Anatomia de uma decisão
Os estranhos motivos que derrubaram a obrigatoriedade do extintor nos carros
Data em que novo tipo do equipamento passaria a ser cobrado foi adiada três vezes
Em janeiro, quando o extintor de incêndio do tipo ABC tornou-se obrigatório em todos os carros do Brasil, o governo resolveu adiar a exigência para 1º de abril. Às vésperas do Dia dos Bobos, o Ministério das Cidades prorrogou por mais três meses o prazo para que o cidadão gastasse seu dinheiro na compra do equipamento. Nesse momento, o ministério já trabalhava em surdina para eliminar a obrigatoriedade de qualquer tipo de extintor nos automóveis brasileiros.
Decisão sobre extintores contraria parecer da Câmara dos Deputados
A revelação foi feita a ZH pelo diretor do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) e presidente do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), Alberto Angerami. Ao assumir, em março, ele foi chamado pelo novo ministro das Cidades, Gilberto Kassab, e recebeu a incumbência de revisar a norma, fruto de trâmites que haviam tomado anos de trabalho de seus antecessores.
- O ministro Kassab me disse: "Angerami, estuda bem o problema dos extintores, porque eu tenho recebido informações de especialistas dizendo que o extintor não é um equipamento obrigatório nos países de Primeiro Mundo". Na minha assunção, ele já colocou essa questão: faça uma análise criteriosa, etecetera, etecetera e etecetera. Essa ideia de tornar optativo o equipamento já vem de março, mas eu não podia divulgar com antecedência, porque senão os movimentos contrários seriam muito grandes - contou Angerami.
Extintor deixa de ser obrigatório para os veículos de passeio
O Ministério adiou três vezes a data em que o novo tipo de extintor supostamente passaria a ser item obrigatório, dilatando o período em que os proprietários de automóveis preocuparam-se em comprá-lo e em que os fabricantes acreditaram que deveriam produzi-lo. O último prazo estabelecido foi 1º de outubro. No dia 17 deste mês, a duas semanas da data limite, veio o anúncio: não haverá necessidade do equipamento nos carros. De uma hora para outra, a política nacional passou da convicção de que os veículos precisavam de um extintor melhor para a de que não havia necessidade de extintor nenhum. Quem comprou o item e pagou caro por ele sentiu que havia sido feito de bobo.
"Estamos estudando medidas jurídicas", diz representante da indústria
"Havia uma especulação muito grande", diz presidente do Contran
Certa ou errada, a decisão de tornar opcional o equipamento foi tomada por meio de um processo simplificado e abreviado, em comparação com os trâmites realizados uma década atrás, quando o Brasil começou a discutir a questão da obrigatoriedade do extintor. Na ocasião, foram dois anos de estudos no âmbito da câmara temática de assuntos veiculares, que reúne representantes do Denatran, do Polícia Rodoviária Federal, do Dnit, dos Detrans, de órgãos municipais, dos fabricantes de veículos, dos fabricantes de peças e do Inmetro, entre outros.
- O processo feito então, que resultou na decisão da obrigatoriedade e na adoção do ABC, foi imenso. Na primeira fase, cada um puxou a sardinha para o seu lado, mas aí houve condição de conhecer os prós e os contras. Depois disso, o processo subiu para o Contran, que decide com base nos estudos que passaram pela câmara temática - recapitula Alberto Peres da Silva, que dirigiu o Denatran e presidiu o Contran entre 2005 e 2010.
Na ocasião, segundo ele, a indústria automobilística teria tentado derrubar a exigência de extintores, para reduzir seus custos, mas prevaleceu o entendimento de que o item era necessário. Como seria mantido, decidiu-se que deveria ter eficiência maior - por isso, em lugar do tipo BC, optou-se pela substituição pelo tipo ABC. O Contran, formado por integrantes de diferentes ministérios, analisou os dados e aprovou a novidade. A obrigatoriedade em todos os veículos foi fixada para 1º de janeiro de 2015.
Nessa data, coincidentemente, Gilberto Kassab tornou-se ministro das Cidades. Depois de ele receber as "informações de especialistas" relatadas por Alberto Angerami, a orientação para que a obrigatoriedade do extintor fosse rediscutida obedeceu a uma sistemática bastante diferente da anterior. O atual diretor do Denatran diz que chamou seus técnicos, fez consultas e examinou estudos. Em seis meses, a obrigatoriedade do extintor estava sepultada.
- Não foi uma decisão açodada nem descabida - garante Angerami.
Ele reconhece que a discussão não passou pelas câmaras técnicas. Mas afirma que os registros dos estudos feitos há uma década foram consultados - ainda que a decisão final tenha sido oposta.
