Eta, baiano porreta
Festeiro e personagem de livro na Bahia: o Dida que ninguém conhece
Goleiro, conhecido por ser caladão na vida profissional, vira festeiro em sua cidade natal

Um folhetim de cordel no agreste baiano faz de Dida um cabra porreta que defende dois, três, quatro pênaltis marcados pelo árbitro danado que vende resultado. Contada em versos, a história Dida, o goleiro que passou a perna no juiz ladrão é contada pela região onde o jogador do Grêmio nasceu há quase 40 anos e encanta o povo nordestino fascinado pelas proezas do seu herói, como nestas rimas:
"Pra delírio da torcida
E a morte do juiz
Dida arregalou o olho
E foi de novo feliz
Ao adivinhar o canto
E Rosendo com espanto
Gritou: "- Fio de meretriz!!"
Rosendo é o juiz no livreto de 15 páginas do poeta popular Kitute de Licinho (escute o áudio abaixo), cordelista da pequena Irará, a cidade de onde o goleiro é natural e da qual jamais se desligou. Situa-se a 130 quilômetros de Salvador, perto da Santo Amaro de Caetano Veloso, em direção ao Interior, já deixando as aragens do Recôncavo e entrando na dureza do sertão baiano.
Não há férias em que o filho da terrinha deixe de se abancar na casa dos pais, Isaltino e Celice, e ali permanece como um chefe de clã ao lado da mulher Lúcia e dos filhos Luís Miguel, oito anos, e Helene Vitória, 12. Servem-lhe farinha de tapioca e maturi e
reúnem um batalhão de 40 parentes na casa dos Silva no bairro de Mangabeira.
A cidade é da época das capitanias, dos governadores-gerais, e as fachadas barrocas ainda estão lá. Se Salvador foi colonizada em 1510, Irará é de 1717, quando expedições paulistas recém deixavam Laguna para povoar o Rio Grande.
Seu Isaltino, que antes morava na roça, hoje está no centro dos 28 mil habitantes.
- Quando o Dida vem aqui, vira atração em toda região, não só em casa - explica a cunhada Fabiana Marques, porta-voz da família em Irará, já que o rapaz vive num mutismo imperturbável, detesta falar com quem não lhe é próximo.
Conceder entrevistas, então, nem pensar. Fica aperreado com enxeridos.
Pois o goleiro que hoje conquista a simpatia da torcida na Arena, um dos mais vitoriosos dos últimos 20 anos, penta pela Seleção de 2002, bi da Copa das Confederações, do mundial de Clubes, da Liga dos Campeões, títulos do Italiano, Copa da Itália, Copa América, Libertadores, Brasileirão, nome na seleção de todos os tempos do Milan, esse cara ainda curte férias com o mesmo diletantismo de criança.
Ouça o cordel "Dida, o goleiro que passou a perna no juiz ladrão"
Veja a seguir como ele se transforma quando está em casa.
Caladão aqui, festeiro no sertão da Bahia
Nos festejos de São João que o circunspecto Dida se esbalda. Na noite de 24 de junho, em companhia da família, ele se junta a um bloco famoso da sua cidade de Irará, o Jeguerê, e sai a brincar ao som de um trio elétrico em meio ao arrastão do povaréu.
Dida na festa de São João de Irará, na Bahia
(Foto: Arquivo Pessoal)

Os convites para desfilar no alto do carro de som como celebridade, ele declina. Segue no chão em companhia do seu pessoal, gente festeira típica da mistura cabocla, portuguesa e negra da Bahia. Até porque o bom mesmo é aproveitar as quadrilhas no entorno e curtir as tendas com doces e tabuleiros de acarajé.
- Ele me levou uma vez a Irará. Eu vi como o cara fica à vontade com a sua gente. Sorri, dá uns passinhos e até fala um pouquinho - diverte-se o ex-atacante Edilson, o destramelado colega do Corinthians campeão brasileiro de 1999 e do Mundial da Fifa em 2000.
Para conviver melhor, Dida comprou um sítio na frente da casa dos velhos. A intenção era acolher as cinco irmãs (uma médica e uma professora), dois irmãos e quatro cunhadas, todas professoras, como Fabiana Marques:
- Ele acaba mesmo é passando o dia com todo o mundo na casa dos país. É muito apegado aos seus.
