Boca fechada
Medo e lei do silêncio imperam em zonas violentas
Famílias sem relação com o mundo do crime se tornam testemunhas da violência
Apenas por morarem em regiões marcadas pelo tráfico de drogas, famílias sem envolvimento com o mundo do crime acabam se tornando testemunhas da violência. Apesar de muitas vezes saberem mais do que a polícia, são obrigados a manter a boca fechada. No silêncio, remoem cenas, rostos, diálogos e histórias que poderiam ajudar a esclarecer crimes. Por medo, salvam a própria pele de uma represália sem data marcada. Sofrem com a angústia de saberem o que está errado, sem poder colaborar.
A reportagem do Diário Gaúcho ouviu os desabafos de moradores de três vilas - Divineia, no Bairro Bom Jesus, das Laranjeiras, no Morro Santana, ambas em Porto Alegre, e São Lucas, em Viamão - que aprenderam a conviver com esta realidade. Em uma delas, os moradores encontraram no celular a saída para continuarem "falando sem falar".
"Me sinto vítima do silêncio"
As pupilas tremem quando a dona de casa, de 50 anos, recorda todos aqueles que tombaram na frente dela ao longo de mais de duas décadas. Uma única vez se arriscou a ligar para a Brigada Militar pedindo ajuda. Se calou depois de receber ligações que a ameaçavam de morte, caso a polícia aparecesse:
- Já vi matar na minha frente, cair (a vítima) nos meus pés. Mas todas as vezes que a polícia quis me interrogar, só disse que não sabia de nada. Me sinto vítima do silêncio.
No início da entrevista, ela teme falar sobre todas as situações presenciadas em diferentes vilas da Capital. Porém, depois de 30 minutos de conversa, começa a desabafar.
Enquanto aperta as mãos, relembra cada cena de crime, mas não fala nomes. Certa vez, por se negar a dar informação, levou tiros de um bandido.
- A gente acaba conhecendo vários deles (bandidos), e se dando com todos. Aí, tu fica no meio de tudo isso. E, se falar qualquer coisa, vai sobrar pra ti - conta.
Mudanças de endereço não adiantaram
Cansada de ser testemunha da violência, trocou de endereço mais de uma vez. Porém, sem condições financeiras, acabou sempre em regiões onde os imóveis são mais em conta - geralmente, vilas dominadas pelo tráfico.
- Mudei de endereço e achei que esqueceria as coisas (crimes), mas nada sai da cabeça. Acho que o medo vai me acompanhar para sempre - diz, prometendo nunca mais vestir a roupa usada durante a entrevista, porque teme ser reconhecida.
"Não vi nada, não sei de nada"
Vivendo há 27 anos no mesmo lugar, a doméstica decidiu que o melhor é ficar calada. Em época de confrontos entre traficantes, quando costumam ocorrer incêndios criminosos e tiroteios, ela e a família evitam dormir à noite.
- Temos medo de que algo acabe nos atingindo. Então, sempre fica um acordado e atento para o que acontece. Não somos bandidos, mas estamos nas mãos deles - disse.
Mesmo sabendo quem são os responsáveis por espalhar a tensão na vila, a doméstica prefere ficar em silêncio. Jamais acionou a Brigada Militar ou a Polícia Civil.
- Tenho medo de me expor e, depois, levar a pior. É a lei do silêncio: não vi nada, não sei de nada.
"Alguém sempre acaba falando"
Quando questionada se não seria melhor ter a polícia por perto, responde com outra pergunta:
- Melhoraria naquele momento. Mas, e se depois os bandidos descobrissem quem foi que entregou? Sempre tem alguém que acaba dando com a língua nos dentes.
Como nunca saiu da vila, a doméstica não pensa em se mudar. Já pensou. Hoje, porém, quer continuar onde nasceu.
- Tenho esperança de que um dia isso tudo vai terminar. A gente não é envolvido e não tem que pagar por eles - explicou.
"Me dá uma sensação de impunidade"
Em quase 40 anos na vila, a dona de casa viu o medo crescer em sintonia com a criminalidade.
Numa das vezes em que foi testemunha de um crime, o morto caiu no portão da casa dela. Mesmo assim, quando a polícia chegou, preferiu se manter à distância. Sabia que estava sendo vigiada.
- Não poder falar é o mesmo que me deixar de mãos atadas. Me dá uma sensação de impunidade - desabafa.
