Vidas em risco
As zonas de guerra do tráfico em Porto Alegre
Traficantes disputam a bala os novos mercados de consumo, nas áreas para onde a cidade cresce
Na sua superfície, Porto Alegre parece calma. Ao lado de condomínios e de ruas pavimentadas, há invasões, vilas populares e assentamentos que nem figuram no mapa. Dali, brotam os soldados do tráfico. Nos quatro cantos da cidade, o DG encontrou cenários de guerra. Os moradores - calados pelo medo - viram reféns dos "combatentes".
Quadrilhas se enfrentam na zona sul
A menos de 50m da faixa asfaltada da Estrada Cristiano Kraemer, uma das principais vias de acesso à Zona Sul, o tiroteio rolava solto. Armados até os dentes, de cada lado do Acesso G, seis jovens - nenhum com mais de 25 anos - trocaram tiros por pelo menos cinco minutos até que três caíssem. Um deles morreu pouco depois, no HPS.
Tornou-se a décima vítima de um conflito entre quatro quadrilhas que transformou os arredores da estrada em campo de guerra.Eram 20h30min de domingo, mas ninguém sabia de nada entre as ruas do loteamento Campos do Cristal, no Bairro Vila Nova.
- Não vi nada, nem estava aqui. Prefiro não me meter para a minha segurança - comenta Camila Moraes, 24 anos.
Há cinco anos, ela deixou a Vila Estaleiro, junto ao Guaíba, com outras 300 famílias. O loteamento popular onde mora com a filha de três anos está longe de ser o lar sonhado por ela.
Em vez da fachada aberta, projetada pelo município, Camila viu-se obrigada a erguer um muro alto e fechar o portão com grades. Dali, a filha só sai quando necessário.
- Agora temos esgoto, água e luz, mas a nossa vida piorou. Tenho que morar em uma fortaleza - critica.
Gangues ocupam praças
Do outro lado da estrada, o bairro foi projetado, há mais de 20 anos, entre casas de classe média e edifícios da Cohab, como o espaço de convívio ideal. São pelo menos três grandes praças que deveriam ser de lazer.
De acordo com o delegado Gabriel Bicca, da 4ª DHPP, as praças viraram bases para os grupos rivais. Gabriel monitora as quadrilhas em conflito e promete ações fortes nas próximas semanas:
- São, na maioria, adolescentes ou jovens, municiados por grupos fortes. Soldados que trabalham para dominar um território que é ponto de passagem na cidade. Para o tráfico, é uma área estratégica.
Casas estão à venda
Há 24 anos, o comerciante Remi Jorge da Rosa, 51 anos, chegou na Vila Nova. Ele lembra que era possível caminhar à noite pela praça:
- Hoje, nem uma lâmpada dura muito tempo ali.
Na rua dele, dez casas mostram placas de "vende-se". Ninguém quer comprar. É o caso da aposentada Tânia Salcedo, 56 anos. Há dois anos ela saiu da Restinga.
- Vou voltar para a Restinga porque lá não tinha tanta violência, pelo menos assim, na nossa frente - lamenta.
Os combatentes - Campos do Cristal (municiados por traficantes da Cohab Cavalhada), Rua Ventos do Sul (municiados por traficantes da Vila Cruzeiro), Invasão da Romeu Samarani (municiados pelos Bala na Cara), Rua Joel Gentil de Souza (municiados por traficantes da Restinga).
O alvo - as bocas nas proximidades da Estrada Cristiano Kraemer.
As baixas - dez mortos.
No vazio do estado
O Beco do Badico, na chamada "invasão da Avenida Romeu Samarani Ferreira", na Vila Nova, é o exemplo de como a guerra passa despercebida para o resto da cidade. O local nem existe no mapa oficial de Porto Alegre, mas, desde o mês passado, com o assassinato do dono de um ferro-velho, Evaldo José Coimbra Ferreira, 39 anos, virou o centro dos conflitos. A família dele fugiu da vila e testemunhas apontam que a morte foi encomendada pelo tráfico.
Ali, para ter luz, é preciso puxar fios da avenida. A água é cotizada entre os vizinhos. O esgoto corre a céu aberto. Ideal para os traficantes se instalarem sem serem vistos.
Pior para os cidadãos. Um servente de obras, que mora ali há dez anos, colocou até arame farpado sobre a cerca de madeira da casinha:
- Botei só para não roubarem mais as bicicletas aqui. Se tiverem que matar alguém, eles entram atirando. Para a gente que é pobre, não adianta, não tem para onde escapar - lamenta.
O coração dos senhores da guerra
No muro recém pintado, a inscrição não deixa dúvida: "Bala p...". A casa na Vila Divineia, Bairro Bom Jesus, era uma creche. Mas, pelo menos desde o ano passado, virou casa de baile funk. Ou melhor, uma das várias ocupadas na vila.
É o palco favorito dos líderes da facção dos Bala na Cara para ditar as ordens na região. O nome se tornou grife entre a bandidagem. E aparece em todas as áreas em guerra da Capital.
- Essa facção hoje é dominante na Bom Jesus. E eles mantêm o controle com violência. Há confrontos quando algum pequeno grupo cria resistência - explica o delegado Wagner Dalcin, da 1ª DHPP.
