Decisão do STF
"Só quero trabalhar de cabeça erguida", diz gaúcho inocentado por DNA após 10 anos preso
Israel de Oliveira Pacheco, 30 anos, foi condenado a 11 anos e seis meses de detenção por assalto e estupro, mas exame apontou que sangue na casa da vítima era de outro réu do processo
Enquanto Israel de Oliveira Pacheco, 30 anos, encosta-se no sofá, o primogênito Wesley, quatro anos, acomoda-se na perna dele. Ao lado, Angélica da Rosa da Silva, 30 anos, embala a filha, Emily Angélica, de dois meses. O mais tímido, Welington, três anos, observa os pais acanhado. No casebre de madeira, no interior de Três Coroas, no Vale do Paranhana, a família planeja o recomeço, após decisão inédita do Supremo Tribunal Federal (STF). Pela primeira vez, um brasileiro teve condenação anulada com base em prova genética.
Natural de Gramado, Israel cresceu numa família de cinco irmãos com a mãe e o padrasto, no terreno onde vive agora, com a mulher e os três filhos. Estudou até a 6ª série. Aos 14 anos abandonou a escola para trabalhar na confecção de calçados. Em 2006, a mãe se mudou para Lajeado, no Vale do Taquari, e Israel foi viver com ela. Em maio de 2008, estava na rodoviária do município quando foi preso.
Era suspeito de ter cometido assalto e estuprar uma jovem de 20 anos. O rapaz, que tinha a mesma idade na época, aguardava o ônibus para visitar a avó quando foi encontrado pelos policiais.
A jovem dizia que o autor era alto, magro e moreno, descrição compatível com Israel. Levado até a Delegacia de Polícia, foi reconhecido pela vítima. Ele negava o crime. Na data do assalto, estaria em um baile no interior.
— Não sei porque ela me reconheceu. Não podia ver, mas ouvia ela, do lado de fora. Dava para perceber que tava desesperada. Isso pode ter feito ela se confundir. No começo, sentia raiva, mas com o tempo passa. Tudo passa — diz.
Depois de permanecer quatro anos e oito meses preso no regime fechado, chegar ao semiaberto e à liberdade condicional, Israel recebeu, na terça-feira (18), a notícia que aguardava há uma década. Por telefone, o defensor público Rafael Raphaelli contou que o exame de DNA, realizado em 2009, havia garantido a inocência dele. Por três votos a dois, a 1ª Turma do STF entendeu que a dúvida deveria favorecer o réu. Assim, anulou a condenação.
Israel passou 10 anos e sete meses no sistema prisional. Em Lajeado, dividia a cela com outros 17 homens. Durante a noite, era necessário revezar as quatro camas. Alguns dormiam no chão, outros em pé. Nos fins de semana, recebia a visita da mãe e do padrasto.
— No começo, na cadeia, ninguém acreditava em mim. A minha mãe sempre acreditou. Quem me conhecia, sabia a verdade. Mas tinha dias que, no pátio, eu olhava pra cima, rodeado de policiais, e eu ali por algo que não fiz, e pensava em fugir. Aí pensava de novo. "Daqui a pouco vou embora". Ia levando. Foram quatro anos sem poder sair pra rua, atrás das grades — recorda.
Israel se tornou pai enquanto estava preso, após visita íntima. Ele diz que perdeu boa parte da infância do menino. Em liberdade condicional desde a metade do ano passado, pôde conviver mais com os filhos. Tempo que agora tenta recuperar.
A caçula, que dorme no colo da mãe, nasceu em 17 de outubro. Os irmãos brincam na rua junto a um balanço de madeira azul e amarelo que pende do teto.
— Deixa eles correrem na chuva — diz o pai à mulher.
Tinha dias que, no pátio, eu olhava pra cima, rodeado de policiais, e eu ali por algo que não fiz, e pensava em fugir. Aí pensava de novo. "Daqui a pouco vou embora". Ia levando.
ISRAEL DE OLIVEIRA PACHECO
Inocentado após exame de DNA
Enquanto disputa balas com o irmão, Wesley corre para dentro de casa desajeitado e se agarra outra vez às pernas dele.
— Esse aqui é o meu pai — reafirma o pequeno.
Há pouco mais de um ano, a família vive no terreno que pertence à avó de Israel. Na casinha, com frestas no assoalho, eles cozinham em um fogão à lenha.
Ele arranjou trabalho em um sítio, onde ajuda a plantar e cuidar das criações de animais. Nas horas livres, produz no pátio de casa gamelas artesanais, vendidas em uma barraca na beira da estrada.
— Vejo que os meus amigos, que tocaram a vida deles, hoje têm carro, uma casinha. Eu tô começando. O que eu podia ter conseguido aqui fora, nesse período, agora faz falta, para mim e meus filhos. Mas já consegui provar que sou inocente. Então tá mais que bom. O que mais posso querer?
