Trocando em miúdos
Afrouxar Lei das Drogas gera polêmica
Proposta de juristas para descriminalizar usuários de drogas gera debate. Policiais temem tráfico mais forte e o aumento de dramas como o da mãe desta reportagem

O olhar cansado, as marcas roxas no corpo e a perna direita enfaixada denunciam o drama vivido pela técnica em enfermagem Maria Helena Gonçalves, 54 anos. Na noite de terça-feira passada, na fissura para usar crack, o filho mais velho, Darlan, de 30 anos, entrou em casa, no Bairro São José, Zona Leste da Capital, quebrando portas. Até paredes racharam.
Queria algo para trocar por droga. A mãe e as irmãs reagiram. Durante sete horas, encararam obstáculos no serviço público para dar socorro ao filho.
- Há 13 anos, a gente sofre com isso. Meu filho já foi preso roubando por causa do crack, já tentei tirá-lo desse caminho. Sem dinheiro para clínica particular, não dá. Ele não é só um problema para a nossa família - desabafou a mãe.
Na boca de fumo, foi melhor tratada
Maria Helena se refere à questão social dos viciados. E sobre isso, uma novidade da semana promete fortes debates. A Comissão Especial de Juristas, que elabora o anteprojeto do novo Código Penal, aprovou uma proposta que descriminalizaria por completo os usuários de drogas. Deixariam de ser assunto de polícia para ser de saúde. O temor de especialistas é que a medida potencialize o drama, aumentando o número de viciados.
Maria Helena teve certeza, na terça-feira, de que o Estado não está pronto para atender nem à atual demanda:
- Já entrei em boca para tirar o meu filho e já fui melhor tratada do que em locais públicos.
Depois de muita insistência, conseguiu a medida judicial determinando a internação do filho. Após três dias no Pronto-Atendimento da Vila Cruzeiro, foi para o Hospital Parque Belém na noite de quinta.
Problema para a segurança...
Eram 22h de segunda-feira quando Darlan chegou em casa descontrolado. Foi direto à casa onde vive com a mulher e os dois filhos, nos fundos do terreno do lar da mãe, e derrubou com um pontapé a porta de ferro. Buscava celulares e qualquer objeto que lhe servisse na boca de fumo.
A mãe, as duas irmãs e a esposa tentaram contê-lo e, sem forças, acionaram o 190. Nada. Pediram socorro ao carro da BM que passou em frente à casa. Nada. A ajuda só veio quando um vizinho correu até um posto e levou a viatura até lá. Darlan, amarrado, foi ao posto da Cruzeiro. Ali, só poderia ficar por horas. A mãe comentou:
- Se voltasse para casa, poderia matar alguém. Disseram para tentar ação judicial o proibindo de entrar em casa, mas aí empurro o problema aos outros.
A mãe já esteve em boca de fumo para recuperar o carro que o filho usou para pagar dívidas.
... e para a saúde
Era madrugada e a mãe foi incansável. Seguiu um caminho feito outras duas vezes. Ao longo de 13 anos de vício em crack, Darlan havia sido internado três vezes. Maria Helena tentou colocá-lo em uma fazenda particular, mas o preço era alto demais.
O caminho na terça foi o plantão do Fórum Central. Havia somente um defensor público, e ele estava atendendo outro caso. Ela foi orientada a voltar de manhã, mas poderia ser tarde demais:
- Ameacei protestar, tirar a roupa para chamar atenção. Assim como eu, muitas famílias sofrem.
Não foi preciso ficar nua. Eram 5h quando falou com o defensor público, que encaminhou a internação judicial. O pedido chegou ao posto da Cruzeiro depois das 6h. Garantiu a permanência do viciado até a ida para o Parque Belém.
Compare
A proposta
* Descriminalizar o porte de drogas para consumo próprio e mudar o período da pena estimada para quem trafica.
* Faz parte de um pacote de mudanças no Código Penal a ser avaliado pelo Congresso. Até 25 de junho, deve fazer parte de um projeto de lei. Aí, passa à análise de deputados e senadores. Até lá, segue valendo a atual Lei das Drogas.
Usuário
* Atualmente, o usuário de drogas flagrado com quantidade suficiente somente para o seu consumo não é punido com prisão, mas comete crime de posse de entorpecentes. A pena vai de advertência à prestação de serviços e o comparecimento a cursos educativos.
* A proposta é de que isso deixe de ser crime, exceto quando o consumo for próximo de escolas ou na presença de crianças e adolescentes.
Consumo
* Hoje, a definição da quantidade para consumo próprio é definida pelo juiz.
* A proposta é fixar medidas para cada droga - dentro do consumo médio para cinco dias. Caberá à Anvisa a definição.
Tráfico
* Atualmente, a pena para esse crime vai de cinco a 15 anos. A proposta fixaria penas entre cinco e dez anos.
* Se alguém for flagrado vendendo drogas, será considerado traficante.
* Os juristas avaliam a hipótese de penas diferenciadas, de acordo com a droga.
* Ainda foi proposta pena de seis meses a um ano para o "uso ostensivo", que se aplicaria a quem consumir drogas em locais públicos e com presenças de crianças e adolescentes. Quem instigar, induzir ou auxiliar alguém ao uso pode cumprir pena de seis meses a dois anos.
O SUS aguentaria?
