Polícia



Sistema prisional

Transformação no cárcere: como funciona a primeira prisão sem guardas do RS

Três meses após inauguração de prisão com método humanizado na Capital, 12 apenados buscam ressocialização 

29/03/2019 - 21h32min

Atualizada em: 29/03/2019 - 21h36min


Leticia Mendes
Leticia Mendes
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Renato Dornelles
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Lauro Alves / Agencia RBS
Frase pintada no pátio da unidade no bairro Partenon, em Porto Alegre

A pesada porta de ferro no acesso ao Centro de Reabilitação Padre Pio Buck, na zona leste de Porto Alegre, pouco difere de uma prisão tradicional. Já a cor azul vibrante, as paredes limpas e uma frase pintada na entrada indicam que algo ali funciona diferente. "Aqui entra o homem, o delito fica lá fora", avisa. 

Há três meses, o local sedia a primeira prisão no método da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac) no Rio Grande do Sul. O modelo humanizado permite que os apenados trilhem juntos os passos para a ressocialização. 

Para ingressar na unidade é preciso manifestar a vontade de ser transferido para o local e ter sido condenado. Não há restrição quanto à crime ou à periculosidade. Das 30 vagas, 12 estão ocupadas no momento. O conceito humanitário é aliado à rotina rígida de atividades e controle. 

Não há celulares, drogas, álcool ou cigarros. Também é necessário manter o ambiente limpo e organizado. As atividades iniciam às 6h e encerram às 22h, com horário para estudo e oficinas. 

As tarefas são desenvolvidas pelos apenados (inclusive abertura e fechamento de celas), por funcionários e voluntários, que formam inclusive a direção da Apac.

— Apesar de ter método diferente, é uma cadeia. O que muda é que eles são tratados com dignidade. A única coisa que eles perdem por lei é a liberdade. Mas a sociedade entende como vingança — explica a tesoureira Elizana Prodorutti.  

Lauro Alves / Agencia RBS
Regras rígidas incluem organização do espaço

Os próprios apenados, quando entram, sentem o choque em relação à metodologia. 

"Mas eu sou preso", conformou-se um deles quando questionado pelos voluntários se acreditava que teve algum direito cerceado, além da liberdade, no período vivido em presídios no modelo tradicional. Na chegada, deixam de ser chamados de presos e passam a ser tratados como recuperandos. 

— Eles não se percebem como pessoas com direitos violados. Muitas vezes nem sabem que direitos têm. Nossa missão é preparar para que possam ter vida em comunidade — esclarece a vice-presidente da Apac Porto Alegre, Ana Júlia Odorize. 

Custo do recuperando é a metade do preso tradicional

Lauro Alves / Agencia RBS
A união é incentivada pelo método, que busca ressocializar apenados

Uma frase pintada no pátio da unidade resume o conceito trabalhado ali: "Do amor ninguém foge".  A mesma mensagem aparece em outras sedes pelo país. Foi dita por um dos recuperandos em Itaúna, Minas Gerais. O Estado possui o maior número de Apacs no País. São 39, com 3,2 mil apenados. Realidade que a juíza da Vara de Execuções Criminais da Capital, Sonáli da Cruz Zluhan, espera ver o RS alcançar:

— Para mim, a salvação é esse método. Se a pena fosse pedagógica, no nosso sistema carcerário falido, o preso nunca mais voltava. São pessoas que já vem com toda uma estrutura. Ao menos que resgate coisas que nem eles sabem que têm, não vai educar cumprindo pena. As pessoas não são 100% ruins e nem 100% boas — argumenta.

Para mim, a salvação é esse método. Se a pena fosse pedagógica, no nosso sistema carcerário falido, o preso nunca mais voltava.

SONÁLI DA CRUZ ZLUHAN

Juíza da Vara de Execuções Criminais da Capital

A magistrada reconhece, no entanto, que investir em iniciativas que priorizem direitos humanos colide com um entendimento social de que presos devem ser submetidos a condições desumanas. 

