Dupla Gre-Nal



Centenário do Cruzeiro

Cruzeiro 100 anos: Pioneirismo louco

Confira na segunda parte da série de reportagens como foi a viagem do time à Europa

15/07/2013 - 07h51min

Atualizada em: 15/07/2013 - 07h51min


Todo pioneirismo tem um pouco de loucura. Talvez por isso, a antiga Revista do Globo tenha classificado o Cruzeiro como um clube louco. Afinal, viajar à Europa na década de 50 não era nada fácil para uma pessoa. Imagine para a delegação de um time de futebol.

Mas, contrariando a todos, o à época presidente do Esporte Clube Cruzeiro, Antônio Pinheiro Machado Netto, bateu pé e fez do Estrelado o primeiro clube gaúcho a excursionar pela Europa e o primeiro time brasileiro a jogar na Ásia.

- O pai foi muito corajoso - lembra o advogado e jornalista José Antonio Pinheiro Machado, o Anonymus Gourmet.

A maior aventura do hoje centenário Cruzeiro começou em outubro de 1953 e só acabou em janeiro de 1954. Os 28 pioneiros passaram por seis países e disputaram 15 jogos. O retrospecto até hoje é comemorado: sete vitórias, cinco empates e apenas três derrotas.

- Foi uma experiência fabulosa. O que mais ganhei com o futebol - lembrou, por telefone, Marcelo Castillo, o zagueiro Xisto, que tinha 21 anos quando participou da gira de 105 dias viajando em navio, avião, trem e ônibus.

O louco! Assim o jornalista Cid Pinheiro Cabral descreveu o Cruzeiro por ter a coragem de, no final de 1953, sair em uma excursão pela Europa e pela Ásia. Algo nunca feito por um clube gaúcho.

O texto, publicado na Revista do Globo de 20 de fevereiro de 1954, contando as façanhas da turnê, relatava que "um clube relativamente modesto" desbravara entre novembro anterior e janeiro daquele ano seis países em dois continentes.

A loucura só saiu pela teimosia, do advogado e presidente do clube, Antônio Pinheiro Machado Netto. O ex-deputado constituinte, então com 29 anos, havia negociado a ida com o empresário José da Gama, responsável por levar diversos times brasileiros para viagens pelo mundo.

No planejamento inicial, a estreia no Velho Continente seria contra o Espanyol, de Barcelona. Só que na chegada, no porto da capital da Catalunha, a primeira surpresa. O empresário não apareceu. De imediato, o técnico do time, Osvaldo Rolla, o Foguinho, chamou Pinheiro Machado em um canto e, mostrando uma mala cheia de dólares falou:

- Eu sabia que não ia dar certo! Trouxe esse dinheiro para ajudar na estadia e na viagem de volta.

José da Gama, porém apareceu em cima da hora. Mas outra surpresa esperava a delegação estrelada. Como havia sido filiado ao PCB, Pinheiro Machado não poderia desembarcar na Espanha, que vivia sob a ditadura de Francisco Franco. Só que o começo da viagem ainda traria mais uma surpresa.

"Sou o Waltão, de Canoas"

Diz o ditado: quando a lenda supera a realidade, imprima-se a lenda! Ninguém sabe ao certo, afinal, o próprio Walter Spiess, o Waltão, que morreu aos 64 anos, em 1997, gostava de deixar um mistério no ar, como os filhos, o gerente de vendas Alexandre, 53 anos, e o cheff Floriano, 45 anos, lembram. Mas vamos à história. Ou à lenda.

Zagueiro firme, Waltão ficou encarregado de marcar o craque do Real Madrid. Na terceira entrada mais dura, o argentino Di Stéfano, o Messi da época, reclamou:

- Mire, pibe, yo soy Di Stéfano, do Real Madrid.

Waltão, nem aí para a fama do craque, respondeu:

- E daí? Sou o Waltão, de Canoas.

Contra o todo poderoso

Todos pensavam em começar a excursão com um time mais fraco, afinal, recém haviam desembarcado de longos dez dias no mar. Mas o Cruzeiro foi encarar logo um casca grossa. O adversário da estreia seria o poderoso Real Madrid, do argentino Di Stéfano - considerado por alguns melhor do que Pelé - e o espanhol Gento.