A principal ideia da comissão é mudar o foco de repressão no assunto das drogas. Segundo os autores da proposta, o viciado é um doente crônico e assim deve ser tratado pelo sistema público de saúde.
A proposta é considerada positiva pelo secretário estadual da Saúde, Ciro Simoni, que nega haver superlotação nos leitos para desintoxicação no Estado. Segundo ele, não se trata de uma liberação, mas de uma adaptação à realidade.
- As prisões já estão lotadas. Um usuário pego com maconha não pode engrossar esse número, precisa ser tratado diferentemente.
Em contrapartida, o ex-secretário da Saúde e atual deputado federal Osmar Terra considera a proposta um retrocesso, justificando que resultará em aumento no número de viciados e, consequentemente, da demanda às estruturas de saúde.
Seria uma questão de adaptação
Para defender seu ponto de vista, Ciro Simoni diz que o sistema só precisará se adaptar.
- É outra forma de ver o problema, com foco nas unidades básicas de saúde. Temos o consultório de rua, que vai atrás desse público, e os centros de atendimento, que já desafogam o sistema, mas precisam de melhoria - avalia o secretário.
A estrutura da saúde
O Estado conta com cerca de
* 700 leitos para desintoxicação entre os mantidos pelo SUS e conveniados.
* Há em torno de 500 vagas em comunidades terapêuticas conveniadas. A maioria é particular, mas reserva alguns lugares bancados pelo SUS.
Polícia Civil vai contra, Brigada é indiferente
Para a Polícia Civil gaúcha, o afrouxamento da lei sobre drogas seria um retrocesso.
- Restringir o consumo é essencial para frear o tráfico a longo prazo. Todo nosso trabalho tem se voltado para evitar o assédio aos mais jovens. Porém, se não houver mais nenhuma ferramenta que iniba o usuário, vamos virar espectadores do tráfico - lamenta o diretor de investigações do Denarc, delegado Heliomar Franco.
A constatação é comprovada em números e na estratégia que já é comum entre os traficantes da Região Metropolitana.
Temor da cultura do "não dá nada"
Se em Porto Alegre o número de ocorrências de tráfico ainda supera os registros de posse, nas outras cidades da região - onde o pequeno tráfico é mais comum - a estatística é contrária.
- Diversas investigações já são prejudicadas pela interpretação de que certa quantidade de drogas não configura tráfico, e os traficantes sabem disso. Mesmo assim, o sujeito responde a um processo por posse. Se não houver nem isso, a cultura do "não dá nada" vai imperar e teremos a multiplicação de aliciados pelo tráfico - entende o delegado.
Para o comandante do CPC, tenente-coronel Paulo Stocker, a possível mudança na legislação não mudará a forma da Brigada Militar agir na repressão ao tráfico.
Mortes no caminho
Se o aumento de traficantes já é temido, o que isso acarreta deixa um sinal de alerta à polícia. No histórico do filho de Maria Helena, por exemplo, constam duas condenações por roubo e receptação. Tudo, segundo ela, motivado pela pedra.
- Os pequenos delitos são os primeiro sinais, mas diariamente se multiplicam os casos de homicídios relacionados com o tráfico. Matam por dívidas ou por disputas. A mudança na lei aumentaria a luta para conquistar clientes - avalia o delegado Cléber dos Santos Lima, da 1ª DHD, do Deic.
No levantamento de homicídios feito pelo Diário Gaúcho, 57% das mortes tiveram a droga apontada como causa no momento do crime.
Como prevenir
Mesmo com punições brandas, a atual Lei das Drogas determina a posse de entorpecente para uso como uma contravenção. Fica marcado na ficha criminal de quem é flagrado. Para o juiz Marco Aurélio Martins Xavier, que coordena projeto antidrogas do Judiciário nos estádios, este era o último freio que impedia alguns usuários de se afundar nas drogas:
- É uma proposta desastrosa. Não adianta termos discursos contrários às drogas se a legislação der guarida a traficantes.
E quando o vício estoura nos órgãos de saúde, o juiz observa o estrago:
- Não há dia em que não despache alguma medida judicial solicitando internação.
Os números
* Porto Alegre - 284 ocorrências por posse de drogas e 962 ocorrências por tráfico
* Canoas - 281 (posse) e 91 (tráfico)
* São Leopoldo - 191 (posse) e 70 (tráfico)
* Cachoeirinha - 189 (posse) e 37 (tráfico)
* Alvorada - 165 (posse) e 70 (tráfico)
* Viamão - 132 (posse) e 31 (tráfico)
* Gravataí - 90 (posse) e 36 (tráfico)
* Novo Hamburgo - 79 (posse) e 53 (tráfico)
* Sapucaia do Sul - 51 (posse) e 50 (tráfico)
* Guaíba - 40 (posse) e 17 (tráfico)
* Números da Secretaria de Segurança Pública até abril
Estados Unidos - A descriminalização não é cogitada. Usuários flagrados tem de assistir a palestras. Se faltam, têm prisão aplicada.
Holanda - Apesar da fama de país liberal, foi aprovada medida que proíbe consumo da maconha por estrangeiros nos coffee shops.
Portugal - Desde 2001, o consumo de droga é descriminalizado. O número de dependentes em tratamento multiplicou-se no país.
Argentina - Desde 2009, o porte de drogas para uso não é crime. País enfrenta grave problema: crescimento de viciados em cocaína.