As vilas Divineia e Mato Sampaio, onde vivem pelo menos 30 mil pessoas, conforme o Demhab, são apontadas como o coração dos Bala. Desde o começo do ano, pelo menos nove pessoas foram assassinadas na região. Os casos podem ter relação com a volta às ruas do traficante conhecido como Nego Cris. Onde ele está ou o que tem tramado, porém, todos preferem não saber.
- Aqui, todo mundo sabe o que acontece com quem fala demais - diz um morador.
Foi com chacinas e mortes violentas - geralmente com tiros no rosto - que o bando derrubou dois antigos grupos do bairro. Quem trabalha para os Bala, ganha poder e status. É o atrativo para recrutar "soldados", cada vez mais jovens.
- Dói muito quando a gente vê os meninos que ajudamos a criar seguirem esse caminho. É como se o nosso trabalho tivesse sido em vão - lamenta a coordenadora de uma creche comunitária na Vila Divineia, Noeci Prudente, 43 anos.
Aqui a briga nunca acaba
Do portão de uma das casas populares na Vila Nova Dique, à beira da Avenida Bernardino Silveira Amorim, no Bairro Rubem Berta, o músico evangélico Leandro Correia, 29 anos, acredita ter uma missão: contrariar a lógica. Desde a chegada das 1,4 mil famílias transferidas da Vila Dique, e do surgimento de pelo menos outras três vilas irregulares - além das já existentes ali -, a região se tornou um barril de pólvora.
- Aqui não vem carteiro. A gente nem pede mais tele-entrega porque todo mundo tem medo de entrar aqui depois de certo horário. E não tem como segurar as crianças, elas são sempre as primeiras a ver cada morte - desabafa Ilga Fischer, 59 anos.
De acordo com o delegado Leônidas Cavalcante, da 3ª DHPP, a guerra é permanente:
- Já havia uma realidade violenta. Com a chegada das novas vilas, os conflitos se acirraram e as mortes se tornaram cotidianas.
O delegado garante que os criminosos não impedem a entrada da polícia na região. Mas, para quê?
- Ninguém fala nada. A lei do silêncio é imposta aos moradores - define Leônidas.
Na casinha que virou templo religioso, Leandro é um dos que tentam quebrar o silêncio. Não com denúncias, mas com a recuperação da gurizada.
- Tentamos mostrar uma alternativa, pela fé e pela música. É uma violência aberta, a gente vê jovens serem mortos com naturalidade - diz.
Antes de ir para a Nova Dique, há um ano, Leandro viveu 25 anos na Dique. Não tem dúvida de que as coisas pioraram.
- Lá, todos se conheciam e respeitavam "os crentes", como eles dizem. Mas, aqui, misturaram pessoas de todos os lados. Todas com esse histórico da droga - comenta.
Os combatentes - Grupos de traficantes das vilas Nova Dique, Pôr do Sol, Amazônia, Santa Rosa e Parque dos Maias.
O alvo - O domínio das bocas nos arredores da Avenida Bernardino Silveira Amorim.
As baixas - Nove mortos.
Os combatentes - Bala na Cara e pequenos grupos de traficantes locais.
O alvo - A hegemonia no tráfico de drogas da região e a influência sobre outras áreas da cidade.
As baixas - nove mortos.
À espera do pior
Já fazia oito horas que Carlos Eduardo Batista da Silva, 24 anos, caíra morto, com dois tiros, na madrugada de quarta passada. Mas ninguém ousava limpar a poça de sangue deixada no chão de terra da Rua C, entre as vielas da Vila Liberdade, no Bairro Humaitá, perto da Arena do Grêmio.
Os moradores, com medo, olhavam para os lados, para o chão. Eram observados. Por quem, ninguém sabe.
- A gente não dorme mais, preocupado. Com essa turma de gente diferente que veio para a vila, as coisas pioraram muito. Mas não consigo encontrar uma casa para onde ir e sair logo daqui - diz uma mulher de 62 anos, que há 12 mora na vila.
"Corrida imobiliária"
Na região, o tráfico coordena sua própria especulação imobiliária. A vila vive uma invasão de criminosos, vindos de outras áreas da cidade. Aparecem como gente sem moradia, na fila pelas 600 vagas anunciadas de reassentamento.
O medo, porém, é que sejam soldados marcando território antes da mudança - e de olho em um novo mercado consumidor.
Na região, a suspeita é de que um antigo patrão do tráfico, conhecido como Chiapetta, estaria tramando a retomada da área. Ele estava preso e foi solto este ano. Agora, seria uma ameaça aos traficantes da Vila Mario Quintana, que herdaram as bocas depois da morte, em 2008, do traficante João Cabeludo.
O comandante do 11º BPM, major Marcelo Pitta, garante que a situação está controlada. Não é o que acham os moradores.
- Eles (PMs) entraram aqui antes da inauguração da Arena. Depois, nunca mais - diz uma moradora.
Os combatentes - Vilas Mario Quintana e Liberdade.
O alvo - Dominar as bocas de fumo nos arredores da Arena do Grêmio.
As baixas - quatro mortos.