Também Serginho, ex-lateral-esquerdo com quem Dida conviveu durante oito anos no Milan, conheceu o contentamento do amigo quando perto dos parentes.
- As férias de meio de ano na Europa facilitavam a vinda aos festejos de São João. Agora, a situação é diferente - explica Serginho.
Isso é verdade. Desde que voltou a jogar no Brasil, não há como acompanhar a função de junho. Muito menos os folguedos da padroeira Nossa Senhora da Purificação dos Campos na última sexta-feira de janeiro, época da lavagem da escadaria da igreja, do samba de roda e dos blocos de sujos.
Nesses, a família participa, ele não.
Este ano, o goleiro não viajou a Irará durante a folga da Copa das Confederações, tinha de se reapresentar no Olímpico quatro dias antes de São João. E nem se amofinou por isso. Cioso no trabalho, Dida é do tipo que chega uma hora antes dos treinos e sai uma depois.
Para compensar, quando o Grêmio enfrentou o Bahia em agosto, dona Celice, irmãos e cunhadas o visitaram na Arena Fonte Nova, como em outras vezes foram vê-lo na Itália.
- O Dida bancou a viagem dos parentes para Milão?
- Não, que nada. Pagamos do nosso bolso, trabalhamos todos, a gente tem condições - responde Fabiana, o que revela o perfil da família.
Nos 10 anos em que jogou na Europa, o goleiro colheu glórias atrás de um silêncio desenxabido, embora fosse sociável e respeitado por todos.
Cafu e Serginho eram a sua turma no condomínio reservado aos jogadores do Milan no bairro de San Siro. Quando o ex-volante Émerson chegou ao Roma, Dida o incluiu no círculo de amizades visitando-o nas folgas.
- Não lembro de uma entrevista dele na Itália - esforça-se Émerson, de oito anos passados na Itália.
O silente só se expressa no trabalho. Dá bronca na zaga, conversa o suficiente na concentração e, nos pagodes, fica por perto, embora de lado, cantarolando.
Para desentocá-lo do silêncio, os mais chegados o chamam de Nelson. Sabem que ele não gosta e por isso provocam a reação de Nelson de Jesus da Silva.
Quando caçoam de sua cidade, ele repete uma frase orgulhosa e arretada:
- Temos três personalidades em Irará: o tropicalista Tom Zé, a apresentadora Glória Maria e eu.
Vampeta, volante que começou com Dida no Vitória
"O Dida vai ser o homem mais rico do cemitério: o Nelson Jesus não abre a mão para nada. Nunca vi um cara mais pão-duro na vida."
Apelido é alusão ao Dida alagoano
Bem cedo o pai de Dida foi trabalhar em Maceió e levou a família. Vem daí o apelido de criança. Intrépido goleiro dos campinhos do agreste, acabou batizado em alusão ao atacante Dida, ídolo alagoense que foi 10 da Seleção antes de Pelé e 10 do Flamengo antes de Zico.
Didinha ralou na várzea, no Lagoa da Canoa, e na base do Cruzeiro de Arapiraca.
Aos 18 anos, jogando no Cruzeiro de Arapiraca
(Foto: Reprodução)

Por essa época, lia coleções da revista Placar na loja de um alfaiate conhecido no clube, e se apaixonou por caldinhos de mocotó no bar de um amigo em Lagoa - o que cultiva até hoje quando visita Alagoas.
Ao Vitória, em Salvador, ele chegou aos 16 anos e subiu aos 19, já a caminho do porte de 1m95cm herdado do avô Otaviano.
Após dois anos no Barradão e um vice brasileiro chegou em 1994 ao Cruzeiro. Venceu quatro Mineiros, a Copa Brasil de 1996 e fechou o gol no título da Libertadores de 1997. Na renovação de contrato, porém, sentava-se diante dos dirigentes, ouvia a proposta calado e voltava depois recusando a oferta.
Um caboclo de Irará entra para a seleção de todos os tempos do Milan
O começo de Dida em San Siro foi tão ruim que os italianos o emprestaram ao Corinthians. Foi quando defendeu dois pênaltis batidos pelo são-paulino Raí, nas semifinais do Brasileirão de 1999 - levaria uma das três notas 10 concedidas pela Revista Placar nos anos 90.