Era um domingo, 8 de novembro. O Estádio Chamartin (que seria remodelado e viraria Santiago Bernabeu) estava cheio. Mas o jovem time do Cruzeiro não se intimidou.

- A gente queria era jogar - lembra Nadir Prates, o Laerte III, pai do ex-meia colorado Jair, o Príncipe Jajá.

Com média de idade de 22 anos, o Estrelado foi brioso. Chegou junto, como gostava o técnico Foguinho, e arrancou um honroso 0 a 0.

- Aquele resultado fez outros times se interessarem por jogar com o Cruzeiro - lembra o zagueiro Xisto, que complementa:

- Tínhamos um bom time. O Laerte III, por exemplo, era muito bom, uma beleza de jogador.

Laerte conta:

- Pô, foi uma surpresa. O empresário tinha que ter arrumado um time mais fraquinho. Quando falaram que era o Real Madrid a turma falou: "Pô, logo de cara o Real Madrid?"

O zagueiro que parou Di Stéfano

Quando se fala de zagueiro trombador, se pensa logo em alguém grosso, sem cultura. Com o marcador que parou Di Stéfano, porém, não era assim. Aos 20 anos, recém chegado da categoria de base do Grêmio, Waltão era um sujeito culto.

- O pai era um dos poucos que falava outra língua. Como estudava no Rosário, aprendeu francês e inglês - conta o filho Floriano, para lembrar:

- Ele aproveitou bastante a viagem. Saía para passear, visitou museus.

MORTE NA TURQUIA

Na Turquia, aconteceu a terceira surpresa. Ou, melhor, imprevisto. Em Istambul, o secretário do clube, Rivadavia Prates, morreu de um ataque cardíaco.

O zagueiro Waltão sentiu muito a perda do companheiro de viagem e descumpriu uma das normas baixadas por Osvaldo Rolla. Foguinho, técnico de regras rígidas, não queria que ninguém bebesse.

Abalado com a perda, Waltão saiu e tomou um porre. Na volta para o hotel, às 21h30min, ocorreu o seguinte diálogo, lembrado por Floriano, filho de Waltão.

- Senhorrrrr Waltão (Foguinho arrastava os erres e chamava todo mundo de senhor), o senhorrrr bebeu?

- Bebi, sim! Não enche! O senhor vá tomar.... Eu vou dormir.

No dia seguinte, Foguinho chamou o grupo no hotel e anunciou:

- Senhorrrr Waltão, pelo que o senhorrrr fez, está dispensado. Pode irrrr embora.

Waltão pediu a palavra:

- Está certo, seu Rolla. O senhor é como um pai pra mim. Aceito a sua punição, vou embora, mas antes, quero pedir perdão para o senhor e para todo o grupo.

O zagueiro foi fazer as malas. Cerca de 15 minutos depois, ouviu alguém bateu à porta do quarto. Era Foguinho, que disse:

- O senhorrrr foi humilde em reconhecerrrr o erro e pedirrrr desculpas. Pode desfazerrrr as malas e ficarrrr!

A chegada triunfal

Uma turnê tão exitosa como essa não poderia terminar de forma diferente. O Cruzeiro voltou à Espanha e encarou duas vezes o Espanyol, no Estádio Sarriá, em Barcelona. A equipe de Foguinho ganhou as duas partidas - 4 a 2, em 3 de janeiro, e 2 a 1, em 6 de janeiro de 1954.

Depois, mais dez dias de navio, no transatlântico Augustus, e a última viagem de avião. O Estrelado desembarcou em Porto Alegre em 29 de janeiro, como descreveu a Revista do Globo, "sob manifestações transbordantes de carinho e entusiasmo".

Quem tem mais de 40 anos lembra bem desse estádio. Foi lá que, em 1982, o Brasil perdeu por 3 a 2 para a Itália e foi eliminado da Copa.

Confira o vídeo:

A viagem

- Saída, de avião, em 22 e 23/10/1953, de Porto Alegre.

