#belarecatadadolar
Entenda a polêmica após matéria com perfil de Marcela Temer
Reportagem que descreve mulher de Temer como "bela", "recatada" e "do lar" provocou reação de grupos feministas e mobilizou redes sociais
Sob o estandarte de três termos singelos – "bela", recatada" e "do lar" –, um levante feminino tomou de assalto a sociedade brasileira nas últimas horas, transformando-se no assunto dominante em redes sociais como Twitter e Facebook e ganhando repercussão na imprensa, inclusive internacional.
A mobilização, extravasada com doses generosas de bom humor, teve como gatilho um texto publicado no começo da manhã de segunda-feira em uma edição digital extra da revista Veja após a aprovação do impeachment na Câmara. Em meio a matérias intituladas "A hora e a vez do vice", "Tudo a favor de Temer" e "O apogeu do PMDB", a publicação de oposição ao governo ofereceu uma espécie de perfil de Marcela Temer, mulher do atual vice-presidente, Michel Temer, anunciando-a como "quase primeira-dama".
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"Bela, recatada e do lar": por que a expressão gerou tanta polêmica?
O texto de três páginas, com o título "Bela, recatada e do lar", teve o poder de desencadear uma onda massiva de reações, mobilizando desde adolescentes até senhoras, e alcançando também consideráveis parcelas do público masculino. O motivo: o texto foi entendido como a suprema celebração da mulher-bibelô – dócil, submissa e sem ambições profissionais.
Marcela é descrita no texto como uma jovem que, depois de se destacar envergando maiôs em concursos de miss, casou-se aos 20 anos com o primeiro namorado, 43 anos mais velho – Temer. Ao encontro inaugural com o pretendente, teria comparecido acompanhada pela mãe. A matéria afirma que "Mar" prefere vestidos na altura dos joelhos, que jamais trabalhou depois de contrair matrimônio, que se dedica a cuidar do filho e da casa e que tem como sonho dar a Temer uma filha.
A reação demorou um certo tempo para engrenar. Na segunda-feira, apareceram as primeiras postagens. Na terça-feira, começaram a estourar, até viralizar. O professor Fábio Malini, coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo, especializado em monitorar comportamento das redes sociais, afirma que o tema era o mais comentado na internet ontem – um estudo detalhado será feito quando a onda amainar.
De acordo com o especialista, em situações desse tipo, as primeiras postagens são semeadas por usuários hard da rede, com muitos seguidores, que por sua vez tratam de disseminar a mensagem. O papel inicial foi cumprido, nesse caso, por vários coletivos e instituições feministas e também por celebridades. Mas o movimento só conseguiu extrapolar um universo mais reduzido por, aparentemente, ter tocado em nervos expostos.
– Apesar de essa ser uma causa feminista, não ficou presa nesse reduto, porque gerou repúdio nas mulheres em geral. Muitas trabalhadoras publicaram imagens suas no local de trabalho. A reportagem não poderia ter sido publicada em um contexto pior. Além de vivermos no Brasil um momento de fortalecimento das causas feministas, ela apareceu um dia depois da aceitação do impeachment, que teve Temer como um dos principais articularedores – interpreta Malini.
Se no começo as postagens eram mais reações de indignação ao teor da reportagem, considerado machista, a partir da terça-feira ganharam um escopo mais sarcástico e organizado. Milhares de mulheres – e muitos homens – fizeram o mesmo. Divulgaram imagens de si nas mais variadas e provocativas situações, fazendo sempre uma referência jocosa ao dístico "Bela, recatada e do lar". Páginas surgiram reunindo a coleção inabarcável de fotos. Com a efervescência nas redes, veículos de imprensa abraçaram o tema. À tarde, havia repercussões, com comicidade, em veículos estrangeiros.
Para Malini, um componente político importante da repercussão teria a ver com o fato de que a figura feminina que emerge como ideal na matéria choca-se frontalmente com a imagem da presidente Dilma Rousseff. O especialista afirma que ainda não eram muito evidentes ontem nas redes sociais posições favoráveis ao ponto de vista adotado por Veja – ainda que, na caixa de comentários da reportagem de ZH sobre o tema, o ódio às feministas aparece várias vezes.
– Logo vão surgir pessoas para dizer que estão violentando a opção das mulheres que ficam em casa. Aparecerão com a figura do isentão, com um escopo de criticidade, mas que na verdade tentarão reprimir o movimento.
O casal não comentou a matéria.
Para especialistas, texto traz modelo que não é mais aceito
A cientista política Jussara Prá, coordenadora do núcleo interdisciplinar de estudos sobre mulher e gênero da UFRGS, soube da movimentação em torno do perfil de Marcela Temer na terça-feira, em sala de aula. O tema foi trazido por alunas e alunos revoltados. Desde então, vem recebendo dos estudantes uma enxurrada de e-mails com as piadas e os memes suscitados pela matéria. Jussara encara a mobilização como algo revelador de uma mudança positiva na sociedade brasileira:
– É gratificante saber que não se tolera mais esse tipo de discurso. Há uma consciência do papel da mulher. O ideário feminista está impregnado em toda a sociedade. As pessoas já não aceitam situações de subordinação, não comportam essa lógica patriarcal em que a mulher é submissa e propriedade do homem.
Maria Fernanda Salaberry, do Coletivo de Mulheres da UFRGS e da Marcha das Vadias, identificou no texto publicado por Veja, uma tentativa de apresentar um modelo de mulher que fosse contrário ao perfil da presidente Dilma Rousseff. Ao fazer isso, entende Maria Fernanda, acabou por pintar um retrato que nos dias de hoje só se consegue imaginar em sépia:
– A revista levanta valores que já não existem desde a década de 1950 nos espaços públicos. Ninguém mais defende publicamente que a mulher não trabalhe. Nem minha avó usa a palavra "recatada".
Os detalhes do relacionamento entre Michel Temer e Marcela também ajudaram a derramar combustível sobre a polêmica incandescente. Um perfil publicado em 2011 pela revista TPM revela que Marcela, então com 19 anos, foi levada por insistência do pai a um evento onde seria apresentada a Temer, então com 62 anos. Segundo a própria Marcela, seria uma chance de fazer um contato que pudesse "dar um up" em sua carreira de modelo. Semanas depois, o pai disse que ela deveria enviar um e-mail ao político.
Três dias depois, o então deputado federal telefonou. Mais uns dias e passou na casa dela, em Paulínia (SP), para apanhá-la com seu Ômega preto. Depois de 40 minutos, estavam aos beijos. Marcela começava o seu primeiro namoro.
– Eles praticamente entregaram uma mulher virgem para casar. Parece que está se falando de um casamento do Oriente Médio, em que se entrega uma menina a um velho rico. E chamam isso de conto de fadas – critica Maria Fernanda.
No ano em que Marcela deu a entrevista à TPM, um outro assunto trouxe seu nome ao noticiário. Sua irmã, Fernanda Tedeschi, assinou contrato para posar nua na Playboy. Algumas imagens chegaram a ser divulgadas, mas o ensaio combinado nunca foi feito. Sabe-se que Temer não teria gostado nada da "falta de recato" da cunhada, e que ela cancelou a sessão, sem maiores explicações – especula-se que tenha pago uma multa polpuda pela quebra de contrato. Hoje, Fernanda está casada e vive no interior paulista.