A obra segundo o criador
Erico Verissimo registrou reflexões sobre seu livro mais conhecido em "Solo de Clarineta"
Leia dois trechos contidos no primeiro tomo do livro

"Estou hoje convencido de que foi uma pena eu não ter mantido um diário durante os muitos anos em que estive ocupado e preocupado com escrever os romances que iriam formar a trilogia que leva o título geral de O Tempo e o Vento. Esse jornal não só teria registrado os pensamentos, sentimentos, dificuldades, dúvidas, ânimos e desânimos do escritor empenhado em fazer o que ele esperava viesse a ser sua obra máxima, como poderia também ter mostrado como os acontecimentos políticos e sociais desses agitados quinze anos da vida nacional e internacional se refletiram na mente, na vida e na obra do romancista.
Assista ao webdocumentário sobre o cinquentenário da obra:
Quando me teria ocorrido pela primeira vez a ideia de escrever uma saga do Rio Grande do Sul? Em 1935, quando meu Estado comemorou o primeiro centenário da Guerra dos Farrapos? Não sei ao certo. Não creio que ideias como essa nos caiam na cabeça com a força súbita de um raio. É mais provável que comecem de ordinário com uma nebulosa de origem ignorada, que se mistura com as outras que povoam nossos misteriosos espaço e tempo interiores e aos poucos vão tomando a forma dum mundo.
Procurando analisar com imparcialidade os meus romances anteriores, eu percebia o quão pouco, na sua essência e na sua existência, eles tinham a ver com o Rio Grande do Sul. Tendiam para um cosmopolitismo sofisticado, que me levava a descrever a provincianíssima Porto Alegre de 1934 como uma metrópole tentacular e turbulenta que recendia a gasolina queimada e asfalto. Em Olhai os Lírios do Campo fiz uma das personagens, um arquiteto, construir um arranha-céu de trinta andares - coisa que na realidade a capital do Rio Grande do Sul só veio a ter vinte e cinco anos mais tarde.
Apesar de ser descendente de campeiros, sempre detestei a vida rural, nunca passei mais de cinco dias numa estância, não sabia e não sei ainda andar a cavalo - para escândalo e vergonha de meu avô Aníbal - desconhecia e ainda desconheço o jargão gauchesco. Embora admire os trabalhos isolados de escritores como Simões Lopes Neto, Darcy Azambuja, Cyro Martins e Vargas Neto, nunca morri de amores pelo regionalismo e, para ser sincero, tinha e ainda tenho para com esse gênero literário as minhas reservas, pois acho-o limitado e, em certos casos, com um certo odor e um imobilismo anacrônico de museu.
Antes de começar o 'ambicioso' projeto, eu precisava vencer muitas resistências interiores, a maioria delas originadas nos meus tempos de escola primária e ginásio. Para o menino e para o adolescente - ambos de certo modo sempre presentes no inconsciente do adulto -, o poético, o pitoresco e o novelesco eram atributos que raramente ou nunca se encontravam em pessoas, paisagens e coisas do âmbito nacional e muito menos do regional e ainda menos do municipal. Nossos livros escolares - feios, mal impressos em papel amarelado e áspero - nunca nos fizeram amar ou admirar o Rio Grande e sua gente. Redigidos em estilo pobre e incolor de relatório municipal, eles nos apresentavam a História do nosso Estado como uma sucessão aborrecível de nomes de heróis e batalhas entre tropas brasileiras e castelhanas. (Ganhávamos todas.) Nossos pró-homens pouco mais eram que nomes inexpressivos, debaixo de clichês apagados, em geral de retícula grossa: sisudos generais, quase sempre de longas costeletas, metidos em uniformes cheios de alamares e condecorações; estadistas de cara severa especados em colarinhos altos e engomados. Parece incrível, mas só depois de adulto é que vim a descobrir que Rafael Pinto Bandeira - que em nossos livros escolares aparecia, num retrato linear a bico-de-pena, como um sujeito gordo, de ar suíno, bigodes de mandarim, tendo na cabeça um ridículo chapéu bicorne com um penacho - era na realidade um mirífico aventureiro, cujas façanhas guerreiras e amorosas nada ficavam a dever em brilho, audácia e colorido às dos mais famosos espadachins da ficção universal. Concluí então que a verdade sobre o passado do Rio Grande devia ser mais viva e bela que a sua mitologia. E quanto mais examinava a nossa História, mais convencido ficava da necessidade de desmitificá-la.
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Desde que chegara a Washington eu fazia tentativas periódicas para começar a escrever O Arquipélago. Relia notas e roteiros, desenhava faces, colocava no cilindro da portátil Royal uma folha de papel e quedava-me a olhar para a sua desolada brancura de estepe siberiana no inverno, os dedos imobilizados sobre o teclado... E não conseguia sequer escrever uma palavra. Era como se as personagens do terceiro volume da trilogia, não só os Terra-Cambará, como também o resto da vasta comparsaria, estivessem fechados e congelados dentro duma câmara frigorífica em algum lugar de meu ser. Frequentemente, por não estar escrevendo nada, eu era tomado por uma sensação de vácuo interior e ao mesmo tempo de culpa. O que acentuava o sentimento culposo era o fato de ter deixado no Brasil minha mãe, que tanto dependia de mim sentimentalmente. Essa má consciência era a matriz de sonhos em que a impressão de ter sido cúmplice no assassínio duma mulher idosa de longe em longe assombrava meu sono. Num desses sonhos a Velha era dona duma pensão onde eu vivera durante longos anos, e ela me apresentava uma conta, ainda não paga, cujo total correspondia exatamente ao que eu pedira a minha mãe para empregar na comprada farmácia...
Comuniquei um dia ao novo Secretário-Geral, o Dr. José Mora, a minha decisão de deixar a UPA impreterivelmente em setembro daquele ano de 1956. Estávamos em maio. O Dr. Mora, com quem eu me entendia perfeitamente bem, tentou dissuadir-me da ideia. O Dr. William Manger, a quem notifiquei também da minha resolução, olhou-me com ar perplexo quando lhe expliquei que, entre os muitos outros motivos que eu tinha para voltar ao Brasil, estava a necessidade de terminar minha trilogia. O Secretário-Geral-Adjunto tirou da boca o cachimbo, franziu a testa e perguntou: 'Mas é tão importante assim escrever mais um romance?'. Até hoje não sei se ele disse isso por brincadeira ou a sério."