Ele mesmo responde. Com a absolvição, espera conseguir encontrar um emprego com carteira assinada.
O que eu podia ter conseguido aqui fora, nesse período, agora faz falta, para mim e meus filhos. Mas já consegui provar que sou inocente. Então tá mais que bom. O que mais posso querer?
ISRAEL DE OLIVEIRA PACHECO
Inocentado após exame de DNA
— Toda vez que viam a ficha dele diziam que não tinha mais vaga. Perdeu muito emprego bom. Agora não vai ser assim — lamenta Angélica.
Desde a decisão do STF, ele tem sido questionado se pretende pedir indenização pelo tempo preso. Raphaelli já havia informado que a decisão caberia a Israel. Ele já se decidiu.
— Nunca perdi a esperança porque o doutor Rafael me disse que não ia desistir de mim. Ele disse que ia até o fim. Só tenho a agradecer. O mais importante já consegui. Sempre me virei. Só quero trabalhar de cabeça erguida — afirma.
Sangue é de homem que acusou Israel
O laudo do Instituto-Geral de Perícias (IGP) do Rio Grande do Sul que embasou a decisão da 1ª turma do STF aponta que o sangue pertencia a Jacson Luis da Silva, 30 anos, que está preso no regime semiaberto.
A gente fica triste por demorar tanto tempo para reverter isso, mas por outro lado fica contente por saber que o trabalho valeu a pena. Atrás dos papéis, existem pessoas e famílias.
RAFAEL RAPHAELLI
Defensor público
No processo, Israel foi acusado pelo próprio Jacson como autor do estupro. Disse que Israel teria entrado na casa e ele teria ficado do lado de fora.
Com Jacson, foram apreendidos objetos roubados da casa da vítima. Israel foi condenado a 13 anos e 9 meses — pena depois reduzida para 11 anos e seis meses. Jacson foi condenado pela receptação e teve a pena convertida em prestação de serviços à comunidade.
— A gente fica triste por demorar tanto tempo para reverter isso, mas por outro lado fica contente por saber que o trabalho valeu a pena. Atrás dos papéis, existem pessoas e famílias — diz o defensor Rafael Raphaelli.
O Ministério Público do RS afirma que só se manifestará após ser intimado. A Promotoria argumentou, no entanto, que a descrição dada pela vítima não é compatível com a de Jacson e sim com a de Israel, que foi reconhecido pela mulher como sendo o estuprador. O MP entende que Jacson teria se machucado ao escapar da casa antes da chegada da vítima, o que não exclui a participação de Israel.
Entenda o caso em 10 momentos:
- Em 14 de maio de 2008, uma jovem e a mãe são atacadas dentro de casa, no bairro São Cristóvão, em Lajeado, por criminoso armado com faca e o rosto coberto pelo capuz de um casaco. A garota é estuprada. O criminoso escapa levando objetos da residência.
- Duas semanas depois, policiais prendem Israel. O rapaz é reconhecido pela vitima como autor do estupro. A descrição feita por ela era compatível com a dele.
- Jacson é preso e aparece na investigação como o comparsa de Israel, que teria vendido os objetos roubados. Os dois se parecem fisicamente. Jacson também aponta Israel como o homem que teria invadido a casa.
- Amostra de sangue coletada na cama em que o estuprador agrediu a jovem é usada em exame de DNA realizado pelo Instituto-Geral de Perícias (IGP). O resultado, em 2009, diz que Israel não é o autor do estupro.
- Israel é condenado em 2009 a 13 anos e nove meses de reclusão e Jacson a seis anos e oito meses de reclusão por receptação.
- Em agosto de 2010, Jacson tem a pena reduzida para um ano de reclusão, substituída por prestação de serviço à comunidade. Está, atualmente, no regime semiaberto, em Lajeado, por outros crimes.
- A defesa de Israel recorre, mas o Tribunal de Justiça confirma a condenação, reduzida para 11 anos e seis meses. A decisão se embasa no reconhecimento e usa como argumento o fato de o exame de DNA ter ”constatado que o material genético coletado no local pertence a Israel”. O teste, no entanto, afirmava ser possível “excluir que o material biológico no tecido da colcha pertença a Israel”.
- Em 2011, em decorrência da implementação dos bancos de perfis genéticos, adotada pelo Brasil a partir da parceria firmada com o FBI (a Polícia Federal dos EUA), o Instituto-Geral de Perícias do RS, com base no cruzamento de amostras inseridas no banco, verifica que o material encontrado pertencia a Jacson.
- Em setembro de 2015, o Tribunal de Justiça do RS refaz o julgamento, mas mantém a condenação de Israel, por conta do reconhecimento feito pela vítima. A defesa recorre à instância superior.
- Na última terça-feira, a 1ª Turma do STF inocenta Israel por três votos a dois. O ministro Luiz Fux argumenta que a dúvida deve recair para a absolvição do réu. O voto acompanhou os do relator ministro Marco Aurélio e da ministra Rosa Weber.