Atenta, sabe tanto quanto os investigadores, mas jura que jamais dirá à polícia o que viu e ouviu. Para o bem dela e da vizinhança, acredita. Quando sabe de algo, avisa apenas os vizinhos. E eles fazem o mesmo com ela. É a "política da boa vizinhança", de quem se sente refém dos traficantes:
- A saída de quem vive nesta situação é se unir.
Torpedos alertam moradores
Para evitar conversar sobre os crimes que estão ocorrendo na Vila das Laranjeiras desde o final do ano passado, moradores sem vínculo com o tráfico encontraram no celular a solução para se manterem atentos. Cerca de 15 famílias só se comunicam por mensagens.
- É a única forma de falarmos sem falar. Não colocamos nomes nas mensagens, para não sermos identificados. Mas sabemos quem é quem - diz uma moradora.
O movimento começou com dois vizinhos e, aos poucos, foi se espalhando. O grupo é avisado quando algo está para acontecer ou quando recém aconteceu. A corrente começa entre dois e se espalha entre aqueles com créditos no celular.
- Desta forma, já combinamos de ligar ao mesmo tempo para a Brigada. Na época, a polícia veio. Mas, como o medo é muito maior, só estamos trocando mensagem para não sermos pegos por uma bala perdida.
Polícia aposta em novas estratégias
Na tentativa de fazer com que testemunhas de assassinatos ganhem coragem de contatar a polícia, a Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) tenta facilitar este acesso.
- Temos o projeto de incluir o telefone do disque-denúncia nas fitas de isolamento usadas nos locais dos crimes. A pessoa pode nos procurar, sem precisarmos nos aproximar dela - revela o diretor da Divisão, delegado Cristiano de Castro Reschke.
De acordo com Cristiano, dificilmente alguém fala com os investigadores logo após o crime. O medo dos moradores é de estarem sendo observados por olheiros ou pelos próprios autores.
- Eles temem que alguém fique filmando (olhando) quem fala com a gente, pois já sabem que pode haver uma retaliação forte depois - explica o delegado.
Para facilitar o trabalho da investigação, os policiais têm evitado deixar cartões com as testemunhas.
- O importante é a pessoa nos procurar. Qualquer informação, como apelidos e características dos criminosos, pode ser uma luz na investigação. Se as pessoas nos procurarem mais, o número de casos resolvidos aumentará consideravelmente - conclui.
BM checa todas as denúncias
Chefe do Centro Integrado de Operações de Segurança Pública (Ciosp), o major Gilberto da Silva Viegas alerta que, em caso de denúncias, o 181 é o número mais indicado, pois não tem bina e atende 24 horas. Já o 190 é específico para situações que estão ocorrendo no momento da ligação. Nos casos de denúncias, os atendentes são treinados para não identificar quem está ligando.
- Se o fato está ocorrendo no momento da ligação, o melhor é ligar para o 190. Imediatamente, o atendente aciona o supervisor, que contata o oficial de serviço da região onde está ocorrendo o delito - explica o major.
Crianças são as maiores vítimas
Segundo Christian Kristensen, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC e responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trauma e Estresse (Nepte) da universidade, qualquer situação interpretada pela pessoa como ameaça à integridade física é potencialmente traumática. Medo e ansiedade são os sintomas mais comuns. Ele destaca que as crianças são as que mais sofrem:
- Uma criança que se desenvolve num ambiente onde se sente ameaçada constantemente tem prejuízos: desde dificuldades na aprendizagem escolar até a forma como compreenderá o mundo, achando-o um lugar perigoso e imprevisível.
Christian considera importante que a pessoa compartilhe estas experiências, apesar do medo.
Falta de proteção estimula o medo
- Quanto mais apoio social a pessoa tiver, seja com um grupo religioso, com um amigo, um familiar próximo, ou, no caso de uma criança, com uma orientadora na escola, melhor ela saberá suportar estas situações.
Já para a psicóloga Carolina dos Reis, doutoranda em psicologia social e institucional na Ufrgs, as pessoas têm medo por não se sentirem protegidas.
- É preciso compreender que cada sujeito encontra diferentes recursos para enfrentar as situações de sofrimento que a vida lhes impõe - sintetiza.
Denuncie
181 Secretaria da Segurança - funciona 24 horas
190 Brigada Militar, para situações de emergência
0800-6420121 Denúncias sobre homicídios e tentativas de homicídios - atende das 8h às 18h
0800-518518 Denúncias sobre tráfico de drogas
0800-6426400 Denúncias sobre maus-tratos com crianças