Antecessor de Angerami, Peres da Silva sustenta que a decisão deste mês não teve a transparência e o grau de participação da que foi tomada no passado.
- Foi uma decisão tecnicamente falha e politicamente desastrada, tomada internamente por Denatran e Contran, sem passar pelo órgão consultivo. Houve pressão das montadoras no sentido de reduzir custos, tendo em vista os problemas na venda de veículos. Se você perguntar à indústria automobilística sobre o extintor, eles sempre vão apresentar dados técnicos garantindo por A mais B que não precisa. Mas você tem de ouvir o outro lado. A pressão é sempre muito grande, mas você não pode tomar decisão com base em pressões - critica.
Angerami nega que essas pressões tenham ocorrido. ZH solicitou entrevista com um representante da Associação Nacional dos Veículos Automotores (Anfavea), mas obteve apenas uma declaração escrita do presidente da entidade, Luiz Moan, na qual ele expressa o apoio à decisão que isenta as fábricas de equipar veículos com o extintor.
Decisão nova baseou-se em argumentos velhos
Na semana passada, ao anunciar que o extintor de incêndio deixaria de ser obrigatório, o governo federal apresentou como justificativas a evolução tecnológica dos veículos, a falta da mesma exigência em grande parte dos países desenvolvidos e um estudo segundo o qual os incêndios em carros raramente seriam combatidos com o equipamento de segurança.
Em entrevista a ZH, o presidente do Contran repetiu essas explicações. Nenhuma delas é fato novo que tenha surgido durante o processo de análise que o governo diz ter realizado para embasar sua decisão. Elas já foram avaliadas na década passada, quando um processo de discussão mais amplo decidiu que o extintor deveria continuar obrigatório.
Alberto Angerami afirmou que apenas a Bélgica, na Europa, exige que todos os carros contem com o item. Para ele, isso representa uma "tendência clara" contra a obrigatoriedade. Questionado por ZH, no entanto, reconheceu que nenhum país revogou a obrigatoriedade recentemente e que o quadro internacional já era conhecido das autoridades brasileiras no passado. A outra justificativa foi o avanço tecnológico, que tornou menos prováveis os incêndios em automóveis.
- Você lembra da Kombi e da Brasília? Eram carros que a gente passava na rua e sempre tinha um incendiado. Eram erros técnicos da própria fábrica, que eu não gosto de falar para não denegrir a imagem da Volkswagen, que fez um bem para o Brasil. Mas a Kombi e a Brasília eram campeãs de incêndio. Agora, os carros modernos são bem analisados, são tecnicamente excelentes no que diz respeito a incêndios - diz Angerami.
O presidente do Contran e diretor do Denatran, contudo, admitiu que esse avanço tecnológico não é recente. Seu antecessor, Alfredo Peres da Silva, relata que o mesmo argumento foi analisado quando se decidiu pela obrigatoriedade do extintor:
- Já naquela época havia a argumentação de que não existia necessidade do extintor, pois os carros tinham um dispositivo que evitava o fogo. Mas ficou provado que não era suficiente. Existem inúmeros casos recentes de recall de veículos novos, inclusive de luxo, que apresentam muito risco de incêndio.
Como base para revogar a obrigatoriedade, o Ministério das Cidades citou também um estudo segundo o qual em "2 milhões de sinistros em veículos cobertos por seguros, 800 tiveram incêndio como causa. Desse total, apenas 24, o equivalente a 3% dos casos, informaram que usaram o extintor". O Ministério afirmou que esses dados eram da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA). Uma semana mais tarde, a mesma atribuição foi repetida por Angerami, em entrevista a ZH.
Consultada, a AEA afirmou não ter nenhuma ligação com o estudo citado. Segundo sua assessoria de comunicação, uma nota corrigindo a informação não foi divulgada porque a entidade "não queria bater de frente" com o Contran. Mesmo assim, a associação tentou descobrir de onde teria partido o tal estudo. Não descobriu o autor.
ZH pediu à assessoria do Ministério das Cidades esclarecimentos sobre a íntegra, a autoria e a data do estudo. A resposta reiterou que o trabalho seria seria da AEA, informou que ele é de 2000 (ou seja, é antigo e já existia quando se decidiu, na década passada, pela obrigatoriedade) e acrescentava que "inclusive há uma reportagem da revista Veja na edição de 19 de janeiro de 2005 onde cita esse levantamento". ZH voltou a fazer contato, questionando se o Contran tinha a íntegra e a autoria do estudo em que baseou a decisão que afetou milhões de brasileiros. Resposta: "A informação que temos é a que passamos no e-mail anterior".
ZH consultou a referida edição de Veja. O trecho da reportagem que fala sobre o estudo é quase igual ao que o Ministério das Cidades apresentou para sustentar sua decisão.