vezes eu fico até meio perdida, não sei se devo militar o tempo todo ou se devo só viver a minha vida... é bem difícil.

Neste momento, qual o sentimento? De militância, raiva, revolta ou conformidade?

Eu estou numa vibe brava, muito brava. Estou lutando, escrevendo tudo que eu quero a respeito disso.

Nessa luta, quais são os meios que você encontra para fazer a diferença, visando uma possível mudança?

Nos meus processos de criação os produtores são pretos, diretores são pretos, eu contrato pessoas pretas para poder fazer o dinheiro girar entre nós. Devemos nos empoderar e nos fortalecer. Estou sempre pensando o que posso fazer dentro das minhas redes sociais, quais informações, que obtenho a partir das minhas referências negras, posso dividir com as pessoas. A música Black Money (lançada no fim de novembro) fala exatamente isso, sobre a gente se unir, sobre essa união entre nós.

Em quais momentos Negra Li e Liliane de Carvalho se encontram?

No amor. A Negra Li tem um amor pelo trabalho. A Liliane, um amor pela família, pela rotina familiar.

Qual é a diferença entre a personalidade de Liliane e de Negra Li?

A Liliane é mais tranquila na questão da vida, porque eu sou evangélica, então estou sempre olhando a vida de uma forma espiritual. Negra Li é mais racional. Por exemplo, no trabalho está sempre ali, às vezes cobrando, tendo que ter controle. Mas no meu dia a dia sou bem mais tranquila.

Aos 45, o que você diria para a Liliane criança?

Que vai dar certo. As coisas que eu almejei quando criança, muitas delas aconteceram, como, por exemplo, ser famosa, poder ajudar minha mãe.

Em relação aos seus dois filhos, você prioriza a privacidade do que a exposição deles?

Mais ou menos, porque eles são tão lindos que eu não consigo não mostrar (refere-se a postagens nas redes sociais).

E sobre eles... puxaram a mãe? Você vê alguma veia artística neles?

Vejo nos dois. Eles cantam muito bem, são extremamente afinados. O Noah é um ator nato e a Sofia, modelo. Ela até gravou uma música comigo que ainda não lancei... quem sabe um dia eu solto.

Como está sendo o processo de criação do novo álbum?

Estou compondo com o meu amigo Fabio Brazza, fizemos dois dias de camping, que resultaram em 12 música e eu só precisava de quatro. Eu estou usando todo o meu sentimento, está bem visceral, muita identidade, muito empoderamento preto e muita revolta. Lancei agora Black Money, que é de poder, empoderamento preto, é um convite às pessoas pretas e antirracistas a se unirem para acabar com as discriminações de uma vez por todas.

Como você definiria a Negra Li nessa nova produção?

Uma Negra Li que sabe quem ela é e o papel dela dentro da sociedade. E ela quer mostrar isso.

Retornará a Porto Alegre neste domingo para fazer um show no Museu do Hip Hop. Como é tua relação com o público gaúcho?

Porto Alegre é demais. O Estado era um dos principais focos do rap. Digo isso porque quando eu estava dentro do movimento, fazendo shows mais voltados ao rap, era um dos lugares que eu mais me apresentava. É um lugar que eu tenho muito carinho, volto à vontade, porque sei que o público me conhece.

Retorno com propósito

Durante a entrevista, Negra Li contou que teve um sonho com Elza Soares (1930-2022) após gravar sua participação na música Preciso Me Encontrar (Citação: Deixe Me Ir). A regravação foi lançada em novembro de 2023, mas a captação da voz de Elza foi feita um mês antes da morte da cantora.

– Até o último momento ela estava lutando, falando e relatando as coisas que aconteciam, e ela não precisava mais, né? Se quisesse, ela poderia ser só uma diva, morando em Miami, mas ela continuou falando com suas letras – relata.

“Se alguém por mim perguntar / Diga que eu só vou voltar / Depois que me encontrar”. Essas são estrofes da música referida, mas poderia ser uum resumo sobre o que Negra Li viveu. Na verdade, ela disse isso, mas em outras palavras:

– A Negra Li ficou ali, dormindo um pouquinho. Mas agora ela voltou com tudo.

Ao acordar do sonho com Elza, a cantora sentiu como se a artista estivesse passando bastão da luta racial e de gênero para ela. Ela voltou, se encontrou e recebeu a honraria das mãos de uma das maiores personalidades brasileiras.

Últimas Notícias