Em seguida, pegaria uma cobrança de Anelka, do Real Madrid, no Mundial de Clubes de 2000, e se consagraria na final decidida nos pênaltis contra o Vasco: agarrou a pancada de Gilberto e, gigante, forçou o erro de Edmundo. Foi o único em campo que não vibrou com o título mundial. Ficou ali, altissonante.
- Não comemorou mesmo, nem no chute de Raí, nem no de Edmundo. Ele é assim. Ainda teve a grandeza de confortar o Edmundo, que ficou desolado. O que vocês não sabem é que, depois, ele festejou aos gritos no vestiário - conta Edilson, seu colega corintiano daquele momento.
Quando Milan e Juventus decidiram a Liga dos Campeões em Manchester, Dida defendeu as cobranças de pênaltis de Trezeguet, Zalayeta e Pablo Montero.
Na única vez em que dois grandes italianos foram à final da Liga, o herói foi um cabra desafetado de Irará.
- Eu acertei uma cobrança no ângulo do Buffon (goleiro da Juventus) naquela final. Sei o que é aquilo. É a maior pressão do mundo, mas o Dida parecia não se abater - conta Serginho.
Dona Celice viajou do sertão até Manchester. Ela viu no Old Trafford o filho pegar os três pênaltis. Ele não se avexou. Ela quase teve um troço.
Curioso é que Dida tomou dimensão planetária em plena terra de goleiros - na Itália dos senhores Gigi Buffon, Dino Zoff, Zenga, Pagliuca, Lido Vieri, Sebastiano Rossi e Lorenzo Buffon. Ainda assim, o irarense é o terceiro goleiro mais longevo no Milan (236 jogos, de 2000 a 2010), atrás de Rossi (300, de 1990 a 2002) e Lorenzo (300, de 1949 a 59).
Na quinta-feira, um site inglês montou a seleção de todos os tempos do Milan e colocou Dida na reserva de Rossi.
A carreira na Seleção não lhe foi tão justa. Dida é o único goleiro negro que disputou Copa depois de Barbosa, o sacrificado pela derrota no Maracanazo de 1950. Diante de amigos, ele comentou a respeito.
Engrandecido pela Libertadores com o Cruzeiro, ele chegou em 1997 a titular da Seleção. Tinha 24 anos. Jogou com Zé Roberto, à época no Real Madrid de Seedorf. Em 1998, sua primeira Copa, coube-lhe a reserva de Taffarel, o milagreiro dos pênaltis do tetra - e tudo se acabou na convulsão de Ronaldo.
Quando Felipão assumiu, usou Marcos de titular e assim venceu o penta no Japão. Dida foi campeão, mas na reserva.
Passado o efeito São Marcos de 2002, finalmente ele seria o goleiro da Seleção de Carlos Alberto Parreira até a Copa da Alemanha. Mas viu seu amigaço Ronaldo Nazário se esvair em suor na luta contra o peso em Konigstein. Não bastasse, Zidane ergueu uma cobrança de falta para a área, Roberto Carlos parou e, à queima-roupa, o francês Henry despachou o Brasil.
Dida, Zé Roberto e Seedorf se abraçaram no gramado da Arena
Eliminado em Frankfurt, Dida embarcou rápido para a Bahia sem conseguir uma Copa como titular. Como Barbosa.
A filarmônica de Irará, que ele uma vez ajudou a manter, não tocou suas retretas.
Dois anos após deixar o Milan, quando parecia havia largado a profissão, o goleiro retomou a vida pela Portuguesa e chegou ao Grêmio. No Brasileirão, contra o Cruzeiro, voltou à saga dos pênaltis e defendeu com as luvas Reusch a cobrança de Everton Ribeiro. A torcida, que antes oscilava em favor de Marcelo Grohe, agora lhe é simpática. Manteve crédito mesmo depois de errar diante de Walter, do Goiás.
- Dida está muito bem com a família em Porto Alegre - revela a cunhada, de Irará.
No dia 13 de julho, ao final da vitória sobre o Botafogo na Arena, Seedorf, 37 anos, foi cumprimentar Dida, 40 anos, em 7 de outubro. Conheciam-se do Milan. Zé Roberto, 39, juntou-se a eles.
Durante cinco minutos os três se abraçaram sozinhos no meio do gramado sob chuva fina e trocaram confidências em gestos de camaradagem como se quisessem fazer tudo de novo.
A filarmônica de Irará
(Foto: Arquivo Pessoal)
