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"A maldade dela era tocar na ferida dos brasileiros": por que Odete Roitman, de "Vale Tudo", é considerada "a vilã das vilãs" 

Personagem original de 1988 atravessou gerações e se tornou parte do imaginário coletivo do país

14/05/2025 - 09h49min

Atualizada em: 14/05/2025 - 09h50min


Camila Bengo
Camila Bengo
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Memória Globo,Reprodução/Rudy Huhold,Divulgação Globo
Beatriz Segall e Debora Bloch são intérpretes de Odete Roitman.

"Essa terra não tem jeito!", sentencia Odete Roitman ao desembarcar no Brasil, resumindo em uma só frase todo o desprezo que sente pelo país tupiniquim. O pouso em solo brasileiro marca a entrada dela na trama de Vale Tudo, inaugurando uma jornada de maldades e maledicências que perdurou até a reta final da novela, quando o mistério sobre a morte da vilã tomou conta do Brasil em 1988.

Odete Roitman está gravada no imaginário coletivo do país. É difícil encontrar um brasileiro que nunca tenha ouvido falar da personagem interpretada por Beatriz Segall ou que não tenha se perguntado "quem matou Odete Roitman?".

Lembrada com deferência pelos contemporâneos da primeira exibição de Vale Tudo, a vilã é conhecida até mesmo por quem nasceu décadas depois. 

Por essas e outras razões, a versão original de Odete Roitman é considerada por muitos como "a vilã das vilãs", soberana entre todas as malvadas que já figuraram nas telenovelas brasileiras, incluindo nomes de peso como Nazaré Tedesco de Senhora do Destino, Carminha de Avenida Brasil e Branca Letícia de Por Amor.

Pioneirismo

Mas o que dá a ela a credencial para ostentar um título com tão qualificada concorrência? Para o roteirista e pesquisador da teledramaturgia Gil Marcel Cordeiro, autor do livro 101 Grandes Vilões e Vilãs da Telenovela Brasileira (Artêra Editorial), muitos fatores contribuíram para que Odete Roitman se tornasse histórica.

O principal deles, no entendimento do pesquisador, é a forma como a vilania da personagem foi construída, rompendo com o padrão que era estabelecido até então.

Cordeiro explica que, até meados dos anos 1980, as vilãs das telenovelas brasileiras eram costumeiramente representadas pelo estereótipo da "mulher histérica" – que grita, esperneia e quase sempre termina a trama como louca. Odete Roitman, por sua vez, inaugura um novo formato de vilania: silenciosa, calculista e racional.

— Odete Roitman não foi a primeira vilã, tampouco a que cometeu as maiores maldades, mas ela definiu um padrão na cabeça das pessoas — resume o pesquisador.

— A personagem é violenta nos valores que defende, mas não é adepta dos excessos nas suas atitudes. Você não vai ver Odete Roitman de arma na mão, porque a força dela está na palavra e no desprezo que tem pelas outras pessoas. Todas as vilãs que vieram depois trouxeram um pouco desse narcisismo de Odete Roitman. Ela é tida como "a vilã das vilãs" porque se transformou em um arquétipo que influenciou todo o gênero — detalha.

Conservadora e feminista

Odete Roitman também foi responsável por cortar a fita da tradição da vilania feminina nas telenovelas brasileiras. Antes da exibição de Vale Tudo, havia um equilíbrio de gênero entre os antagonistas, como explica Larissa Leda Rocha, professora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) que é coordenadora do GP de Ficção Televisiva Seriada da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). Depois da novela, passou a prevalecer a escalação de mulheres para este tipo de papel.

Ou seja, Odete Roitman pavimentou a estrada pela qual passariam dezenas de vilãs icônicas nas décadas seguintes. Larissa também pontua que, apesar de conservadora, a personagem era implicitamente feminista, o que foi disruptivo para a época.

— Em 1988, vive-se a ascensão de uma das ondas do feminismo. Isso possibilita o surgimento de uma personagem como Odete Roitman. Ela era uma mulher totalmente focada nos negócios, na carreira e no dinheiro, que se relacionava com homens mais jovens e que exercia livremente a própria sexualidade, sem se importar com o que os outros pensavam — diz a professora da UFMA.

Tal postura perpassa, inclusive, o foco das maldades cometidas pela personagem. Embora seja uma pedra no sapato da mocinha Raquel, interpretada originalmente por Regina Duarte e, agora, por Taís Araújo, os principais alvos da vilã são os próprios filhos.

Longe do ideal romântico da maternidade, Odete Roitman trata os herdeiros como elementos necessários à manutenção de seu império. A personagem forja certa preocupação com os filhos, mas manipula os destinos de Heleninha (Renata Sorrah/Paolla Oliveira) e Afonso (Cássio Gabus Mendes/Humberto Carrão) pensando unicamente em seus próprios interesses.

Algo que, conforme Larissa, também rompe com o padrão visto na maioria das vilãs:

— Quando você analisa o perfil desse tipo de personagem, percebe que o calcanhar de Aquiles delas quase sempre é a maternidade. Por maiores que sejam as maldades, elas amam incondicionalmente os filhos. Odete Roitman não é assim: ela arma contra os filhos, trata-os como peças de um jogo de tabuleiro. O amor incondicional dela é pelo trabalho, pelo dinheiro e pelo status.

Globo/Divulgação
Beatriz Segall deu vida à primeira versão de Odete Roitman.

Dedo na ferida

O pesquisador Gil Marcel Cordeiro observa que a vilania de Odete Roitman é expressa por uma equação de preconceitos, armações e corrupção, sem elementos como assassinatos e outras crueldades físicas. Por isso, há quem questione a atribuição do título de "a vilã das vilãs" para a personagem.

