Dez palcos da Guerra dos Farrapos
A fortaleza de Canabarro no Pampa
Nascido em Taquari, na região central do Estado, general teria sido um dos chefes farrapos mais polêmicos e indecifráveis da revolução

O general David Canabarro não costumava se abrigar entre as muralhas dos quartéis, preferia as amplidões das planícies, talvez se sentisse mais à vontade na companhia dos astutos guaraxains, os pequenos lobinhos do Pampa.Terminada a Revolução Farroupilha, comprou a Estância São Gregório, em Santana do Livramento, junto aos campos onde fazia manobras com suas tropas durante a guerra civil.
São Gregório consolidou o fortim do campeador Canabarro. Assentado no topo de um morro em forma de tabuleiro - mais alto que uma coxilha, a superfície plana como uma pista de aterrissar -, o casarão domina a paisagem. Ninguém se aproximava do lugar, não importava de que lado viesse, mesmo rastejando entre os chircais ou se escondendo nos ocos dos ninhos das emas, sem que fosse percebido por sentinelas.
Valentes, decididos e espertos, todos os chefes farrapos eram. Uns mais em alguma virtude, outros menos em outro atributo. No entanto, nenhum deles teria sido mais matreiro, mais polêmico e mais indecifrável do que o militar nascido em Taquari (região central do Estado) sob o batismo de David José Martins. O próprio fato de trocar o sobrenome, assumindo o Canabarro a partir de dezembro de 1836, sinaliza uma personalidade diferente.
O atual guardião da Estância São Gregório, José Carlos Alves Simões, o Juca, 76 anos, mostra o quanto Canabarro era prevenido. Ao redor do casarão, mandou que os escravos erguessem muros de pedra, em alguns trechos com quase três metros de altura. Seteiras, dispostas estrategicamente nas muradas, permitiam que atiradores repelissem eventuais invasores. As aberturas eram cônicas: afunilavam para o lado de fora, para dificultar a ação do inimigo.
- Estamos como na copa de um chapéu. Aqui se tem uma visão de tudo a cerca de 1,5 quilômetro de distância - compara Juca, descendente de Canabarro.
O farroupilha não descuidou de minúcias no seu mangrulho campeiro. Da São Gregório, podia avistar a faixa negra de mata que assinala a linha de fronteira com o Uruguai. Deveria gostar da proximidade com o país vizinho: em tempos de paz, para negociar cavalos e bois; na brutalidade das guerras, para retiradas em caso de emergência.
Juca Simões destaca que o ancestral era incansável. Nos currais de pedra, mantinha cerca de 40 cavalos encilhados, noite e dia, para urgências. Alistava os soldados a dedo - deveriam ser dentes-secos, como os gaúchos definem os que não têm medo nem de assombração.
Só a escrava Cândida temperava a comida
Canabarro também tinha seus receios, como o de ser envenenado. A avó de Juca Simões, dona Rodolfina, que morreu na década de 1980, aos 102 anos, contava que o general só confiava numa escrava, a Cândida, uma mulata alta, magra e simpática. Somente ela podia temperar-lhe a comida, limpar suas camisas, guardar as botas, mexer nos seus baús.
De tão apegado, Canabarro levava Cândida para os bivaques nos confrontos. No momento de almoçar, independente de quem fosse o cozinheiro, era a escrava quem provava do prato antes de o patrão sacar os talheres. Quando o general morreu, em 1867 (segundo Ivo Caggiani, porque outros historiadores citam data diferente), aos 71 anos, a suave Cândida ficou inconsolável. Chorava quando expunha as roupas dele ao sol, para que não mofassem.
Era confusa a intimidade do comandante farroupilha que negociou a paz com o Império do Brasil. Casou-se duas vezes, conforme Caggiani: primeiro com uma tia, depois com uma cunhada. Teve amantes - como revela o livro Os Amores de Canabarro, de Otelo Rosa. Mas era com Cândida que serenava.
Uma trajetória de bravura e névoa
David Canabarro não teria conspirado com os farrapos. Resolveu aderir somente um ano depois que eclodiu a revolução. Teve um desempenho que oscilou entre extremos: foi saudado como brilhante em alguns combates, mas criticado como vilão em dois episódios nebulosos que até hoje dividem os historiadores.
O militar destacou-se na segunda fase da rebelião, ao comandar a anexação de Santa Catarina na expedição de 1839. Nos últimos anos, quando Bento Gonçalves se desgastava com fofocas e Antônio de Souza Netto parecia desanimar, coube a Canabarro liderar o enfrentamento desigual contra as tropas imperiais por meio da tática de guerrilha.
Se pendurou medalhas no peito por méritos, também colecionou acusações contra si. Em 1839, durante a ocupação de Laguna, teria ordenado castigar o povoado de Imaruí e liberado o saque, o que resultou em abusos contra civis. Em 1844, teria orquestrado o massacre dos lanceiros negros farroupilhas, na batalha do Cerro dos Porongos. Ninguém duvidaria da bravura de Canabarro. Nem todos aprovariam sua conduta sem ressalvas.

Baú farrapo
A paisagem da Estância São Gregório quase não mudou nos últimos 150 anos. É possível avistar movimentos furtivos dos guaraxains, também chamados de zorro, nas matas ou sobre os mangueirões de pedras. Arredios, logo tornam a desaparecer.
No livro David Canabarro, de Tenente a General, o pesquisador Ivo Caggiani, de Santana do Livramento, informa que o líder farrapo teve o seu batismo de fogo com apenas 15 anos, em 1811, ao servir nas tropas de Dom Diogo de Souza que penetraram no Uruguai, sendo promovido a cabo ainda adolescente.
Canabarro era militar por vocação. Lutou nas campanhas contras os espanhóis em 1811, 1812, 1825, 1827, quando chegou a tenente. Depois na Revolução Farroupilha. E não parou mais: combateu contra o ditador argentino Juan Manuel de Rosas (1851-52), comandando a Divisão Ligeira, e na Guerra do Paraguai.
O médico veterinário Guilherme Alves Pinto, 66 anos, descendente do general, informa que a família Canabarro se multiplicou. Hoje, os rebentos exercem as mais variadas profissões, inclusive seguindo a produção rural.
David José Martins tornou-se fazendeiro em 1834, ao comprar a Estância da Alegria, em Livramento, em sociedade com o tio Antônio Ferreira Canabarro. Doze anos depois, a dupla adquiriu a Estância São Gregório, na mesma região. Hoje, o guardião do local é Juca.
Foi estúpida a causa da morte de Canabarro. Em março de 1867, ao lidar com o gado no curral, sofreu uma lesão no pé. Não era grave, a princípio, mas uma infecção o matou dias depois, apesar do socorro de médicos que se deslocaram até a estância.