- O embarque no transatlântico Giulio Cesare aconteceu no Rio, no dia 24.

- A chegada na Europa foi no dia 4/11, no porto de Barcelona.

- Passou por Espanha, França, Itália, Suíça, Israel e Turquia.

- Foram 15 jogos: sete vitórias, cinco empates e três derrotas.

- A volta foi no transatlântico Augustus.

- Chegada em Porto Alegre foi em 29/1/1954.

As partidas

- 8/11/53 - 0x0 Real Madrid (Madri, Espanha)

- 11/11/53 - 0x4 Toulouse (Toulouse, França)

- 22/11/53 - 6x2 Lausane (Lausane, Suíça)

- 25/11/53 - 0x0 Torino (Turim, Itália)

- 2/12/53 - 0x0 Lazio (Roma, Itália)

- 8/12/53 - 2x1 Maccabi Tel Aviv (Tel Aviv, Israel)

- 11/12/53 - 2x1 Maccabi Petah (Petah Tikva, Israel)

- 15/12/53 - 5x0 Hapoel Haifa (Haifa, Israel)

- 17/12/53 - 0x0 Seleção de Israel (Tel Aviv, Israel)

- 19/12/53 - 2x2 Besiktas (Istambul, Turquia)

- 20/12/53 - 1x3 Seleção da Turquia (Istambul)

- 24/12/53 - 2x5 Fernebahce (Ankara, Turquia)

- 27/12/53 - 3x2 Galatasaray (Ankara, Turquia)

- 3/1/54 - 4x2 Espanyol (Barcelona, Espanha)

- 6/1/54 - 2x1 Espanyol (Barcelona, Espanha)

Os 28 heróis

JOGADORES

- Jorge Américo LAPAZ, goleiro

- AMAURI Ferrari Gomes, goleiro

- WALTÃO, Walter Spiess, zagueiro

- XISTO, Marcelo Ernesto Castillo, lateral

- PAULISTINHA, Carlos Bermudez Guedes

- RUY Scalari, zagueiro

- LÉO Alves da Fonseca, lateral

- LAERTE III, Nadir Eraldo Prates, centromédio

- CASQUINHA, Antônio Joaquim Gonçalo Filho, centromédio

- CELSO Pedro ADAMS, centromédio

- Bernardino FERRAZ, meia-direita

- JARICO, Jari dos Santos, ponta-esquerda

- TESOURINHA II, Odilon Ribeiro, atacante

- RUDIMAR Machado Gomes, atacante

- HUGUINHO, Hugo Ignácio Kuhn, centroavante

- Rubens HOFFMEISTER, atacante

- DELTON, zagueiro,

- BOLACHA, zagueiro

- NARDO, meia-esquerda

COMISSÃO TÉCNICA

- OSVALDO ROLLA, o Foguinho, técnico

- Antônio Pinheiro Machado Netto, presidente

- Rivadávia Prates, secretário

- Ivan Macedo Coelho, tesoureiro

- Jorge Elias Thomaz, diretor de futebol

- Abrão Lehermann, massagista

- Belmiro Terra, conselheiro

- Ari dos Santos, jornalista

- Francisco Dall'igna, médico

- Turismo - Além de jogar futebol na Europa e na Ásia, os jogadores também aproveitaram para visitar cidades como Paris, Roma e o Vaticano. Capitaneado pelos atletas que falavam alguma língua estrangeira - uns dois ou três, segundo Laerte III -, o grupo conheceu pontos turísticos como a Torre Eiffel, na França, e o Coliseu (foto ao lado), na Itália.

- Emprestados - O Cruzeiro conseguiu o empréstimo de dois jogadores para a excursão: o goleiro La Paz, do extinto Nacional, de Porto Alegre, e o lateral Paulistinha, do Renner.

- A nova casa - Um estádio moderno, dentro dos padrões Fifa. Essa é a obra que está sendo tocada no Distrito Industrial de Cachoeirinha. Com inauguração prevista para 2014, o arena do Cruzeiro será a casa estrelada no primeiro Gauchão do centenário clube, agora, da Região Metropolitana.


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