Cinco anos depois
Homem que pulou do prédio da TAM Express em chamas conta como sobreviveu à tragédia do voo 3054
No último capítulo da série 400 minutos de um pesadelo, Zero Hora reconstitui a luta pela sobrevivência de Valdiney Muricy

Nascimento significa bem mais do que um sobrenome para o aeronauta Valdiney Nascimento Muricy. Três décadas depois, ele veio ao mundo pela segunda vez em meio a maior catástrofe aérea do país, saltando do terceiro andar do prédio da TAM Express em chamas.
Veja a reconstituição dos minutos entre o acidente e a divulgação das vítimas
Pelo calendário original soma 36 anos. A vida nova completa cinco anos nesta terça-feira. Por causa disso, tem motivos de sobra para festejos. Mas ele prefere só agradecer aos céus.
- Faço aniversário em 3 de agosto, mas respeito muito o 17 de julho. Deus foi bom para mim. Se não tivessem morrido pessoas, certamente, eu comemoraria - afirma.
O "segundo nascimento" de Valdiney se materializou ao anoitecer daquela terça-feira chuvosa em São Paulo. Supervisor de tráfego de cargas da TAM, ele estava no seu setor, falando ao telefone, quando escutou um estrondo vindo de andares inferiores. A ligação foi cortada, a luz sumiu. Houve curto-circuitos sucessivos e gritos de pavor.
Webdocumentário: Famílias transformaram a tristeza em mobilização
Em celular ou tablet, clique aqui para assistir ao webdocumentário
Valdiney estava ao lado da assistente de tráfego Michele Dias Miranda, 24 anos, na parte dianteira do pavilhão. Mais ao fundo oito colegas desapareceram em meio à escuridão e à fumaça que invadiu o lugar. Parte escapou com vida, fugindo pela escada ou pelo elevador de serviço.
Trabalhando há 15 anos no mesmo lugar, Valdiney conhecia como ninguém o prédio e seus escaninhos. Procurou a saída de emergência, mas não a encontrou. Estava perdido em um labirinto em chamas. O avião tinha danificado toda a estrutura do prédio, arrancado divisórias, desmoronado escadas, trancado portas, não tinha mais como sair.
Dentro do depósito já havia bombeiros resgatando vítimas. Mas não enxergavam nem sabiam da presença de Valdiney e Michele. Restou a eles correrem para a janela frontal, com a visão para o final da pista de Congonhas. Sentiam-se dentro de uma fornalha.
Faltava ar nos pulmões e os dois saltaram para a marquise. O espaço era apertado, mal podiam ver a cauda do Airbus encravada sob os pés. Lá debaixo vinham gritos de calma, mas os berros cessaram por uns instantes:
- As pessoas correram dali com medo de uma parede desabar.
Valdiney tentava tranquilizar Michele, mas foi tomado de pavor ao ver equipes de imprensa, em especial cinegrafistas com câmeras apontadas para eles. Solteiro e sem filhos, logo lembrou da mãe em Pindobaçu, cidadezinha no norte da Bahia, onde ele nasceu:
- Pensei: devem estar mostrando ao vivo na TV e eu não queria que ela visse aquela cena. É muito nervosa, não suportaria.
O aeronauta pegou o celular e ligou para um tio, taxista em São Paulo. Explicou rapidamente a situação e implorou para que alguém falasse com vizinhos da mãe e a impedisse de se aproximar de uma TV, a qualquer custo. Valdiney não entendeu nada do que o tio falou, mas depois soube que o pedido foi atendido - cautelosamente, a mãe foi avisada de um acidente sem gravidade.
O desespero na marquise chegou ao limite. O calor fritava as roupas sobre a pele, tostava os rostos, queimava as mãos, as solas dos sapatos de borracha derretidas grudavam no concreto. Pelo olhar de Michele, Valdiney entendeu que chegara o momento de se jogar lá de cima. Ela foi primeiro.
Morreu instantaneamente, 15 metros abaixo, sapecada pelo fogo, no asfalto molhado da Avenida Washington Luís. Uma labareda torrava a perna esquerda da calça de Valdiney. Ele não via alternativa. Tentou descer se agarrando a uma estrutura de ferro, mas estava em brasa, queimou as mãos e se atirou.
- Era pular ou morrer queimado.
Mas não era a hora dele. Acudido por socorristas, Valdiney foi erguido do chão com queimaduras de terceiro grau nas mãos, fratura exposta no ombro, no fêmur e no joelho esquerdo e cotovelo direito, além de fratura do quadril. Sem enxergar nada, o aeronauta só ouvia os paramédicos e enfermeiros dizendo:
- Vai parar, vai parar - referindo-se ao coração de Valdiney.
- Se Deus quiser, não vai não. Meu Deus, me ajude - balbuciava.
Valdiney ainda ouviu mais estouros, mas eram os socorristas batendo com as palmas das mãos na porta da ambulância para abrir espaços entre carros, e desmaiou. Chegou quase desenganado ao Hospital Santa Bárbara. O primeiro diagnóstico apontava 90% de chance de morrer. Tinha tudo para ser a vítima número 200 da tragédia. Foram 51 dias internado em estado grave.
- Passei seis meses deitado e depois sentado em cadeira de rodas, nesse tempo todo com pessoas colocando comida na minha boca, fazendo higiene no meu corpo.
Para recuperar parte de movimentos, Valdiney foi submetido, até agora, a nove cirurgias corretivas, plásticas e ortopédicas, enxertos de pele, reconstituições ósseas, implantes de pinos de metal. Saiu do hospital quase um homem biônico de tanto ferro pelo corpo. As diversas bíblias que Valdiney ganhou durante o período de internação potencializaram a fé. Vibra a cada minuto com a segunda chance.
- Foi uma loucura pular, mas estou aqui, ganhei a vida nova naquele dia em que muitos morreram.
E ele tenta retribuir. Apesar das muitas horas de fisioterapia para tentar voltar à vida normal e ao trabalho, Valdiney encontrou tempo e forças para ajudar ao próximo. Sente-se na obrigação. É um ativista comunitário. Se cadastrou como voluntário da Cruz Vermelha, recolhe donativos para desabrigados de enchentes e colabora em festa de igrejas no bairro Horto-florestal.
- É o mínimo que Deus pode esperar de mim.