Por outro lado, o método se mostra mais econômico. O custo do recuperando é a metade do preso no sistema tradicional. 

— O sistema atual não só não propicia uma melhora, como piora aqueles que não entram tão "bandidos". É uma maneira de pensar que reverte contra a sociedade. Essa pessoa vai sair pior. Cada vez mais construímos presídios, mais pessoas são presas e a violência não diminui. Acredito que a Apac seja uma esperança, de que realmente possa mudar. É a luz no fim do túnel — projeta Sonáli. 

O método Apac foi criado há três décadas no interior de São Paulo, abrangendo apenados de todos os regimes prisionais dispostos à ressocialização. Pelo modelo, cada unidade pode ter no máximo 200 apenados. O índice de reincidência dos egressos é de cerca de 15%, segundo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, enquanto no sistema comum é cerca de 70%.

Vice-governador e secretário da Segurança Pública, Ranolfo Vieira Júnior entende que a metodologia Apac não vem para substituir o sistema prisional atual e, sim, qualificar o atendimento ao preso. Ele defende que o modelo, reconhecido internacionalmente, está em acordo com as premissas do plano de segurança lançado pelo governo, o RS Seguro. 

— A metodologia tem como objetivo promover a humanização das prisões, sem perder de vista a finalidade punitiva da pena. Eu diria que é importante, embora não seja a solução para o sistema prisional. O método Apac propicia um baixo índice de reincidência, aliado a diminuição de custo no Estado.

Lauro Alves / Agencia RBS
Frases pintadas por voluntário na Apac

No RS, além de Porto Alegre, estão sendo implantadas 10 Apacs em Guaporé, Santa Cruz do Sul, Canoas, Três Passos, Palmeira da Missões, Passo Fundo, Pelotas, Rio Grande, Cruz Alta e Novo Hamburgo.

— Está indo bem pelo esforço de todas as pessoas, das instituições e dos próprios presos. Eles (os recuperandos) estão entendendo o tamanho do projeto e conscientes de que são os percursores e que a sequência depende deles. Vão impulsionar a iniciativa em outros lugares — avalia o procurador de Justiça Gilmar Bortolotto, integrante do Núcleo de Apoio à Fiscalização de Presídios do Ministério Público e designado a trabalhar na implantação das Apacs no RS.

Eu diria que ela (Apac) é importante, embora não seja a solução para o sistema prisional

RANOLFO VIEIRA JÚNIOR

Vice-governador e secretário da Segurança Pública do RS

Um dos primeiros recuperandos da unidade da Capital, condenado a 30 anos, tenta deixar para trás a realidade que viveu por seis anos no Presídio Central. Aos 51 anos, trabalha na cozinha e preside o conselho da unidade:

— O projeto está dando resultado. É um orgulho muito grande — resume. 

Quando chega, o apenado passa pelo acolhimento e por revista feita pelos outros recuperandos. Todos são responsáveis por manter o funcionamento e controle. O último foi recebido com uma canção. A união é reforçada a todo momento. "Estamos: juntos!", repetem de mãos dadas, pouco antes do almoço. 

— O apoio entre eles é fundamental. Muitos vieram para cá porque sabiam que as famílias seriam bem tratadas. Mas não sabiam como seria para eles. Sempre há um choque inicial, com a metodologia diferente. O desejo de estar aqui faz com que eles persistam — diz a vice-presidente da Apac Porto Alegre. 

Uma das primeiras alterações visíveis é corporal. Acostumados a cruzar os braços e baixar a cabeça — reproduzindo o comportamento da massa carcerária — os recuperandos são ensinados a mudar a postura. Dois deles chegaram com poucas roupas. Os demais se uniram e cada um doou uma peça. Outro vendeu uma caixinha, produzida nas oficinas, e entregou o dinheiro à direção. Pediu que fossem comprados materiais para todos. Indicativos de que transformações invisíveis aos olhos também cruzaram a porta de ferro. 


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