O protesto é considerado legítimo, afinal, o currículo de Odete Roitman é cristalino se comparado ao de outras vilãs icônicas da teledramaturgia brasileira. Enquanto Nazaré Tedesco roubava crianças e matava desafetos jogando-os escada abaixo, por exemplo, a grande antagonista de Vale Tudo apenas traçava manipulações e destilava preconceitos de classe a cada frase dita.

Odete Roitman arma contra os filhos, trata-os como peças de um jogo de tabuleiro. O amor incondicional dela é pelo trabalho, pelo dinheiro e pelo status.

LARISSA LEDA ROCHA

Professora

Nesse sentido, a personagem poderia ser considerada "menos vilã" que a própria Maria de Fátima (Glória Pires/Bella Campos), também de Vale Tudo, que vende a casa da mãe e a deixa sem ter onde morar. Entretanto, conforme Cordeiro, é preciso entender o contexto da vilania de Odete Roitman.

— A maldade dela era tocar na ferida dos brasileiros — sintetiza o pesquisador. — Odete Roitman sentava à mesa e falava que o Brasil era o país de um povo que não deu certo, enquanto a população estava vivendo um cenário de desolação naquele 1988, lutando contra o desemprego e a hiperinflação. Isso era absolutamente cruel. E era aí que estava a maestria do texto de Vale Tudo: as pessoas odiavam Odete Roitman, mas ansiavam por ver o que mais ela iria falar — explica.

Para o autor de 101 Grandes Vilões e Vilãs da Telenovela Brasileira, Odete Roitman se tornou emblemática "graças ao texto primoroso de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères e à interpretação de Beatriz Segall".

O pesquisador credita à atriz uma parte importante do sucesso alcançado pela personagem:

— Beatriz Segall nunca deixou que Odete Roitman virasse uma caricatura, o que facilmente poderia ter acontecido. Ela abraçou a personagem com uma precisão absurda, falava atrocidades com a maior naturalidade possível, sem nunca cair no exagero. E quantos vilões não acabaram se tornando irrelevantes porque caíram na mão de um intérprete que não estava preparado? Se não fosse por Beatriz Segall, Odete Roitman talvez não tivesse se tornado o que se tornou.

Paixão por vilãs

A magnitude alcançada pela personagem é tão grande que, quando se fala em Vale Tudo, o nome dela é o primeiro a vir à tona. Contudo, não estava reservado a Odete Roitman o posto de vilã titular do folhetim, que tem a relação entre Raquel e Maria de Fátima como arco narrativo principal.

Você não vai ver Odete Roitman de arma na mão, porque a força dela está na palavra e no desprezo que tem pelas outras pessoas. Todas as vilãs que vieram depois trouxeram um pouco desse narcisismo.

GIL MARCEL CORDEIRO

Roteirista e pesquisador

A vilã de Beatriz Segall cresceu ao longo da trama, chegando a chamar mais atenção que a própria mocinha – por vezes tida como "chata" pelos espectadores. Maria Immacolata Vassallo de Lopes, professora e coordenadora do Centro de Estudos de Telenovela da USP (CETVN) e do Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva (Obitel), diz que o fenômeno é recorrente no âmbito das telenovelas brasileiras.

— É muito comum as vilãs tomarem o protagonismo das mocinhas. Acredito que isso esteja associado à agilidade que esse tipo de personagem tem. A vilã é quem movimenta a trama, enquanto a mocinha, muitas vezes, é aquela personagem mais apática, de quem as pessoas gostam, mas também se cansam — destaca.

Soma-se ao sucesso de Odete Roitman a indiscutível paixão dos espectadores brasileiros pelas vilãs. Conforme Maria Immacolata, há uma predileção do público do país por esse tipo de personagem, que geralmente vem acompanhada de um tom humorístico também muito caro aos brasileiros:

— Quando você pensa nas vilãs que estão mais presentes na memória coletiva, como Nazaré Tedesco, Carminha e a própria Odete Roitman, percebe que todas elas tinham esse humor irônico como marcas discursivas. Isso coloca o público diante de uma personagem que faz as maiores maldades, mas que também arranca dele as maiores risadas. É um hibridismo que combina muito com o Brasil.

Desafio para o remake

Tais características aumentam a pressão sobre Debora Bloch, que encara o desafio de interpretar Odete Roitman no remake de Vale Tudo. Desde sua entrada na trama, a atriz vem sendo elogiada tanto pelo público quanto pela crítica especializada em TV, mas ainda tem um longo caminho até o fatídico assassinato da vilã.

É muito comum as vilãs tomarem o protagonismo das mocinhas. Acredito que isso esteja associado à agilidade que esse tipo de personagem tem.

MARIA IMMACOLATA VASSALLO DE LOPES

Professora

Os especialistas ouvidos pela reportagem são unânimes ao projetar que dificilmente a nova versão da novela terá o mesmo impacto que a primeira. Isso inclui a importância alcançada pela Odete Roitman de Debora Bloch, que provavelmente não atingirá o nível da personagem de Beatriz Segall.

Porém, para a pesquisadora Larissa Leda Rocha, nada disso tira o mérito do remake ou da interpretação de Debora:

— A gente precisa controlar as expectativas, afinal, é uma outra novela, com uma outra autora e em um outro momento histórico. As pessoas gastam muita energia fazendo comparações e tentando descobrir qual versão foi melhor, mas que tal a gente só curtir a novela? Vamos curtir os personagens, vamos curtir a história e vamos nos chocar com o tanto que a gente ama odiar Odete Roitman (risos).


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